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A SRA. PRESIDENTE (Dandara. Bloco/PT - MG) - Boa tarde a todos e a todas.
Hoje, realizaremos uma audiência pública em que iremos tratar do tema Responsabilidade estatal e reparação de crimes de escravidão e racismo. Esse tema foi proposto pelo Grupo de Estudos Políticas Públicas de Combate ao Racismo e às Desigualdades de Gênero na Construção de um Brasil mais Justo e Desenvolvido, relatado por mim e pela Deputada Benedita da Silva.
O nosso objetivo hoje é promover um debate sério, responsável, acerca de um tema que é tão caro, tão importante e tão pertinente para nós, como a agenda de reparações. Essa é uma agenda que tem sido priorizada em todo o mundo. Os grandes fóruns que têm reunido sociedades civis, governos e Parlamentares têm tido, de modo geral, pautas em comum, e essa pauta das reparações é algo que nós encontramos em muitos lugares.
Debater o tema referente à reparação é algo que, inclusive, demanda muitas reflexões, principalmente sobre personalidades não apenas fictícias, mas também jurídicas, dos setores público e privado, que se beneficiaram e se beneficiam até hoje dos quase 400 anos de escravidão e do racismo estrutural decorrente dessa barbárie.
No dia 13 de maio de 1888, quando a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, ela só aboliu os crimes que os senhores de engenho cometeram contra a humanidade. Nós, negros e negras, não recebemos acerto, férias, 13º salário, seguro-desemprego, pelo contrário. No pós-abolição, o Estado brasileiro organizou ainda um conjunto de mecanismos para continuar mantendo hierarquias de privilégios. E quero destacar que isso foi feito num contexto legal. A capoeira foi criminalizada. O samba era crime. E nós tínhamos leis que criminalizavam culturas que vinham das pessoas negras.
Então, nós não estamos falando de um contexto de ilegalidade, de criminalidade, de algo que estivesse fora do campo legal, pelo contrário. Eles se amparavam e se ancoravam em leis organizadas também pelo Estado brasileiro.
Até o ano de 1908, apenas 2 tipos de pessoas não podiam frequentar a escola em alguns Estados do nosso País: pessoas com lepra ou doenças contagiosas e pessoas negras, mesmo que — entre aspas — "libertas". Isso significa dizer que a minha bisavó não pôde estudar. A minha mãe estudou só até a 4ª série primária e voltou a estudar depois de bem mais velha. Ela hoje é professora como eu, mas levou um bom tempo para alcançar isso. A minha avó fez só até a 4ª série primária, o que já significava muito para ela. Eu fui entender a importância e a necessidade da educação quando já estava na universidade, na qual tenho muito orgulho de ter entrado por cotas.
O Estado — na época, a Coroa brasileira —, foi o primeiro responsável por isso, antes de mais nada, por ser o garantidor, por exemplo, da Lei de Terras, uma lei que foi determinante para a manutenção de privilégios que nós temos presentes hoje, no século XXI, em 2024, e também pela exploração direta de pessoas escravizadas, seja por lucrar com o mercado de títulos creditícios lastreados
em seres humanos, seja pela propriedade privada e a mercadoria por meio de órgãos.
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Recentemente, foi levantada a participação e o enriquecimento da própria instituição Banco do Brasil, nesse período da escravidão, ou ainda por deter a propriedade direta dos chamados "escravos" da Nação, oriundos dos confiscos, pela Coroa portuguesa, de bens da Companhia de Jesus, como revela a Profa. Ilana Peliciari Rocha, da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, docente que investiga o tratamento desses "escravos" estatais e sua relação com os primórdios da concepção da coisa pública no Brasil.
Em determinados momentos, a Coroa portuguesa, quando tinha que reivindicar dívidas de senhores de escravos, senhores de engenho, chegava, inclusive, a considerar pessoas escravizadas como bens que poderiam ser recolhidos pela Coroa e serem considerados escravos da Nação.
Essa temática é especialmente delicada. Nós sabemos que, nos dias de hoje, há uma relativização do racismo, dos pontos que temos que superar ainda da escravidão, mas eu acho que esse é um tema central no debate da democracia, porque nós não vamos conseguir ter um Estado Democrático de Direito sem, de fato, superar uma das maiores desigualdades deste País: o racismo.
Nós não podemos nos esquecer de que oito em cada dez vítimas de exploração de trabalho análogo à escravidão são pessoas negras.
Em 2024, o salário médio de um trabalhador negro é 42% menor que o de um trabalhador branco. As mulheres negras ainda recebem, nos dias de hoje, 49,8% menos, se comparadas a homens não negros, e 35% menos, se comparadas a mulheres não negras.
Em 2022, 76% das vítimas de homicídio foram pessoas pretas ou pardas. A mortalidade materna de mulheres negras foi mais do que o dobro da de mulheres brancas. A taxa de analfabetismo foi mais que o dobro entre pessoas negras que entre pessoas brancas. E, também, 71% das pessoas que não concluíram o ensino médio no Brasil são pessoas pretas ou pardas, enquanto o percentual entre pessoas brancas é de 27%.
Portanto, esse resgate histórico e esses dados aqui levantados evidenciam que o racismo organiza relações de poder na nossa sociedade, determina lugares e precisa ser encarado como algo estrutural e estruturante.
O nosso objetivo aqui é promover um debate com responsabilidade, pensando inclusive na responsabilidade estatal na reparação contra os crimes de escravidão e de racismo.
Essa discussão hoje é fundamental para conseguirmos analisar o impacto da escravidão nos dias de hoje e corrigir essas desigualdades; construir inclusive uma agenda de reparação e de combate ao racismo, como compensações financeiras, ações afirmativas, investimentos na educação e na saúde; e explorar como o racismo está
enraizado nas instituições brasileiras e quais são as políticas necessárias para se enfrentar o racismo institucional.
Não adianta negar que o racismo perpetua desigualdades. Pelo contrário, o Estado brasileiro precisa, cada vez mais, reconhecer que nós vivemos num país que teve quase 400 anos de escravidão.
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Esse estudo visa também mapear as políticas de promoção da igualdade racial e combate ao racismo e, em cooperação com o Brasil e outros países do mundo, a sua íntima imbricação com as políticas de combate ao racismo, à desigualdade de gênero e às circunstâncias em que elas foram concebidas e implementadas no Brasil, para também estabelecer diretrizes e sugestões para a ampliação das políticas de superação dessas igualdades.
Hoje, nós teremos aqui oito palestrantes que irão contribuir com esse nosso estudo, e eu já queria, de antemão, agradecer-lhes a presença e apresentá-los. São eles:
A Sra. Valdecir Nascimento, graduada em história pela Universidade Federal da Bahia e mestre em educação pela Universidade do Estado da Bahia. Foi a fundadora e idealizadora do Odara — Instituto da Mulher Negra, onde atua hoje como Coordenadora de Captação de Recursos e Articulação Política.
O Sr. Douglas Belchior, graduado em história pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente, ele é consultor nas áreas de Justiça Criminal, violência do Estado, encarceramento e política de drogas, do Fundo Brasil de Direitos Humanos. É colunista da CartaCapital e também professor e membro do Conselho-Geral do Movimento UNEAFRO Brasil.
A Sra. Erika Santos, assessora de Participação Social e Diversidade, do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. Também assessorou a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro e trabalha com temáticas de gênero e questão racial.
A Sra. Fernanda Thomaz, professora e historiadora. Atualmente é Chefe da inédita Coordenação de Memória e Verdade da Escravidão e do Tráfico Transatlântico de Pessoas Escravizadas, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
O Sr. Yuri Costa, defensor público e coordenador do Grupo de Trabalho Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União, grupo que promove a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos da população negra, fomenta a efetivação da igualdade de oportunidades e o enfrentamento do preconceito, discriminação e demais formas de intolerância étnica.
A Sra. Carolina Gonçalves, professora universitária, advogada, pesquisadora, doutoranda na Universidade Federal de Goiás, aprovada no doutorado em ciência política da Universidade de Brasília. Estuda também as relações entre a fiscalidade e a iniquidade de gênero e raça e sua origem.
O Sr. Flávio Batista, mestre e doutor em direitos humanos pela Universidade Federal de Goiás, onde também atua como pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas Sócio-Fiscais.
Foi educador popular pela Rede de Educação Cidadã do Governo Federal, nos temas racismo, fiscalidade, cidadania e direitos humanos.
O Sr. Luciano Góes, Coordenador de Assuntos Jurídicos da Diretoria de Avaliação, Monitoramento e Gestão da Informação da Secretaria de Gestão do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial, do Ministério da Igualdade Racial.
São muitas pessoas, com currículos muito potentes. É uma alegria poder contar com vocês aqui.
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Vamos dar início às apresentações. Como temos oito convidados, eu queria pedir a esses pesquisadores gigantes solidariedade, empatia, generosidade em nos ajudar, usando o tempo de 8 minutos a 10 minutos, no máximo, para sua exposição. Em seguida, os Deputados e consultores convidados farão perguntas para os palestrantes sobre o tema da audiência.
Eu gostaria de iniciar saudando todos e pedindo licença aos mais velhos e aos meus ancestrais para fazer uma saudação especial à Deputada Dandara e a todas as Deputadas que compõem esta Comissão, especialmente a Deputada Benedita da Silva. Eu venho do Rio de Janeiro, sou cria de favela do Rio, e a Deputada Benedita foi uma das grandes inspiradoras nessa relação de raça e gênero da nossa luta.
Como a Deputada já reduziu o nosso tempo, temos um desafio enorme. Eu havia dividido a minha exposição em dois momentos. O primeiro é para fazer o resgate do principal acontecimento da semana do dia 20, assim noticiado: Brasil pede desculpas oficiais pela escravização de pessoas negras.
Nós estamos no terceiro mandato do Governo Lula e no quarto mandato de um governo popular de esquerda, e é justamente nesse período temporal que avançamos nas políticas públicas e que podemos considerar que são políticas de correção da questão da escravidão. Porém eu vou me restringir aqui às políticas sociais.
O Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome trabalha com políticas finalísticas, com políticas que atendem diretamente a populações vulneráveis, em especial mulheres e população negra.
Nós resguardamos, sob o nosso guarda-chuva, a principal política de transferência de renda, que pode ser considerada como uma política referência para todo o mundo, o Programa Bolsa Família, e, junto com ele, o CADÚNICO.
No primeiro tempo do Governo Lula, nós aprimoramos a Lei Caó, iniciamos um debate sobre as políticas afirmativas, criamos o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial e avançamos com a Lei nº 10.639.
E havia um pensamento, um sentimento, ao se criar a SEPPIR — Secretaria Executiva de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, o de se criar um espaço em que se articulassem e se integrassem as políticas públicas raciais.
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Acho que este Governo traz novos desafios, como a necessidade de transversalizarmos essa pauta e fazermos com que todas as Pastas debatam sobre a questão racial. É sobre isso que eu gostaria de falar aqui, na política de desenvolvimento social.
Não é prioritária — não existe cota, por exemplo —, a política do Bolsa Família, mas, quando olhamos os dados das pessoas atendidas, tanto no CADÚNICO quanto no Programa Bolsa Família, a maioria é da população negra. Isso nos traz dois olhares: o primeiro é que a população negra continua na vulnerabilidade, à margem da sociedade, ainda com a necessidade de ter um olhar diferenciado da sociedade; o segundo é referente às possibilidades.
