Horário | (Texto com redação final.) |
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A SRA. PRESIDENTE (Natália Bonavides. Bloco/PT - RN) - Bom dia.
Declaro aberta esta reunião de audiência pública da Comissão de Desenvolvimento Urbano, convocada em razão da aprovação dos Requerimentos nºs 57 e 66, de 2023. Esta reunião tem o objetivo de debater os Desafios para a constituição de um Sistema Único de Mobilidade no Brasil.
Aproveito o momento para informar que este evento está sendo transmitido ao vivo na página da Câmara dos Deputados e no Youtube, no canal oficial da Câmara. Inclusive solicito aos senhores e às senhoras que, quando forem fazer uso da palavra, liberem os microfones por este botão.
Eu queria convidar para compor a Mesa o primeiro bloco de expositores: Sra. Annie Oviedo, analista de mobilidade urbana do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor — IDEC; Sr. Daniel Caribé, Diretor-Executivo do Observatório da Mobilidade Urbana de Salvador — ObMob Salvador; Sra. Rafaela Albergaria, gestora pública do Observatório dos Trens; Sr. Antonio Maria Espósito Neto, Coordenador-Geral de Regulação da Mobilidade Urbana da Secretaria Nacional de Mobilidade Urbana do Ministério das Cidades; e Prof. Enilson Medeiros, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que se encontra on-line. Participa conosco da reunião através do Zoom.
O tema desta nossa primeira Mesa será: Sistema Único de Mobilidade (SUM) e gestão: inovações possíveis em participação popular, transparência e controle na prestação do serviço de transporte público.
Antes de passar a palavra para a Sra. Annie, eu queria fazer um registro muito importante. Ontem foi aprovado, aqui nesta Casa, que o Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, o Dia de Zumbi dos Palmares, vai ser feriado nacional. Aqui, hoje, 30 de novembro, último dia do mês da consciência negra, discutimos um tema tão relevante, porque, como todos os outros temas relativos a direitos sociais, é atravessado pelas implicações de raça, de classe e de gênero. Estarmos aqui hoje, 1 dia depois da aprovação dessa matéria tão importante, é muito significativo para nós.
Nossa dinâmica será assim: cada uma e cada um de vocês terá entre 7 e 10 minutos, e as pessoas que participam de forma virtual podem mandar perguntas através do Youtube, que nossa assessoria estará coletando. Se for o caso, vai me transmitir para que eu possa fazer a vocês.
Em seguida, dando continuidade ao evento, teremos mais duas Mesas, que eu vou anunciar, a título de informe, para quem nos assiste on-line. O tema da segunda Mesa será Formas de financiamento do Sistema Único de Mobilidade (SUM) e do Passe Livre e o da terceira, Sistema Único de Mobilidade (SUM) e mudanças climáticas: transporte público como ferramenta de enfrentamento das mudanças.
A SRA. ANNIE OVIEDO - Em primeiro lugar, agradeço muito pelo convite. É um prazer estar aqui para conversar sobre este tema.
Eu vou fazer uma introdução geral, brevemente, do que pretendemos aqui quando falamos de Sistema Único de Mobilidade — SUM.
Temos no Brasil outros tipos de sistema único, a começar pelo Sistema Único de Saúde e o Sistema Único de Assistência Social, que são dois modelos bem-sucedidos de política pública. Qual é a grande questão que queremos trazer para um sistema único de mobilidade?
São os aspectos principais desse modelo.
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Na saúde, numa ponta temos o Governo Federal, que constrói as principais diretrizes. Temos o Conselho de Saúde, temos o Ministério, e tal. O Governo Federal não tem como falar sobre o que vai ser feito na UBS que me atende no centro de São Paulo, mas o Governo Federal pode decidir ter uma campanha de vacina, pode decidir implementar um novo modelo de saúde da família, que são diretrizes gerais. Lá na outra ponta, sabemos que quem entende quais são as necessidades básicas daquela população é o posto de saúde, a Unidade Básica de Saúde — UBS, que está capilarmente próxima dos habitantes daquele território.
A nossa ideia, ao falar de SUM, é exatamente essa. Hoje, qual é o nosso modelo? O Município é quem lida com a mobilidade urbana, e sabemos que o Município não dá conta de lidar com a mobilidade urbana. Vivemos num país em que as tarifas são muito altas, a qualidade do serviço é péssima, para usar um eufemismo, e, em última análise, não há qualquer tipo de transparência sobre como é gasto esse dinheiro. São Paulo é a cidade que mais gasta com subsídio. Não sabemos exatamente o que esse subsídio paga e o que financia, para além das empresas de ônibus.
Então, do que estamos falando aqui? Vamos tentar garantir a autonomia dos Municípios, para que eles possam prestar esse serviço de maneira capilar, estruturando esse sistema, dando a eles a capacidade de entregar esse serviço, exatamente como a saúde funciona. O Município entrega o serviço de saúde porque tem uma estrutura de recursos que é provida pelo Governo Federal. Então, estamos pensando isso dessa maneira.
Qual é a nossa ideia aqui? Começamos lá no Município, melhoramos a estrutura de participação social e vimos subindo; no Estado, temos um sistema de gestão das regiões metropolitanas, o incentivo à produção, construção de consórcios e um sistema para lidar com o transporte intermunicipal, interurbano; aí, subimos mais e chegamos ao Governo Federal, em que temos um debate sobre como distribuir esses recursos e quais são as diretrizes básicas dessa política.
Por exemplo, está acontecendo a COP. O Presidente deste País está lá, assim como vários Deputados. Pode ser doloroso falar isso, mas não há como todo mundo sair de casa com seu próprio carro e moto e continuar existindo neste planeta. Tudo bem, eu entendo que o niilismo de "vamos nos extinguir" pesa mesmo às vezes, mas, se não investirmos no transporte público, nós não vamos conseguir viver nas cidades. Já mal conseguimos viver, e a tendência é só piorar. Então, por que não trabalhamos o transporte público, que hoje é uma barreira social, aprofunda as desigualdades socioeconômicas e a segregação nas cidades? Por que não transformamos isso num instrumento de aprofundamento democrático e de combate às desigualdades e às mudanças climáticas?
Temos que ter em mente que hoje, nas cidades, o transporte é o principal gerador de poluentes. Os ônibus são a diesel — tudo bem, eles já são Euro 5, e tal, não em todo lugar, evidentemente. Mas, mesmo com o Euro 5, o particulado do diesel flutua no ar, bem pertinho de nós. Nós que pegamos ônibus é que estamos respirando as partículas do diesel. Eu fumo cigarro, então meu pulmão está preparado. Mas, enfim, teremos problemas.
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A questão é muito simples. A mobilidade urbana é a estruturante das cidades. Então, por exemplo, recentemente, em São Paulo, houve a greve dos metroviários da CPTM. É essencial que o debate sobre como financiamos esses eixos seja feito de maneira pública. Em São Paulo, o que acontece hoje? O plano diretor diz que onde existe metrô você pode subir prédio da altura que for. Desde que você pague, você pode subir prédio. O plano diretor tem todos os problemas, mas o que é isso? É estruturar em torno dos trilhos: onde existe trilho e transporte de altíssima capacidade eu quero concentrar as pessoas. Isso é estruturar a cidade. Não tem como abrirmos mão dessa discussão. Simplesmente isso não é possível, porque, quando é assim, nós vemos o que acontece com esse sistema: a qualidade piora, temos uma situação de piora da segurança pública. Enfim, todo mundo deve ter visto que nas linhas privatizadas em São Paulo os trens colidiram, elas pegaram fogo recentemente. Gente, andar na via é um negócio periclitante.
O que estamos pensando aqui? Se conseguirmos ter um modelo estruturante de política pública, que tenha recursos, o que conseguimos fazer? Nós conseguimos coordenar os esforços gerais das cidades e dos Estados no sentido de entregar um serviço de qualidade com o transporte público sendo um instrumento para a ampliação democrática. E qual é a grande questão em torno disso? Sem transporte eu não consigo acessar outros serviços e direitos. E tanto isso é verdadeiro — e nós sabemos que os Governos entendem esse fato — que na eleição presidencial de 2002 houve o quê? Tarifa zero em mais de 200 Municípios, em todas as capitais deste País. Então, foi boa essa ideia de transporte gratuito no ENEM em várias capitais e transporte gratuito na eleição dos conselhos tutelares em várias capitais. Qual é o fundamento disso? Que a tarifa é uma barreira. Então, as pessoas não conseguem ir lá exercer seu direito, seu dever de votar, porque há uma barreira social. Agora, se isso é uma barreira no dia das eleições, é evidente que é uma barreira nos outros dias também. Não tem cabimento nós acharmos que, passadas as eleições, tudo vai dar certo para transitarmos por aí à vontade.