No que tange ao Bolsa Família, neste mês de novembro, o programa atendeu 20 milhões 779 mil 525 famílias. Não há uma cota, como eu já disse, de população negra, mas a maioria das usuárias beneficiadas são negras ou pardas — 78,79% do total.
É impossível não fazer a correlação com a questão de gênero, porque, quando olhamos a vulnerabilidade, raça e gênero andam sempre juntas. Dentro do número de atendimentos do Bolsa Família, 84,4% das responsáveis familiares são mulheres, que somam um total, neste mês de novembro, de 17 milhões 326 mil beneficiadas.
Esse recorte nos afirma quanto a população preta ainda segue na margem da sociedade, na vulnerabilidade. Daí a importância de defendermos a intersetorialidade de outras políticas sociais, as demais políticas finalísticas, como, por exemplo, as políticas das cozinhas solidárias e das cisternas, que proporcionam melhores condições de vida. Nesse aspecto, já existe um foco para os públicos prioritários, as comunidades tradicionais, que incluem quilombolas, terreiros, pesqueiras, marisqueiras e outras.
O PAA — Programa de Aquisição de Alimentos, da SESAN — Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, e as ações de inclusão socioeconômica visam favorecer famílias cadastradas no CADÚNICO, também na relação com o mercado de trabalho.
Parece que o MIR — Ministério da Igualdade Racial está representado aqui também. Então, eu gostaria de ressaltar a importância dos 16 órgãos que fizeram parte do GT da construção do Programa Federal de Ações Afirmativas, neste ano, e que pretende: promover igualdade de oportunidades por meio das ações afirmativas; promover equidade nas políticas públicas de forma transversal; promover a inclusão por meio de políticas de reparação, valorização e acessibilidade.
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A SRA. PRESIDENTE (Dandara. Bloco/PT - MG) - Obrigada, Erika, pela contribuição.
A SRA. BENEDITA DA SILVA (Bloco/PT - RJ) - Boa tarde a todas e a todos.
A Ordem do Dia já começou. Eu estou Coordenadora da Bancada Feminina e, como coordenadora, tive que participar da reunião de Líderes para discutir a pauta.
A pauta saiu, e eu sou Relatora de um projeto que será o primeiro item da pauta, depois das urgências. A Ministra também está na Câmara, participando de um seminário. E a Secretaria da Mulher está com vários eventos, como, por exemplo, uma exposição e agora, no Plenário 8, outra atividade.
Eu gostaria de dizer que é importante para nós participar do CEDES e prestar, de certa forma, uma contribuição com os acúmulos que tivemos, não só lá fora, na nossa militância, mas também aqui dentro, naquilo que nós conseguimos construir na trajetória parlamentar de cada uma de nós.
Quanto a essa questão da reparação, temos feito grandes debates. No P20, tivemos a oportunidade de discutir sobre a questão da reparação com outros países que, naquele momento, também falavam desse recorte racial, relacionado principalmente a gênero, porque, na verdade, foi um encontro de mulheres Parlamentares. Então, o nosso objetivo, nesta audiência, é promover este debate sobre a responsabilidade estatal na reparação.
Sabemos perfeitamente que o crime da escravidão é impagável. É impagável! O que se fez e o que se continua fazendo é impagável. Daqui a pouco, realmente, vou relatar um projeto que trata da questão do trabalho análogo à escravidão, que ainda acontece no nosso País. Então, é responsabilidade nossa fazer este debate. Eu quero crer que ele deve sair desse âmbito, dada sua responsabilidade.
A questão da reparação foi uma das discussões que fizemos. Trago essas informações para vocês porque eu participei do P20, fórum de Parlamentares, e participei também do P20 Social. Neles estavam presentes as discussões sobre essa questão.
E a reparação era um ponto da pauta, no sentido não só de criminalizar a ausência do Estado na aplicabilidade da reparação, como também de discutir quais ações nós consideramos como reparações.
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Na verdade, nós fizemos essa grande discussão da reparação tratando do tipo de reparação que nós queremos. Essa reparação é monetária? Ela é territorial? Foi debatido um elenco de reparações, tratando de dívidas seculares que o Estado tem com o povo negro brasileiro. E os representantes dos outros países também colocaram o que, para eles, era reparação. Por exemplo, representantes de países da África falaram em reparação, mas em outro nível. O que é a reparação para os africanos e o que é reparação para a diáspora? O que podemos trazer de transversalidade para essa nossa discussão? Como é tratado o gênero aqui.
Ali foi colocado que nós deveríamos estender esse debate e compreender mais a relação com a África, nessa discussão da reparação, para entender o que significa terem trazido negros da África para cá ou para outros lugares à força — foi isso que aconteceu —, para serem escravizados. O que isso tem a ver conosco? Como a diáspora pode trabalhar, junto com a África, a questão da reparação? Aquele foi um debate muito atencioso e caloroso.
Eu queria também agradecer por esta iniciativa. Nossa vontade é podermos contribuir, também, junto com vocês, que têm todo esse estudo, que fazem todas essas pesquisas, para a história do Brasil, colocando o que poderíamos considerar como reparação brasileira — e elas são muitas — e quais delas poderiam ser mais abrangentes, a ponto de nos colocarmos em pé de igualdade, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista social, político, racial ou territorial, o que é outra coisa.
Quero pedir desculpas, porque realmente vou ter que deixá-los com a Deputada Dandara. Eu tenho que ficar prestando atenção lá. Na hora em que somos Relatores — a Deputada Dandara sabe disso —, há emenda aqui e emenda acolá, e temos que estar ali atentos para poder ir respondendo aos questionamentos. Eu peço desculpas, então, à Deputada Dandara e a vocês também. Espero que, numa próxima oportunidade, nós sejamos mais atenciosos.
Eu estava esperando na sala 4. A informação que me passaram indicava a sala 4 como local para a reunião. Eu estava na sala 4. Ela foi lá me dar um abraço, e eu pensei que a reunião fosse acontecer lá. Fiquei lá, então, na sala 4. Infelizmente, não deu para chegar aqui no horário. Mas eu tenho certeza de que vocês vão dar uma contribuição enorme, ou já estão dando uma contribuição enorme. Eu só quero agradecer a vocês e parabenizá-los.
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A SRA. PRESIDENTE (Dandara. Bloco/PT - MG) - Obrigada, Deputada Benedita, pelo esforço de passar por aqui e contribuir também com suas reflexões. Nós sabemos que V.Exa. tem construído essa agenda em âmbito internacional e segue sendo o farol que nos guia, a nossa ancestral em vida que nos fortalece e nos mantém de pé neste espaço.
A SRA. BENEDITA DA SILVA (Bloco/PT - RJ) - Obrigada, minha princesa.
A SRA. PRESIDENTE (Dandara. Bloco/PT - MG) - Ela foi a Minas fazer campanha para mim. Gente, vocês não têm noção. Ela andava de rua em rua, gritando ao microfone, panfletando. Essa aqui é boa de campanha, é diferenciada.
Deputada Dandara, é um prazer imenso conhecer V.Exa. A Defensoria Pública a acompanha, sobretudo por sua luta pelas cotas étnico-raciais, uma pauta extremamente cara à Defensoria Pública da União.
Meu nome é Yuri Costa. Eu sou defensor público federal e atualmente coordeno o Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais da DPU. Parabenizo o Centro de Estudos e Debates Estratégicos por ter colocado esta pauta tão relevante como uma de suas pautas centrais. Esperamos que esta audiência gere um relatório que valorize esta pauta e que avancemos para projetos de lei, amadurecendo os que já existem ou inovando nesse aspecto.
Eu costumo dizer que a Defensoria Pública é uma política de reparação. Nós fomos criados muito recentemente, graças a Constituintes como a Deputada Benedita da Silva, que pensaram uma instituição que busca reparar esse histórico de exclusão das pessoas pobres do sistema de justiça. Então, a Defensoria Pública tem como função histórica exatamente esta: trazer para dentro da Justiça aquelas pessoas que não têm condição de pagar por um advogado. Daí por que também valorizamos muito as políticas de reparação.
Para falar em reparação histórica dos crimes de escravidão e racismo, temos que iniciar tentando resgatar basicamente o que foi a escravidão no Brasil.
Além de defensor público federal, eu sou historiador e pesquisador na Universidade Estadual do Maranhão, onde pesquiso há mais de 2 décadas a escravidão no século XIX no nosso País, mais particularmente no Maranhão, Estado de onde eu venho.
Nós não fomos apenas um país com escravizados e escravizadas, a exemplo do que eram, no contexto do início da nossa colonização, ou da chamada colonização, países como Portugal. Nós fomos um país escravista, e isso é bem diferente.
Nós construímos a maior parte da base da nossa organização social, da nossa economia, a partir da mão de obra forçada de escravizados e escravizadas vindos da África e de seus descendentes. Setenta por cento do tempo da nossa história foi marcado pela escravidão formalmente aceita pelo Estado brasileiro — pela Colônia e, depois, pelo Estado independente. Tivemos, nesse período, aproximadamente 3,5 milhões de pessoas escravizadas vindas da África.
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Entendemos e, muitas vezes, interpretamos a escravidão no Brasil como um acidente de percurso, como algo imposto por vontades particulares de senhores e senhoras de escravos. Geralmente, critica-se: "Ah, a gente não tinha instituições públicas sólidas, e isso possibilitou que se desse vazão aos interesses de particulares", como se a escravidão tivesse sido decidida ao redor de uma mesa, onde senhores e senhoras de escravos iriam decidir o que fazer com a população escravizada. Não. A escravidão foi o que hoje poderíamos chamar, que podemos chamar e definimos como política pública. Ela foi uma política de Estado, embora, obviamente, esta expressão "política pública" não existisse na época.
Houve uma decisão envolvendo todas as instituições então existentes, tanto no período colonial quanto em nosso Império, após a nossa independência formal em 1822, com que resolveram incentivar, consolidar e atualizar a escravidão como estrutura do nosso Estado. E isso é muito importante ser resgatado, para que não fiquemos associando, como citei, a escravidão a um punhado de pessoas que resolveram aceitá-la.
Temos vários exemplos disso. Vou citar dois muito brevemente, por questão do tempo. Um deles é o não cumprimento da primeira lei, de 1831, que abole o tráfico internacional de escravizados e escravizadas. Sem nenhum ato que a revogasse, sem nenhuma medida que pusesse aquela lei sob questão, houve uma decisão do Estado brasileiro, o então Estado Imperial, do nosso Legislativo, o Parlamento do Império, e do nosso Poder Judiciário de legitimar a manutenção e a perpetuação da escravização.
Então, nós tivemos, durante 19 anos, uma lei formalmente aprovada no Brasil, que não foi cumprida. E, apenas a partir da metade do século, em 1850, começou a ser cumprida.
Outro exemplo — e poderiam ser dados vários, Deputada — foi o tratamento que o Estado brasileiro, também no Brasil imperial, resolveu dar a esses homens e mulheres que vinham da África após a lei de 1850, que proibiu o tráfico internacional mais uma vez. O tratamento que o Estado brasileiro resolveu dar às pessoas que eram apreendidas nesses navios tumbeiros era exatamente o mesmo tratamento dado às pessoas escravizadas.
Tudo isso, a partir dos exemplos que eu estou apresentando, demonstra o quanto a escravidão no Brasil foi uma política de Estado e como fizemos essa opção. Em nenhum momento, seja antes do fim formal da escravidão, em 1888, seja depois, o Estado brasileiro mudou esse rumo. Em nenhum momento, houve o reconhecimento, de fato, dos prejuízos advindos da escravidão.
E aqui, eu me direciono mais particularmente às representantes do Governo Federal para parabenizar, em nome da Defensoria Pública da União, o pedido de desculpas que foi formalizado na última semana.
Para quem não tem uma noção exata do que isso significa, para quem acha que isso é uma mera formalidade, um tapinha nas costas, uma coisa menor ou algo meramente simbólico — e é também simbólico, e nem por isso é menos importante —, digo que não há reparação que não comece pelo reconhecimento do Estado — não há reparação que não se inicie pelo reconhecimento do Estado. Não há reparação imposta; não há uma condenação internacional imposta que eventualmente o Brasil sofra ou venha a sofrer.
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E concluo lembrando o historiador Luiz Felipe de Alencastro quando diz que aquilo que o Brasil fez, ao se tornar independente, com relação à escravidão não foi lidar com algo que seria um entulho do período colonial, algo carcomido ou algo já decadente que tentou esfacelar, não. O Estado brasileiro independente como Império, inclusive durante a República, ainda depois da independência formal da escravidão, resolveu modernizar, atualizar e projetar para o futuro a escravidão. Muito do que hoje entendemos por escravidão no Brasil, aliás, veio nesse contexto, já do Império, em que o Brasil pegou, por exemplo, as teorias raciais, reinventou-as e deu um ar, um verniz de modernidade.
Então, se esse Estado adotou como política estruturante e estrutural a escravidão, ele também tem que ter políticas estruturantes para promover essa reparação.
A SRA. PRESIDENTE (Dandara. Bloco/PT - MG) - Excelente contribuição, Yuri! Obrigada pelas reflexões. É muito importante trazermos os elementos que sustentaram a escravização durante tantos anos, durante tantos séculos no País e compreendermos a profundidade desses elementos. É muito forte quando você traz as leis que foram negligenciadas e a dificuldade que o Estado brasileiro também teve, no período ainda do Império, para enfrentar essa agenda de combate ao racismo e à escravidão.
Eu queria aproveitar para registrar a presença da minha conterrânea mineira Maria do Carmo Lara, ex-Prefeita de Betim, ex-Deputada Federal. Hoje ela integra a Diretoria Econômico-Financeira, Tecnologia e Segurança da Informação dos Correios.
Fico feliz com a presença de todos. É muito importante para nós que uma instituição como os Correios, patrimônio do povo brasileiro, também atente a essa agenda de reparações, ainda mais quando estamos debatendo a responsabilidade estatal nessa agenda. Muito obrigada. Mande um abraço ao meu amigo Prof. Neivaldo, que também está lá na universidade. Tenho muito orgulho de ter sido assessora dele quando foi Vereador lá em Uberlândia.
A SRA. PRESIDENTE (Dandara. Bloco/PT - MG) - Maravilha!
(Segue-se exibição de imagens.)
Sem mais delongas, quero agradecer o convite, Deputada Dandara, com que V.Exa. muito nos honra. Quero agradecer à Deputada Benedita da Silva e também quero agradecer ao Franck Tavares, que foi convidado para vir representar o nosso grupo e que, por conta da agenda, acabou não podendo comparecer e me passou essa missão.
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(Segue-se exibição de imagens.)
O primeiro elemento é o grande nivelamento igualitário. Sobre isso, eu quero discutir rapidamente, porque acho que é importante para nós falarmos de reparação a respeito de uma visão que tem influenciado os trabalhos sobre desigualdade, que são trabalhos incríveis, trabalhos importantes, mas ainda carecem de um pequeno ajuste conceitual, que são os trabalhos da (falha na transmissão) e a visão a respeito de por que nós somos iguais.
Num segundo momento, eu quero falar rapidamente sobre o que o Yuri, há pouco, brilhantemente, apresentou, de forma interessante, que é a emancipação gradual e a concentração de poder e renda.
Por último, vou tentar falar sobre aquilo que (falha na transmissão) tentando desenhar, que é o legado colonial e o Estado tributário racial.
Este gráfico sintetiza um pouco as discussões que têm sido feitas. Talvez, o mais famoso desses economistas seja o Thomas Piketty. Vou falar rapidamente sobre essa literatura, que é interessantíssima e tem apontado que, nas desigualdades que nos afetam, nós temos um nível de concentração da antiga Belle Époque. Talvez, se não alterarmos e não revertermos a distribuição regressiva da renda, voltaremos à concentração de renda do patamar da Belle Époque, naquele momento no fim do século XIX.
Este gráfico sintetiza um pouco isso. As bolinhas pretas representam o Brasil. É como se nós sempre fôssemos desiguais.
Nessa leitura interessante, ele demonstra que, a partir dos anos 20 e anos 30, boa parte dos países do norte, inclusive os Estados Unidos e países da Europa, começa a se desvencilhar dessa concentração de renda. Parece, então, que o Brasil, representando aqui neste gráfico a América Latina, e boa parte dos países do norte global estavam ali no mesmo campo da desigualdade e acabaram caminhando por distintas trajetórias a partir dos anos 30. Na visão do grande nivelamento igualitário, isso ocorre porque, entre os períodos de guerra, há choques civilizatórios, e esses choques, por conta da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais, acabam produzindo novas forças políticas no interior desse Estado. Essas forças políticas democratizam o Estado, que gera novos pactos fiscais e sociais. Portanto, criam-se possibilidades igualitárias. Isso é uma leitura importante e interessante.
No entanto, boa parte desses estudos vai dizer que, na realidade, é como se nós sempre fôssemos desiguais e para sempre seremos desiguais. Inclusive, Piketty, no último livro dele, Capital e Ideologia, consegue afirmar que a escravidão e o colonialismo em nada contribuíram para o desenvolvimento desse grande nivelamento igualitário. Nós da América Latina, do sul global, simplesmente não pegamos o bonde da história e, portanto, seremos iguais para sempre. Para ele e para boa parte dessa literatura, os problemas a respeito das desigualdades no século XX dizem respeito ao século XX e, portanto, não dizem respeito à era colonial nem à escravidão.
É nesse ponto que achamos importante reconsiderar e pensar numa outra perspectiva, porque justamente essa análise acaba olhando a renda — a renda, sabemos, é um fluxo durante um ano — e esquecendo que, na realidade, a desigualdade não é produzida apenas em um ano, até porque alterações de renda podem ser feitas conforme alterações legislativas. Isso significa, portanto, que a desigualdade, embora nos ajude bastante observar a renda, não pode ser entendida assim.
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Nesse sentido, achamos que é importante recuperar algumas coisas fundamentais — nesse caso, a raça e a escravidão.
Se olharmos um pouco aquilo que alguns autores chamam de "fronteira da desigualdade" — nós estamos falando de Índia, nós estamos falando de uma parte das monarquias do Golfo —, percebemos que nós temos alguma peculiaridade. O que nos unifica à Índia e a boa parte desses países é o colonialismo, o desenvolvimento da raça e o histórico de escravidão.
Então, achamos importante observar qual foi o papel da escravidão, na realidade, em relação a esse processo. Se é verdade que nós não pegamos o bonde da história, também é verdade que, enquanto os países do norte estavam pegando o bonde da democracia, nós ainda enfrentávamos os legados e a estrutura do poderio da era colonial.
Nesse sentido, é importante observar aquilo que o Yuri falou há pouco, com muito brilhantismo: como, na realidade, a construção do poder público passou também por um elemento central, que era a escravidão. Quando chega ao fim a era do cativeiro, coloca-se em questão uma situação central. Na escravidão, o ventre da mulher escravizada produz propriedade bioeconômica, propriedade humana. Com o fim do cativeiro, aquele mesmo ventre acaba, na realidade, produzindo um problema sociopolítico, porque é um cidadão em potencial. Todo fim de cativeiro leva a um problema, que é a disputa dos conceitos fundamentais. Quem é o povo? Como é a nação? Como estabelecer a estrutura do Estado?
Ao mesmo tempo, há outro elemento importante para nos perguntarmos (falha na transmissão) poder público. Não é necessariamente o tipo de Estado, mas como o poder público se estabelece, na medida em que constrói outros elementos para estabelecer os conceitos fundamentais.
Não por acaso, o Brasil é uma nação — para não usar outra palavra, de forma irônica — que, antes de estabelecer a Constituição da República, após a era imperial, estabeleceu o Código Penal. Essa é uma situação muito peculiar do Brasil, que nos coloca para discutir uma coisa que, às vezes, escapa a algumas análises, que é aquilo que o Yuri falava há pouco: como o desenho do poder público foi fomentado no Brasil? Eu não vou entrar na escravidão anterior ao nascimento brasileiro, mas, por exemplo, é muito importante lembrarmos que, quando a família real chega aqui, fica na casa mais cara do Rio de Janeiro, que pertence a um grande traficante de escravos, e que esse capital advindo dos traficantes de escravos vai fortalecer a unidade nacional e vai, inclusive, permitir que a independência seja estabelecida.
O engraçado é que, em algumas partes, as análises vão esquecer também que — o Yuri citou, há pouco, a lei de 1831 —, durante todos os quase 400 anos de escravidão, entraram no Brasil quase 5 milhões de pessoas escravizadas. Entre 1831 e 1850, quando finalmente há o fim do tráfico negreiro, de fato, entraram mais ou menos 750 mil pessoas escravizadas. Em 19 anos, entraram 15% de todo o número de pessoas escravizadas no Brasil. Esses escravos não eram só mão de obra, também eram ativo financeiro, porque, não por acaso, o Brasil imperial foi uma estrutura estatal que conseguiu garantir a sua dívida pública, pagar a dívida pública externa e a dívida pública interna, por conta de dois ativos centrais: o primeiro são as terras; o segundo, os escravos.
Os escravos eram dados como ativos importantes para que o Brasil imperial conseguisse acesso ao crédito no mercado, tanto no mercado internacional quanto no mercado nacional. Esse elemento colocou o Brasil em uma situação muito peculiar.
Se, em outras sociedades, não foi possível desenvolver, inclusive, o mercado interno, o mercado privado, o mercado de capitais, sem colocar em risco o endividamento, no Brasil imperial, nós não colocamos em risco o endividamento. Nós conseguimos estabelecer, portanto, o pagamento correto da dívida pública, tanto da externa quanto da interna, mas à custa do desenvolvimento do mercado interno.
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Aqui mora o que interessa às nossas pesquisas, quando começamos a observar o funcionamento das receitas públicas. Na realidade, uma parte da elite brasileira conseguiu — eu quero entrar na terceira parte para evitar correr neste tempo — organizar uma emancipação lenta e gradual, que garantiu a concentração de poder político e a concentração de renda.
Vejam, senhoras e senhores: antes, no modelo escravista, havia o que nós chamamos de propriedade racial, havia uma propriedade que era estabelecida. O sujeito era tido como ativo. A pessoa escravizada era matéria tributada, mão de obra escravizada e, ao mesmo tempo, garantia de ativo para acesso a crédito. Isso é o que nós chamamos de propriedade racial.
À medida que essa sociedade foi se transformando, alterando aquilo que Dale Tomich chamou de segunda escravidão — ou seja, a escravidão do século XIX já não era mais a dos séculos XV, XVI, XVII, era uma escravidão no interior do processo de desenvolvimento capitalista —, essa transição lenta ou essa emancipação lenta permitiu que essas leis fossem operadas. Como o Yuri disse há pouco, elas não foram colocadas na prática. Além disso, permitiu que essa propriedade racial se transformasse numa renda racial.
Então, quanto à estrutura da escravidão, se você parar para pensar, no século XIX, por trás de todo aluguel, por trás de toda a dívida pública, por trás de toda hipoteca, por trás de toda a riqueza produzida no Brasil nesse século, havia uma pessoa escravizada. Isso significa que a escravidão era a própria economia. Isso significa que toda a estrutura desse poder foi montada na medida em que a escravidão foi mantida, garantindo, então, duas coisas importantes: primeiro, o acesso à terra, não por acaso, em 1850, com a Lei de Terras; e, segundo, uma emancipação lenta e gradual para garantir que essa transição de propriedade racial se transformasse em renda racial, que é simplesmente o ganho de renda pelo fato de a pessoa ser branca. É muito fácil você calcular isso, porque, se você colocar todas as pessoas, brancos e negros, na mesma atividade remunerada e calcular a diferença de renda, se o branco ganhar mais que o negro, aquilo é renda racial. Nós estamos chamando a atenção para isso.
Aqui eu quero mostrar outro dado que nós observamos. Para vocês terem ideia, a pesquisadora Vilma Soares, da USP, fez um trabalho incrível mostrando que, até 1823, boa parte das receitas fiscais do Estado brasileiro, 5%, mais ou menos, adivinha do imposto de meia siza, que era o imposto que se cobrava pelos escravos. Nós observamos que, até 1829, houve uma média de 6,5% e, no ano da independência, a arrecadação que o Estado imperial conseguiu foi de quase 8%, isso advindo só do imposto de meia siza. Não por acaso, houve a taxa de escravos logo na segunda metade do século XX, digo, século XIX. Mas é importante observar que o imposto de meia siza e a taxa de escravos não apareciam tão gritantemente nas receitas do Estado. No entanto, foram centrais para a garantia de acesso a crédito. Isso nos leva a observar ou a tentar, pelo menos, operar o que nós chamamos de Estado tributário racial.
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Algumas pesquisas apontam que existe uma diferença entre o Brasil, os Estados Unidos e a África do Sul. Dizem que aqui não foi feito um apartheid social a partir de uma lei de segregações, como foi o caso dos Estados Unidos. Dizem que o Brasil não fez isso. Mas o que observamos ao longo do tempo — saindo da análise da desigualdade a partir exclusivamente da renda, mas observando a estrutura da formação da riqueza, a estrutura do poder público e a construção da própria dívida pública —, pelo menos no caso brasileiro, foi que, na realidade, tudo aquilo que os Estados Unidos e a África do Sul fizeram o Brasil do século XIX já havia feito. A Lei de Terras já havia garantido uma emancipação gradual, a concentração de poder político, a concentração de renda, impedindo inclusive que um desenvolvimento minimamente capitalista, liberal, para não usar outros termos, acontecesse.
Então, nós conseguimos, pelo menos a partir desses dados, olhando a receita do Império, perceber que, na realidade, essa transição do século XIX para o século XX permitiu que boa parte das elites, inclusive aqueles que acabaram empobrecendo por conta do fim da escravidão, casasse seus filhos com aqueles que ascendiam socialmente no mundo urbano, permitiu que, na realidade, se produzisse uma estrutura de garantia de poder...
A SRA. PRESIDENTE (Dandara. Bloco/PT - MG) - Peço que conclua.
Queremos fazer ainda muitas pesquisas, mas é necessário construir uma agenda de reparação observando como essa riqueza foi acumulada. É necessário observar, com cuidado, como é que o poder público foi construído. É preciso observar também que, na realidade, a escravidão e o colonialismo têm muito a ver com o porquê de nós não conseguirmos construir um grande nivelamento igualitário, como foi o caso dos países do norte.
A SRA. PRESIDENTE (Dandara. Bloco/PT - MG) - Muito obrigada, Flávio, pela excelente contribuição.
O Prof. Kabengele Munanga nos chama a atenção para como o nosso racismo é esse crime perfeito, porque ele tem a capacidade de se adaptar às mais diferentes realidades, organizações sociais, políticas, econômicas. Ele teve uma capacidade altíssima de se adaptar do Império para a República, do sistema de servidão para o sistema capitalista. E agora, neste momento, num sistema ultraneoliberal, de avanço do conservadorismo, ele também vai se adaptando a essas realidades. Suas reflexões são muito importantes mesmo.
Estou extremamente contente por participar desta reunião. Eu agradeço o seu convite, feito também pela Deputada Benedita da Silva.
Este é um desafio, porque eu tinha pensado em usar os 15 minutos, mas vou ter que diminuir esse tempo.
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Somos um país em que pouco se trabalha com política de memória, e, quando o faz, trabalha somente com um período específico, como, por exemplo, a ditadura militar, que não é racializada inclusive. Então, não se consegue perceber esse sujeito e outros sujeitos.
Se estamos falando das injustiças do passado, por que não falar da escravidão? Só conseguimos pensar em reparação se pensarmos em memória também. Acho que esse é um pouco o caminho que o Yuri começou. Eu queria falar a partir desse lugar.
Na Coordenação de Memória e Verdade da Escravidão, um dos eixos principais é memória, reconhecimento e reparação. Esse é um tema que, para mim, é muito caro nessa discussão.
Vou tentar esboçar um pouco, pensando também nas inspirações externas para a discussão sobre reparação, sobretudo, o contexto histórico e o lugar do Brasil no processo da discussão sobre reparação.
Acho que a primeira coisa a ser dita aqui é que compreendo a reparação a partir da ideia de que ela está ligada à injustiça associada a violações de direitos humanos. De fato, a reparação acaba sendo o coração da justiça social.
O Embaixador David Comissiong, da Comunidade do Caribe — CARICOM, define reparação como um ato de redimir, corrigir e indenizar por um erro cometido contra outra pessoa ou outro povo, de certa forma. Então, é uma forma também de o presente compensar o passado.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, por exemplo, para pensar em reparação, define cinco eixos. O primeiro eixo é a investigação e elucidação das situações de violência ocorridas. O segundo eixo é a responsabilização dos agentes que praticaram violações. O terceiro eixo é a reparação dos danos suportados pelas vítimas. O quarto eixo é a promoção da memória. E o quinto eixo é a adoção de medidas destinadas a prevenir, para a não repetição de violações no futuro.
Uma coisa que eu queria expressar é que esse é um debate que externamente tem sido fluido há um tempo, sobretudo desde as décadas de 80 e 90. Um exemplo, para mim, que é muito caro é o debate que a União Africana tem traçado para pensar a reparação, o que nos elucida também sobre essa trajetória — eu me lembro da Deputada Benedita mencionando esse diálogo com a África.
Em 1993, foi criada uma proclamação chamada Declaração de Abuja para falar sobre reparação, reparação financeira e simbólica também, e restituição. Mesmo após essa declaração, na própria Conferência de Durban, houve um debate muito fluido, que teve uma participação muito ativa do Governo brasileiro, quando foi reconhecida a escravidão como crime contra a humanidade. Recentemente, em 2022, a Cúpula da União Africana criou uma declaração chamada Declaração de Acra para falar sobre reparação e restituição. Então, não é só a África. Há também um diálogo, por exemplo, com a diáspora, como a CARICOM, que, desde 2013, tem a Comissão de Reparações.
Apesar disso, a nossa conjuntura no Brasil é um pouco diferente, porque o debate sobre reparação é muito tímido aqui. Recentemente, tem-se falado um pouco mais, discutido um pouco mais sobre reparação. Mas o momento ápice da discussão sobre reparação foi na década de 90, com o movimento "Reparações já!", que surgiu de um grupo de pesquisadores de São Paulo que começou a discutir reparação, sobretudo no campo financeiro. Mas, mesmo após a Conferência de Durban, a partir de 2001, esse debate arrefece, diminui, na verdade, e fica mais no campo da discussão sobre ação afirmativa, sobre política de cotas, que são importantes, sim. O debate sobre reparação ainda ficou muito caro.
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18:16
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O que eu quero dizer com isso? A discussão sobre reparação é tímida no nosso País. Eu acho que, neste ano, houve um gap, e estão refletindo um pouco mais. Vejo grupos sociais discutindo isso, mas, externamente, esperam esse debate do Brasil. Isso ficou evidente, por exemplo, no Fórum Permanente de Afrodescendentes da ONU em que o tema foi Combate ao racismo sistêmico, justiça reparatória e desenvolvimento sustentável. Na verdade, o Brasil teve um papel central nessa discussão. Houve, lá em Genebra, uma cobrança do Brasil, tanto pela presença nos debates, na discussão mais diaspórica sobre reparação, quanto pela cobrança de Portugal, que tampouco discutimos. Ainda assim, não foi só a ONU, mas a própria União Africana, quando solicitou que a 6ª Conferência da Diáspora Africana fosse realizada no Brasil, em Salvador, exatamente com o tema Memória, restituição, reparação e reconstrução.
É óbvio que, quando pensamos nisso, essa expectativa externa do Brasil tem a ver com a conjuntura política atual do Brasil, que saiu de um governo em 2022 e entrou num governo mais progressista e que está pensando várias outras pautas, mas também com o papel do Brasil na própria diáspora, porque foi o país que mais recebeu africanos durante o período de tráfico de pessoas escravizadas e é o país com a maior população negra fora do continente africano. Então, ele tem um papel importantíssimo. Isso é um quesito que nos motiva, e é importante nos motivar. Ocorre que estamos falando de um país que teve mais de 300 anos de escravidão. Como mencionei, foi o país que mais recebeu africanos traficados durante o período de tráfico de pessoas escravizadas — 40% vieram para o Brasil.
Para além desse papel do Brasil, há a questão — aí vou falar da política de Estado — do apagamento da memória e da violência desse passado. Pensando o Brasil no fim do século XIX e ao longo do século XX, houve uma política de Estado de apagamento. Se pararmos para pensar, após a abolição, o que importa, até a formação do racismo, é toda aquela discussão sobre darwinismo social, eugenia. Havia uma ideia de branquear a população negra, seja fisicamente, seja na própria história e na memória. Após esse período, a partir da década de 30, há uma discussão sobre democracia racial também, que é um apagamento, exatamente, dessa violência do passado. E isso vira até um discurso de Estado. Na ditadura militar, o discurso do Estado era o da democracia racial. Então, até para reconhecer as violências do passado, temos dificuldade, porque existe uma política de Estado que apagou exatamente essa história de violência no nosso País.
Na semana do dia 20, a Agência Pública publicou um artigo com uma pesquisa muito potente, que chamamos de Projetos Escravizadores, que está baseada na Reuters. Eles tentaram identificar, por exemplo, pensando na classe política, quais indivíduos dessa classe política tinham uma relação direta, uma herança, uma ascendência de escravizadores, de fato. Foram mapeadas 116 autoridades, e 36 delas tinham ancestrais escravizadores. Nesse grupo, havia ex-Presidente do Brasil, Senadores da República e Governadores do Estado brasileiro. Eles pegaram documentos históricos e viram que, dos 81 Senadores, 16 tinham ascendentes escravistas e, dos 27 Governadores, 13 tinham também, quase a metade.
Isso me faz perguntar: que Estado é esse? Se queremos pensar no reconhecimento da escravidão e identificar uma transformação no próprio Estado, obviamente os sujeitos do Estado vão transformar isso, mas é preciso também, no interior do Estado, discutir, sobretudo, o reconhecimento desse pertencimento com a escravidão. Também há um debate sobre racismo institucional e sobre privilégio, que envolve a discussão sobre branquitude,
porque estamos falando de um país de mais de 300 anos de escravidão, onde a estrutura de poder e as instituições estiveram mergulhadas nesse debate.
Então, quando eu falo em reconhecimento, para mim, o reconhecimento é um caminho basilar para pensarmos a reparação. Sem ele, a reparação não tem efeito, como foi mencionado aqui, porque o próprio reconhecimento recoloca o ímpeto do presente com o passado e o princípio filosófico e até mesmo moral da reparação. Para pensarmos em reparação, é necessário que haja esse reconhecimento.
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18:20
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E, de certa forma, como foi mencionado aqui, o pedido de desculpas é o primeiro passo para esse reconhecimento. Nós fizemos, recentemente, a solicitação de pedido de desculpas.
Então, pensando nessa responsabilidade estatal, pensando nessa herança de apagamento, mas tentando pensar na composição desse Estado, nesse sujeito reconhecendo essa herança de violência, eu acredito que o Brasil tem dois desafios, Yuri, porque, para além do desafio de olhar como colonizado, conforme você falou, é preciso, ao mesmo tempo, olhar para os conflitos internos, porque o Brasil liderou o tráfico de escravos durante um período, sobretudo no século XVIII, o Brasil foi escravizador também. Mas como balizamos esses dois desafios, por exemplo, no nosso País? Isso envolve tanto uma responsabilização estatal externa, quanto uma responsabilização estatal interna nesse sentido.
Para fechar a minha apresentação, na qualidade de pesquisadora negra, mas também como representante do Estado brasileiro hoje, de certa forma, eu gostaria de dizer que entendo que o Estado tem muitas responsabilidades sociais e que a reparação é um caminho fundamental, sim. Por isso, eu vejo a importância do nosso trabalho, sobretudo para resgatar a memória e pensar em reparação. A reparação é considerada como uma espécie de cura dos danos causados às vítimas de uma violação. Reparar não é equiparar, partir do zero, como se nada tivesse acontecido. Não é possível trazer pessoas de volta, nem aliviar dores, nem transformar memórias, ou seja, é impossível voltar no tempo, mas reparar serve fundamentalmente para trazer dignidade, responsabilidade social a sujeitos do presente, com vista a uma sociedade mais justa e igualitária.
(Palmas.)
A SRA. PRESIDENTE (Dandara. Bloco/PT - MG) - Arrasou! Foi muito bom, Fernanda. De fato, o reconhecimento, para a reparação, é fundamental.
Quero parabenizar o Presidente Lula e todo o Governo Federal pelos esforços que foram empreendidos para este gesto importante. Foi a primeira vez que tivemos o feriado nacional do Dia da Consciência Negra. Para nós, é um marco simbólico que vai ficar, sem dúvida nenhuma, registrado.
Eu tenho muito orgulho de ter ajudado a construir esse feriado nacional do Dia da Consciência Negra aqui na Câmara dos Deputados. Nós lutamos muito para aumentar a quantidade de Parlamentares negros e negras nesta Casa. Nós sabemos que isso é parte de uma estratégia do movimento negro brasileiro. Nós já sabíamos, desde a época de Abdias do Nascimento, que, ao ocuparmos os espaços de poder, nós promoveríamos mudanças profundas na estrutura do Estado brasileiro.
Eu não tenho dúvida de que a presença de mais Parlamentares negros, do movimento negro, com consciência e letramento racial, nesta Casa fez com que fundássemos a Bancada Negra, aprovássemos a continuidade da Lei de Cotas, o feriado nacional do Dia da Consciência Negra e, agora, a continuidade das cotas no serviço público. E é também a quantidade de pessoas negras na Esplanada dos Ministérios, desde o primeiro escalão até os postos de coordenação, direção, secretaria, assistência, que está fazendo a nossa luta e a nossa pauta avançar neste período.
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18:24
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Peço desculpa pelo meu atraso e também pela minha saída daqui a pouquinho para uma atividade no nosso hub. A UNEafro Brasil tem um hub de articulação política aqui em Brasília e estará em uma atividade, hoje, com diplomatas negros, Dandara, para a qual a senhora está convidada.
Eu quero lhe agradecer, Dandara, pelo convite, assim como à Deputada Benedita. Como é importante termos Parlamentares do movimento negro ocupando cadeiras nesta Casa, para que possam propiciar este momento, promover esse debate, que é absolutamente fundamental para a busca por justiça no País.
Quando tratamos de combate ao racismo ou direitos da população negra brasileira, é importante termos um pressuposto, para que o nosso debate não se confunda com outros debates que também são importantes, mas são diferentes. Nós estamos tratando aqui do direito da maioria. Então, eu acho que isso já determina ou predetermina elementos importantes, dos quais precisamos tratar. Nós estamos falando da maioria do povo brasileiro, estamos falando de uma história que explica o Brasil, como já foi brilhantemente colocado aqui pela Fernanda e pelo Flávio. Existe uma história da população negra, da população africana sem o Brasil e não existe uma história do Brasil sem a população negra. O Brasil se constrói em cima de corpos originários e africanos e do seu sangue, do seu trabalho compulsório.
Então, se eu tivesse que responder à pergunta que é o tema deste encontro, sobre responsabilidade estatal e reparação dos crimes de escravidão e racismo, a resposta seria "sim". Quem responde por essa história, quem tem essa responsabilidade é o Estado brasileiro, considerando-se a maneira pela qual se organiza o status quo na modernidade, porque o Estado nunca foi um espaço ocupado por nós, pelos de baixo.
Eu fui um jovem formado pela Esquerda brasileira, Dandara. Nós líamos, nos espaços de formação — tenho um pouco de saudade disto hoje —, os clássicos que nos orientam. Em O manifesto comunista, há uma frase que cabe aqui, agora, para tratar da questão racial, quando ela diz que o Estado não passa de um escritório dos interesses da burguesia. No Brasil, assim como no mundo todo, a burguesia é branca — é branca. O Brasil foi fundado por pessoas brancas ocupando, tomando território de quem já existia aqui, sob o poder da força. O Brasil recebeu — há alguma variação do ponto de vista das pesquisas, mas vamos arredondar este número — 7 milhões de pessoas africanas traficadas, sequestradas, sendo que a América recebeu 12,5 milhões de pessoas africanas nessa condição.
Eu tive a oportunidade agora, Dandara, de passar um tempo na Carolina do Norte e também na Carolina do Sul. Eu visitei um museu em Charleston, cidade em que se encontrava o principal porto de chegada de pessoas africanas escravizadas aos Estados Unidos. Nesse local foi construído um museu, equivalente ao nosso Valongo, coisa parecida. E eles construíram uma calçada, cimentaram um espaço que corta todo o terreno do museu, de uma ponta à outra.
Eles dividiram esse passeio em dois pedaços, o ponto de partida e o ponto de chegada, para simbolizar de onde saíram pessoas africanas sequestradas e aonde elas chegaram aqui na América.
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Nesse museu, localizado no principal porto de chegada de africanos nos Estados Unidos, o país que mais tem locais de chegada de pessoas africanas é o Brasil. No museu, há nomes de cidades brasileiras, de portos brasileiros.
Nos Estados Unidos, aportaram, segundo a historiografia, cerca de 380 mil, 400 mil pessoas escravizadas. Eu não estou aqui competindo, dizendo que a nossa desgraça é maior. Não é uma competição. Mas, sim, de fato, a nossa desgraça é maior, do ponto de vista da realidade do que foi escravidão e da sua decorrência.
Então, eu poderia dizer que nós estamos, Fernanda, na casa dos escravocratas — ponto final. "Ah, mas tem que haver uma mediação aí." Nós nunca tivemos maioria nesta Casa. Nós nunca tivemos o Parlamento brasileiro trabalhando para a reparação ou para olhar as decorrências da experiência com a escravidão no Brasil.
Até pouco tempo atrás — e isso mudou bastante graças à atuação do movimento negro — era muito comum encontrar... É muito nova para a história a grande hegemonia das tecnologias. Hoje, nós fazemos uma pesquisa profunda com muita rapidez num celular, usando as tecnologias existentes. No entanto, até pouco tempo atrás — e foi assim educada a sociedade brasileira até a última geração —, tínhamos, por exemplo, bancas de jornais em cada esquina brasileira.
Eu dou aula desde os 18 anos. Acabei de fazer 46 anos, já sou um negro velho. Eu me lembro de propor exercícios para os estudantes de escola pública ou de cursinho popular, pedindo a eles que andassem pelas bancas de jornal e relatassem que tipo de revista era exposta nas bancas de jornal. E, como eu sempre dei aula de história, era recorrente a exposição de revistas tratando da Segunda Guerra Mundial, do Holocausto, com a foto do Hitler.
Fernanda, o exercício permanente de memória é fundamental. Eu tive a oportunidade de ir a Berlim. Andar por aquela cidade é um exercício permanente de memória. Andar pelo sul dos Estados Unidos é um exercício permanente de memória. Lembrar para não repetir; lembrar para se revoltar.
Por isso, é tão revolucionário e importante o dia 20 de novembro. O dia 20 de novembro é importante, porque é um feriado nacional. Existe um sentido nisso. Que sentido tem o dia 20 de novembro para nós? O sentido de lembrar e se revoltar. O sentido de lembrar e não aceitar que esse tema continue sem ser tocado.
Nós estamos num Governo de reconstrução, e até mesmo o tema do Governo é união e reconstrução. E isso faz sentido para o contexto em que nós vivemos. Agora, eu sonho com um governo que tenha uma insígnia assim: o governo da reparação. Nós nunca tivemos quem tenha se metido a tocar nessa ferida. É uma covardia histórica. E precisamos tocar nisso. E que bom que, agora, nós temos Parlamentares que provocam isso aqui dentro. Eu fiz esse desabafo porque esse é um tema que realmente nos provoca muito.
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A Fernanda citou uma pesquisa, que não trata de responsabilizar no presente e colocar a culpa em quem está vivo agora, em uma família que teve um canalha em seu antepassado. Não se trata de colocar a culpa em quem está vivo agora, em quem vive agora, porque a responsabilidade direta é de quem o fez. Mas, quando nós percebemos que a linhagem dessas famílias continua ocupando os poderes político, econômico, social e cultural no Brasil, vemos que é terrível a continuidade desses poderes nas mãos de quem escravizou.
O Flávio contou essa história. Eu até separei isso para dizer, mas não preciso dizê-lo porque ele já falou. O que é o Estado brasileiro senão a reconfiguração do poder nas mãos dos de sempre, observando a necessidade da modernidade?
Ora, a escravização de pessoas no Brasil acaba formalmente em 1888. A República é fundada em 1989: há uma revisão de lei penal em 1990, no século XIX, e a idade penal vai para 9 anos de idade! Na República de concidadãos, em que nós vamos eleger pessoas pelo sufrágio universal, o voto é censitário, só vota quem tem patrimônio, mulheres só votam na década de 30, analfabetos só votam em 1989, se quiserem. Então, não precisa muito para perceber o quanto este País é construído sobre as bases do que foi a escravidão, sobre a manutenção de uma lógica.
E termino com esta provocação, Deputada Dandara, porque as coisas não acontecem por acaso. Eu sou de uma religião que não acredita no acaso — digo nós.
Calhou de, num Governo progressista, haver elementos para um indiciamento ou uma possível verificação jurídica da responsabilidade do Banco do Brasil. E o Flávio nos explicou que todo o sistema econômico escravocrata tinha relação direta com a escravidão. Então, é óbvio que os bancos têm relação com isso. Mas, uma coisa é sabermos que isso é óbvio do ponto de vista histórico e não conseguirmos materializar provas e não transformar isso em inquérito. O que nós temos de novidade? É que existe um inquérito. Isso não é novidade! Nós corremos o risco de perder a oportunidade histórica de dar um passo concreto ao que pode vir a ser no futuro um processo de reparação histórica, porque temos os elementos, agora e aqui. Nós os temos! E não cabe ao movimento...
O que eu digo, às vezes, provoca chateação, e não tem a ver com as pessoas que ocupam os lugares, pois todos nós somos transitórios. Desgraçadamente, as instituições racistas permanecem no tempo. O Banco do Brasil faz uma propaganda de que ele tem, sei lá, 300 anos. Então, é o mesmo Banco do Brasil que financiava a escravidão, dava garantias ao dinheiro emprestado em pessoas escravizadas e também pagava em pessoas escravizadas. Isso é óbvio!
Veja, Deputada Dandara, a UNEafro, que é a minha organização, participou do processo provocado pelo Ministério Público no Rio de Janeiro, a partir do Procurador Júlio e dos seus colegas, e entregou um documento em que nós fazemos a seguinte provocação.
Uma das iniciativas possíveis, a partir desse caso do Banco do Brasil, seria que o banco fizesse um primeiro aporte ao que pode vir a ser o primeiro fundo de reparação histórica no Brasil. Um fundo espelhado, talvez, no que é o Fundo da Amazônia, que inclusive resistiu, apesar de ter sido colocado de lado, ao Bolsonaro. É um fundo que tem gestão da sociedade civil. É um fundo que, entra Governo, sai Governo, permanece.
Então, ele tem características de permanência, independentemente do Governo da hora. E por que não dar esse passo agora? Nós fizemos um exercício, um simples exercício de imaginação do que poderia vir a ser uma mensuração de valor. Como a Fernanda disse aqui, não há nada que possa ser feito para devolver às pessoas o que lhes é devido ou para zerar seu sofrimento.
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18:36
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Gente, eu gosto de tatuagens. Vocês já fizeram tatuagem? Dói! Dói! Agora, imagine o que é viver 40 anos com açoite? Quem faz uma tatuagem sabe o tanto que dói. Eu sou muito sensível à dor, sou mole mesmo, sinto dor. Agora, imagine que, por gerações, 7 milhões de pessoas viveram e morreram sob açoite, sem olhar o horizonte e poder imaginar outro tipo de relação com a vida. Será possível que alguém vai reclamar de qualquer valor que possa ser mensurado como reparação para esse crime histórico? E aí nós fizemos a seguinte análise, um cálculo de memória: há 1 ano, o Banco do Brasil teve um lucro recorde de 35,6 bi, e multiplicamos 30% disso por 136 anos, que é o tempo que temos desde a abolição da escravidão. Foi um exercício que nós construímos junto com o Prof. (ininteligível.) Isso daria o valor de 1,45 trilhão a ser investido em política pública dirigida à população negra por 20 anos. E os senhores acreditam que houve uma reação poderosa desqualificando a sugestão, que obviamente não será levada a sério, por ser muito dinheiro? "Ah, é mais do que vale o banco." É muito dinheiro para reparar, para ser investido no que podemos construir como política de reparação.
Então, eu termino, Deputada Dandara, reafirmando o documento que a UNEafro protocolou junto ao Ministério Público dizendo que não há dinheiro que pague as nossas vidas, que não há dinheiro que pague as sete milhões de vidas que foram empenhadas, só no período da escravização, para construir este País, e que não há dinheiro que pague toda a injustiça e violência que nós sofremos como descendentes daqueles que foram açoitados. E não há um copo de conhaque caro, de uísque caro e de viagem cara que essas pessoas, que estão com suas caras brancas imprimidas nas paredes aqui do Congresso Nacional, tenham pago que não tenha sido com dinheiro fruto do nosso esforço, do nosso sangue, do nosso suor histórico. Não há dinheiro que pague isso. Então, precisamos fazer este debate com a seriedade que ele merece e exige de nós.
A SRA. PRESIDENTE (Dandara. Bloco/PT - MG) - Obrigada, Douglas. Suas reflexões sempre nos trazem a urgência e a necessidade do que estamos construindo neste tempo presente.
Queria registrar que o CEDES — Centro de Estudos e Debates Estratégicos da Câmara dos Deputados, que reflete sobre os temas mais urgentes e necessários à sociedade há 21 anos, porque foi criado em 2003, nunca antes havia se debruçado sobre o tema do racismo. É a primeira vez, em 21 anos de criação do CEDES, que o racismo é um dos cinco temas estudados aqui na Câmara dos Deputados.
O nosso consultor para esta matéria é o Marcio Nuno Rabat, que está aqui conosco e vai ter o grande desafio de produzir esse relatório para nós.
E nós queremos que esse relatório, assim como outros produzidos sobre outros temas aqui na Câmara, seja lançado, e que os seus exemplares, em formato de livro, sejam também disponibilizados para as Câmaras e Assembleias Legislativas do País e para bibliotecas municipais. Nós queremos que o resultado dessas reflexões que estamos fazendo aqui esteja presente em todo o território nacional. Então, é muito importante o que nós estamos produzindo no dia de hoje.
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18:40
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Também quero resgatar que essa reflexão especificamente é também resultado de diálogos e articulações da bancada negra, que vem se debruçando para elaborar uma PEC de criação do Fundo Nacional de Reparação da Escravidão.
Eu também queria agradecer as presenças da Aline Sá, Gerente de Relações Governamentais da Associação Brasileira de Desenvolvimento, da Mayara Bandeira, Chefe da Assessoria Legislativa do Ministério Público do Trabalho, e do Gabriel Sales, do Instituto de Referência Negra Peregum. Obrigadas pelas presenças.
A SRA. VALDECIR NASCIMENTO - Boa noite, Deputada. Quero cumprimentar a Deputada Benedita da Silva e toda a bancada negra, que fez um grande esforço para construir esses processos e que parabenizo, e cumprimentar a Fernanda e o Douglas, que me antecederam. Peço desculpas, porque eu não estou presencialmente. Eu tive um imprevisto hoje. Em Salvador, choveu demais. Eu teria que estar em Brasília, porque o Comitê Impulsor da Marcha das Mulheres Negras estará reunido aí hoje para lançar a Marcha e também para receber os cumprimentos pelo lançamento. Gostaria de estar aí hoje, mas houve esse imprevisto da perda do voo. Por isso, estou participando virtualmente com os senhores.
A SRA. PRESIDENTE (Dandara. Bloco/PT - MG) - Estamos ouvindo, sim, perfeitamente. Estou só terminando de encaminhar algumas coisas com o Douglas aqui, mas a estamos ouvindo. Esse compartilhamento já saiu, e agora já dá para você reproduzi-lo.
A SRA. PRESIDENTE (Dandara. Bloco/PT - MG) - Então, você pode agora compartilhar a sua tela. Pode começar.
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A SRA. VALDECIR NASCIMENTO - Então, como estava dizendo, quero parabenizar a Deputada Dandara e a Deputada Benedita da Silva pela iniciativa.
Quero falar da grande importância de colocar na Ordem do Dia o debate em torno dessa questão da reparação no Brasil. Considero que alguns caminhos já foram perseguidos. Na realidade, a chamada para a 2ª Marcha de Mulheres Negras tem como tema estruturante a reparação, com a finalidade de fazer com que este debate e esta discussão se expandam pelo País e ocupem seus quatro cantos, porque nós, da mobilização e articulação de mulheres negras, consideramos este um dos temas extremamente importantes para pensar o bem viver, para pensar a conjuntura, para pensar projetos de Nação, para pensar uma nova ordem. A reparação tem um papel muito importante nisso. Não é possível pensar um projeto de Nação brasileira sem o repassarmos, sem sermos justos ao olharmos o que é essa história do Brasil e sem observarmos que mais de 50% de sua população está situada nesse cenário.
Eu queria também lhes trazer uma preocupação nossa sobre o risco que há, pensando o Brasil, em seguir o conjunto de questões que foram levantadas. O Brasil é um país que consegue desqualificar principalmente a população negra e, quando não a desqualifica, consegue abortar processos de justiça e processos de garantia de direitos humanos em relação à população negra. Isso é histórico no Brasil. E tanto é histórico — e é muito interessante como as barreiras se estabelecem — que, quando as pessoas começam a falar de reparação, elas começam a justificar ou a explicar que a reparação não está preocupada com isso ou aquilo. Eu acho que não precisamos justificar nem explicar por que devemos ser reparados. A história por si só coloca isso.
É claro e é óbvio que nós precisamos organizar essa perspectiva do que seria um grande projeto de reparação, pensando o Estado brasileiro enquanto figura reprodutora do racismo e beneficiária da escravidão, mas também não podemos perder de vista que precisamos pensar outros segmentos brasileiros que foram beneficiados não só com o processo de escravidão, mas também com o racismo. Isso porque há a escravidão propriamente dita, que durou quase 400 anos, mas há também todo esse período da escravidão para cá, um século e pouco, em que o racismo tem operado. Ou seja, o impacto dos resquícios da escravidão tem operado no impedimento existencial da população negra a ponto de termos um Estado que, em meu ponto de vista, é um Estado genocida.
Então, eu fico preocupada, Fernanda.
Eu sei que é estratégico o Brasil pedir desculpas, porque o pedido de desculpa, por outro lado, é uma forma de reconhecer o fato, o evento. Mas nós precisamos cuidar disso. Preocupam-me, tanto sob o ponto de vista do Governo brasileiro, do Presidente Lula, como o do Banco do Brasil, os pedidos de desculpas para que não paremos apenas neles. E por que eu digo isso? Porque nós fomos impedidos de aprofundar, no Brasil, depois de (ininteligível), um debate sobre políticas de ações afirmativas. A nossa discussão sobre políticas de ações afirmativas não conseguiu ultrapassar as políticas de cotas. Se nós tivéssemos avançado, há 20 anos, desde quando foi proposto um debate radical sobre o que seria a política de ações afirmativas, talvez, agora fosse mais fácil desenhar por onde passaria essa perspectiva da reparação. Esse é um aspecto.
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O segundo aspecto que me preocupa — e, na verdade, eu venho aqui só falar das minhas preocupações — é o de não reduzirmos a reparação a uma política pública. A reparação não tem finalidade de se transformar em política pública. A política pública deve ser uma política instituída pelo Governo brasileiro, em função da produção das desigualdades que este País constituiu. Essa é uma questão. A reparação tem a ver com reparar monetariamente a população negra — e eu acho que temos que pensar de forma séria — dos danos causados àquelas populações que foram vitimadas pela escravidão. Eu estou falando só do período da escravidão. E, para discutirmos reparação no Brasil, vamos ter que fazer uma cronologia histórica, pensar o que significou isso tanto do ponto de vista do período da escravidão como no da contemporaneidade.
E não há como liberar na contemporaneidade os filhos dos que enriqueceram com a escravidão, porque a escravidão vai produzir um nicho de um Estado que funciona para beneficiar única e exclusivamente a população branca, a supremacia branca brasileira. A supremacia branca brasileira era sustentada pelo racismo e pela forma como este País se organizou.
Então, não preciso explicar nem justificar por que temos que trabalhar com a memória. Rui Barbosa tocou fogo, mandou queimar e destruiu todos os documentos relativos à escravidão no Brasil. O motivo, eu não quero saber. Para mim, tem a ver com o apagamento da existência desse fenômeno: não houve escravidão, foi invenção.
A ideia de se queimarem os documentos que relatavam, que detalhavam e que nos dariam um conjunto de elementos para entendermos isso melhor foram deliberadamente queimados. Portanto, memória é fundante.
E, para mim, qual é o papel do Estado? Um dos papéis do Estado é oferecer centros de estudos e pesquisas que mergulhem nos porões da história do Brasil para encontrar toda e qualquer memória que diga respeito à nossa existência. Nós precisamos trazer isso para sala de aula. Da mesma forma que o sistema supremacista branco colocou na sala de aula que nós, negros escravizados, fomos congelados na escravidão para justificar a nossa incompetência, a nossa incapacidade e a nossa ignorância, nós precisamos acordar e mergulhar nessa história do Brasil para acusar
os brancos, para que os brancos sejam constrangidos, e o Estado brasileiro tenha vergonha do que eles fizeram com o povo negro, que construiu e civilizou esta Nação.
Então, é importante a ideia de memória, de estudo, de pesquisas e a visibilidade de tudo isso. Inclusive, essa memória terá um papel importante no processo de implementação da Lei nº 10.639, porque surgirão elementos suficientes para se dizer o que o Brasil fez com o povo que deu seu sangue e gerou riqueza nesta Nação.
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Mas, nesse processo de se buscar a memória, de se fazerem estudos, a história não vai poder ser uma história homogênea, porque a história da população negra e a história da escravidão negra no Brasil não são homogêneas, são heterogêneas. Cada território brasileiro experimentou a escravidão. Cada território brasileiro tem experimentado o racismo. Cada Estado brasileiro ou cada região brasileira tem experimentado processos históricos em relação à população negra que são diferenciados. E é importante que nós demarquemos isso nos estudos e nas pesquisas em relação à memória.
Além da questão da memória, eu considero que nós precisamos avançar no debate da contemporaneidade. Qual foi o impacto da escravidão e o papel do racismo na contemporaneidade? É preciso reparar todo o processo de negação e de exclusão da população negra no Brasil.
Nós temos estudos e pesquisas sobre os impedimentos de acesso à educação no Brasil. E a reparação, quando nós formos observar os impedimentos de acesso à educação no Brasil, deve ir além das políticas de ações afirmativas, devem fazer reparação que vá além das políticas afirmativas.
Hoje, a maioria da população negra está no EJA ou ainda é analfabeta não porque não quis estudar, não porque não gostava de estudar, mas porque o Estado brasileiro construiu um longo processo de impedimento de acesso da população negra à educação. Como é que nós reparamos isso? Para mim, as políticas de ações afirmativas e as políticas de cotas não são suficientes. Por isso, nós temos que ter cuidado quando falamos de reparação.
Preocupa-me muito, Deputada Dandara, a forma como o Estado tem construído o debate em torno da reparação. Nós não podemos pensar a reparação com o controle apenas na mão do Estado. Na discussão que aconteceu em Salvador sobre memória, restituição e reparação, não havia a sociedade civil; só havia membros de Estados e agentes representantes de partidos políticos. Isso não é suficiente. A reparação não pode ser pensada a partir dessa perspectiva. A população negra tem que ser envolvida, a população negra tem que participar da discussão, a população negra tem que opinar.
Se, hoje, o Estado brasileiro constitui o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra, e o Centro de Estudos e Debates Estratégicos da Câmara dos Deputados elege o racismo como tema estratégico, é porque houve muita luta. Então, não é possível se retirar dessa população o direito de participar, porque a luta não foi do Governo, não foi dos partidos.
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É preciso reconhecer o papel político da sociedade civil, do movimento negro, do movimento de mulheres negras, do movimento da juventude negra, do movimento do povo de santo, movimentos que lutaram e têm lutado para que nós possamos avançar além do que o Estado brasileiro quer nos dar.
Nós precisamos nos libertar dessa dependência psicológica que temos do Estado e que nos leva a ficar pedindo política pública, Bolsa Família, e a pensar uma reparação desse tamanho. Isso é muito pequeno!
Eu penso que nós precisamos avançar, senão vamos ficar como um cachorro correndo atrás do rabo. Nós precisamos estabelecer um debate com o Governo brasileiro e precisamos abrir debates com outros segmentos da sociedade.
Eu considero, Deputada Dandara, que o Parlamento tem um papel superimportante nesse tema, porque, para a nossa proposta de reparação, será preciso alterar a Constituição brasileira em vários aspectos. Somos nós que trabalhamos na escala seis por um. Somos nós que vivemos em trabalho análogo à escravidão.
Empreendedorismo como está proposto é golpe. Não existe empreendedorismo sem fomento. Empreendedorismo com empréstimo é golpe. A população negra não tem capacidade de gerar riqueza para si com esse modelo de empreendedorismo, porque a responsabilidade volta para a própria pessoa.
Nós temos um Estado racista, que nos excluiu do mercado de trabalho, e, agora, é responsabilidade nossa gerar trabalho para nós mesmos, nas condições mais precárias. Do meu ponto de vista, tanto o empreendedorismo quanto a escala de trabalho seis por um são situações de trabalho análogo à escravidão.
Eu tenho certeza absoluta, Deputada Dandara, de que, ao abrir este debate, é óbvio que nós vamos ter as mais diversas resistências, que não vão se dar apenas por causa do montante da dívida. A sociedade brasileira já tem uma mentalidade de que não nos deve nada e de que nós somos o que somos porque somos incapazes e incompetentes. E isso é pressuposto do racismo.
Eu quero parabenizar vocês pelo debate. A Marcha das Mulheres Negras vem puxando o debate em torno de reparação, para nós compreendermos, do ponto de vista das mulheres negras, o que é a reparação. Nós não queremos abrir mão da contemporaneidade, porque o Estado brasileiro é quem mais mata as famílias negras, é quem mais mata a juventude negra, é quem mais mata as mulheres negras por violência obstétrica e por ausência no feminicídio. Então, meu amor, há a escravidão e há a contemporaneidade. Há dois templos de reparação.
O Luiz Alberto tinha um projeto para garantir o acesso de pessoas negras ao Parlamento por cota de cadeiras. Por isso, Deputada Dandara, eu digo que, talvez, nós tenhamos que mudar a Constituição. Não adianta nos colocar para disputar vagas no Parlamento, como se nós tivéssemos as mesmas condições que os brancos têm. "Isso é uma democracia! Vocês entram!" Isso é mentira! Isso não é verdadeiro!
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Precisamos discutir esse tema fora da bolha que eles querem nos impor. Precisamos expandir o debate, porque, no modelo que eles querem nos impor, não vamos conseguir avançar. Isso é um pouco do que eu quero dizer a vocês.
Deputada Dandara, estamos aguardando você para retomar as discussões em torno da Marcha de Mulheres Negras. Daqui a 1 ano, nós estaremos em Brasília com a chamada de reparação e bem viver. Nós queremos reparação, nós queremos fundos, nós queremos pensar em dinheiro, nós queremos tratar de dinheiro, nós queremos falar de direitos econômicos. Nós não queremos alegações como: "Ah, é uma política pública...". Nós queremos algo para além das políticas públicas.
Isso é um pouco da contribuição que eu quero dar. Eu espero ter ajudado. E quero lhe dizer que não vamos parar por aqui, Deputada Dandara. Vamos avançar neste debate, porque ele é importante, ele é rico. Acho que nós podemos colar o debate sobre reparação no modelo de trabalho, de emprego e de geração de renda no Brasil e fazer o debate em torno desses trabalhos análogos à escravidão que as trabalhadoras domésticas, que os trabalhadores de shoppings, que os trabalhadores em hotéis, que em sua maioria são pessoas negras, vivenciam neste País.
A SRA. PRESIDENTE (Dandara. Bloco/PT - MG) - Obrigada, Valdecir, pela contribuição.
Eu queria chamar aqui agora o Sr. Aurelio Guimarães Cruvinel e Palos, Secretário-Executivo do CEDES, para conduzir o restante da discussão.
Nós ainda temos mais um convidado para ouvir, o Luciano Góes, que acaba de chegar, e temos que ouvir as reflexões do consultor legislativo Marcio, que tem feito uma escrita ativa durante todo o debate. Ao final, também abriremos para a contribuição das pessoas aqui presentes.
O SR. LUCIANO GÓES - Boa noite a todas, todos e todes que estão aqui presentes e aos que nos acompanham remotamente.
É um prazer estar neste evento, nesta audiência, para falar um pouco sobre reparação e suas conexões com o trabalho do Ministério da Igualdade Racial, com o que nos movimenta enquanto Ministério, também já ratificando o compromisso do Ministério da Igualdade Racial com a nossa missão ancestral, que é falar em reparação em todos os sentidos.
Sabemos que as ações afirmativas são importantes. Eu sou fruto das ações afirmativas. Eu sou doutor em direito, sou professor universitário e, entre algumas coisas no meu currículo, tenho um Prêmio Jabuti.
Falo isso não para explicitar, invocar ou romantizar a meritocracia, muito pelo contrário. Eu estou aqui porque sou fruto da caminhada da minha ancestralidade, da nossa ancestralidade. Eu sou fruto do movimento negro.
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Em relação às cotas raciais, eu, enquanto homem negro, com a consciência de que possuo quatro vezes mais chances de ser morto no Brasil do que qualquer homem branco, sendo filho de uma empregada doméstica e de um broqueiro, sei que me colocar em determinados lugares ou abrir caminhos para chegar a determinados lugares não é suficiente. A representatividade, por si só, não é suficiente. Isso diz muito pouco em termos de reparação. Mas é, sim, muito importante a ampliação da política de ações afirmativas no Brasil, sobretudo por conta da Convenção Interamericana, que, com o seu status de emenda constitucional, sedimenta a discussão sobre a constitucionalidade e a legalidade das ações afirmativas em todos os seus âmbitos, em todos os lugares devidos.
Para além disso, falar em reparação é falar no pedido de perdão que foi assinado na semana passada pelo Ministro Messias, da Advocacia-Geral da União, em um evento com o Ministério da Igualdade Racial. Esse pedido de perdão à população negra pelos 388 anos de escravização abre muitos caminhos para a reparação, de fato. O Brasil entra para um rol de entes que já pediram perdão ao redor do mundo, entre os quais temos Portugal, temos a Igreja Católica, com dois Papas, temos várias outras instituições. Mas isso também ainda é muito pouco. Caminhamos muito pouco em termos de reparação, porque, como disse, cotas são muito pouco, apesar de seus efeitos concretos.
Ao pensar em reparação, já pensando também no trabalho que desenvolvemos no Ministério da Igualdade Racial, de forma coletiva, porque só assim nós sabemos fazer o nosso trabalho, já que esse é princípio fundamental para nós, princípio ancestral, pensamos as reparações em outros campos.
Em todas as políticas pensadas no MIR, com o MIR — e, em nenhuma delas, a população negra, a sociedade brasileira está excluída do diálogo, muito pelo contrário —, pensamos também a partir de outros marcos normativos.
Pensar em reparação é pensar na Resolução nº 66/145, das Nações Unidas, que fala sobre direitos das vítimas de crimes contra a humanidade. E aí o rol de violências contra a população negra é muito amplo e talvez seja incomensurável, porque podemos pensar — e devemos pensar — para além de lugares no poder, para além de possibilidades de construirmos políticas públicas em termos de protagonismo. Não nos esqueçamos jamais das dores causadas! E aí pensar em reparação é algo muito mais complexo. É pensar, por exemplo, na impossibilidade de termos uma árvore genealógica, na impossibilidade de termos os nossos devidos nomes e sobrenomes, por conta das Ordenações Filipinas,
que nos tratou como coisas e nos impôs a obrigatoriedade de sermos batizados quando nesta terra fomos descarregados.
Eu digo isso por conta do meu sobrenome. Góes não é o sobrenome dos meus ancestrais, das minhas ancestrais. Góes é um sobrenome português. E, assim como aconteceu com muitos homens negros e muitas mulheres negras, essa marca foi deixada na minha família como marcação de propriedade, como se marca o gado.
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Nós pensamos, no Ministério da Igualdade Racial, em todas as possibilidades, em todos os caminhos que nos são devidos, são devidos às futuras gerações e são devidos às gerações que já não estão mais aqui neste plano, mas que ainda conduzem as nossas discussões.
Faço agora um aparte para falar como o professor, o pesquisador Luciano Góes, o doutor, no âmbito do direito, no âmbito jurídico. Eu vou falar em reparação também no âmbito jurídico, porque não bastam apenas leis antirracistas ou que combatam qualquer tipo de manifestação do racismo. É preciso mexer na estrutura da construção subjetiva da população brasileira, é preciso mexer com a branquitude, é preciso mexer ou romper os pactos com a comunidade jurídica, que coloca a branquitude não apenas em termos corpóreos no nosso Judiciário, que tem quase 90% de pessoas brancas, mas também a partir de princípios, a partir dos seus marcos.
É preciso questionar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que surgiu para reparar a dignidade da própria branquitude, quando o povo judeu foi submetido às violências raciais perpetradas por Hitler e que depois foram reformuladas em termos do nazismo e, na sequência, do fascismo. A base racista dessa violência está colocada lá.
E também temos que tratar sobre epistemicídio. Como reparar o epistemicídio em que nós estamos colocados, no âmbito jurídico, por exemplo? Como pensar um sistema de justiça ou de justeza afrodiaspórico, que vai ter como símbolo Xangô, por exemplo, e Oiá? É impossível falar de Xangô sem falar de Oiá, sem mencionar as outras iabás, por óbvio. São outros modelos de justiça, são outras propostas de justiça, são outros princípios e direitos colocados.
O princípio da não discriminação colocado na convenção ainda não é suficiente para alcançarmos esse nível de reparação. É preciso avançar, pensar no princípio da não discriminação racial, e o Ministério da Igualdade Racial também está pensando nisso.
Para além dessas questões, ainda é preciso mencionar o confronto, o enfrentamento do racismo religioso, por óbvio, as questões jurídicas próprias das matrizes africanas, aí pensando nos valores civilizatórios africanos e princípios africanos relacionados à justiça, à responsabilização, e não à punição ou ao punitivismo. Essas questões também estão colocadas nesse rol a ser reparado.
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19:12
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Apesar de estarmos pensando sempre em reparação e em avanço, ainda encontramos vários obstáculos. Um deles foi colocado hoje, quando o STF firmou maioria para possibilitar o uso de símbolos religiosos nos espaços públicos.
Óbvio que não estão falando dos nossos símbolos; óbvio que não estão falando das nossas imagens, dos orixás, das orixás, das iabás ou de qualquer outro símbolo relacionado à nossa justiça. Mas essa maioria formada pela Suprema Corte também nos possibilita usar esse mesmo instrumental para combatermos o racismo religioso, enquanto base do racismo estrutural, ou seja, enfrentando o epistemicídio, trazendo outros princípios: o princípio da ancestralidade e o princípio da coletividade, por exemplo, entre muitos outros.
É óbvio que, quando nós fizermos isso, seremos atacados. Vejam que a possibilidade de manusearmos, de usarmos o espaço público para o uso de símbolos religiosos que não são os dominantes, que não são os da branquitude, nos coloca de novo enquanto alvos.
Então, a título de estarmos avançando na discussão, ou em qualquer possibilidade de estarmos avançando nesse campo, nós estamos regredindo e nos colocando numa situação muito perigosa, sobretudo no contexto político no qual nós vivemos. Todas essas questões estão sendo colocadas e pensadas.
Volto à Resolução nº 66, da ONU, para pensar as medidas efetivas, que já são inclusive pacificadas na Corte Interamericana de Direitos Humanos, como o princípio da restituição. E é restituição financeira, econômica, sim, mas não apenas isso.
Outra medida é a garantia da não repetição. E pensar a medida de reparação em termos de garantia da não repetição é pensar em enfrentamento do encarceramento da massa negra, do genocídio da população negra e outras questões que estão na nossa pauta cotidiana.
Pensar em outra justiça é pensar também nessas políticas e, sobretudo, na política de drogas, que nós temos que enfrentar com seriedade, pensando nos efeitos do racismo, não apenas no seu resultado final, mas também na sua base, nas suas justificativas mais básicas.
Vejam que a pauta de reparação é muito ampla, é muito complexa e, sobretudo, muito dolorosa. É dolorosa tanto em termos individuais quanto em termos coletivos. Mas, em todos os âmbitos, em todos os sentidos, em todas as encruzilhadas que nós nos colocamos nesta discussão, o Ministério da Igualdade Racial está, sim, pensando e comprometido com a reparação, no que for possível, ao povo negro brasileiro e à sociedade brasileira como um todo.
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19:16
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Antes de passar a palavra ao consultor legislativo organizador do estudo, o Dr. Marcio Rabat, eu vou pedir licença para fazer algumas considerações a respeito da audiência de hoje.
É com grande atenção que nós acompanhamos esta audiência do CEDES. O tema que nos reúne hoje é Responsabilidade estatal e reparação de crimes de escravidão e racismo.
A escravidão e o racismo são feridas profundas. Nós pudemos perceber pelos dados e números que foram evidenciados aqui nas palestras que essas são feridas profundas em nossa história, cujas consequências ainda determinam a desigualdade que marca a nossa sociedade. Nesse cenário, a atuação do Estado não é apenas uma necessidade ética; é também uma obrigação histórica.
Nos últimos anos, a Câmara tem aprovado medidas importantes para enfrentar o racismo e buscar a reparação histórica. Ainda em tramitação, nós discutimos propostas fundamentais, como a ampliação de políticas afirmativas em universidades e no mercado de trabalho; a criação de um fundo para reparações, ainda incipiente — já existem essas propostas, mas ainda estão em uma discussão incipiente —; ações voltadas à educação antirracista, além de medidas para enfrentar a violência policial contra a população negra.
Esta é uma oportunidade para nós aprofundarmos o debate — e foi uma oportunidade bem proveitosa até o momento — sobre como a responsabilidade estatal pode se traduzir em ações efetivas de reparação.
Nós precisamos de políticas públicas que combatam a desigualdade racial e de gênero de forma sistêmica e estrutural.
Eu não teria nada específico a falar. As falas foram muito ricas. Eu queria apenas sedimentar aqui um pacto. Nós contamos com a colaboração das pessoas que estão aqui, que deram contribuições muito importantes.
Uma das poucas vantagens da idade é já ter passado por muita coisa. Eu comecei a trabalhar com este tema aqui ainda com o saudoso Deputado Luiz Alberto, na década de 90. Eu tenho certo orgulho de ter escrito, talvez, o primeiro estudo mais sedimentado sobre a constitucionalidade das ações afirmativas, aqui na Câmara, na década de 90. Eu devo ao Deputado Luiz Alberto o estímulo e a participação.
Depois, eu fiquei imensamente impressionado com a qualidade da discussão na primeira Comissão aqui da Câmara que tratou do Estatuto da Igualdade Racial. Até acho que o estatuto ficou um pouco abaixo da discussão. Mas, de qualquer forma, foi um passo importante.
E, agora, eu fico feliz de novo — eu fui convocado pela Deputada Dandara para seguir nessa caminhada —, ao ver o salto de qualidade que houve nas pesquisas nos últimos 10 anos.
Nós temos aqui uma pesquisadora, por exemplo, do sistema judiciário em Moçambique, no começo do século XX, na passagem do século XIX para o século XX.
É certa ousadia ir conhecer todo esse complexo da situação do Atlântico novecentista. Há outros trabalhos que eu tenho lido com uma qualidade realmente impressionante e que mudam as perspectivas, não só sobre a famosa questão racial, mas também sobre outras questões da própria história do Brasil e que criam a perspectiva do Brasil sobre a história mundial, o que eu acho que é algo muito importante.
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19:20
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Fiquei muito impressionado com o Grupo de Estudos Sócio-Fiscais, da Universidade Federal de Goiás. Há relativamente pouco tempo, não tínhamos estudos tão focalizados, que trazem todo esse material de uma forma que possa efetivamente colaborar com a formulação de programas.
Portanto, termino minhas palavras dizendo que fiquei muito feliz de ouvi-los. Peço que mantenhamos contato, porque vocês têm muito a colaborar com o trabalho que vai ser feito aqui. Há outros colegas da Consultoria que vão participar dele, mas nós queremos muito que haja também colaborações de fora da Câmara, para que seja algo mais amplo.
Acho que eu posso dizer que estou falando pela Deputada Dandara, não é? Que esse seja um trabalho mais aberto.
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