Então, nós já estamos vendo que há um fundamento para isso, é evidente. E hoje estamos chegando a 90 cidades que já têm tarifa zero.
Eu vou dizer uma coisa penosa aqui, e talvez os meus amigos da Mesa deem uma discordada, mas as várias cidades que implementaram tarifa zero o fizeram da maneira que puderam. Então, por exemplo, Maricá é uma cidade que tem muito dinheiro por conta dos royalties do petróleo. Ela implementou. Caeté, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, segurou na mão de Deus — ela não tem dinheiro, porque o território é muito grande, enfim — e implementou. Isso é muito interessante. Nós estamos vendo a pauta pipocar, certo? Ocorre que — e é por isso que insistimos num projeto de sistema único — sem transparência nós estamos pegando esse dinheiro e jogando numa grande fogueira.
Essas cidades, em sua maioria, não têm uma estrutura transparente de custeio dos sistemas. Então, o que nós vemos é que eu, poder público, pego o meu dinheiro, entrego na mão dos empresários que operam o sistema e garanto a tarifa zero. Ótimo! Mas sem transparência o dinheiro público não é gasto de uma maneira adequada. E qual é uma das vantagens fundamentais? Nós achamos que temos que começar a estruturação de um sistema único pensando no novo modelo de remuneração.
O Ministério dos Transportes, nos anos 80 e 90 — sou jovem, não falo por experiência própria —, tinha um modelo de cálculo, que era o GEIPOT. O GEIPOT tinha lá seus defeitos.
Não estamos questionando isso, mas ele era um modelo para uma cidade que tem uma Secretaria de Transporte e Mobilidade com três pessoas que conseguiam pegar do Ministério das Cidades e falar: "Eu vou implementar". Hoje, isso não existe mais, e nós sabemos que as cidades, especialmente as pequenas e médias — mas as capitais também — não têm condição de pensar um modelo próprio de remuneração, não têm estrutura técnica básica para isso.
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Hoje, nós estamos vendo que a pauta é urgente, porque um monte de cidades está implementando, mesmo que não tenham um formato adequado de investimento e custeio. E qual é o papel, principalmente inicial, da construção de um sistema único? Ter modelos de remuneração. O Ministério das Cidades precisa ter um modelo de remuneração para chegar na cidade e falar: "Meu amigo, toma um livrinho para você aprender como é que faz". E nós sabemos que tendo um modelo já é difícil, porque, enfim, há questões políticas do relacionamento com os empresários de ônibus. Vamos permanecer aqui nos eufemismos possíveis.
Então, o que estamos vendo hoje é: a pauta é urgente, as cidades estão implementando, o sistema não é transparente, é uma grande fogueira de dinheiro público, que é uma coisa, em geral, um pouco escassa.
A proposta geral de um sistema único é essa: vamos estruturar o gasto público, vamos garantir recurso para conseguirmos chegar na capilaridade, lá na ponta, nas cidades e garantir o serviço de qualidade.
Eu entendo que a discussão na Câmara é delicada, porque a pauta é de prerrogativa dos Municípios, mas o que estamos propondo aqui é dar estrutura e recursos para os Municípios. E eu vou dar um exemplo concreto, o PAC. Vários Municípios pediram dinheiro para construir trilho. Maravilhoso, brilhante, ótimo! O trilho é um negócio eficiente, o trilho é um sistema elétrico, é uma energia limpa — eu sei, depende da energia elétrica, mas não vamos entrar nesse mérito agora —, e o que acontece? Se tivéssemos um sistema único implementado, poderíamos ter um debate geral sobre como fazer para implementar os trilhos. Nós vamos cavar túnel? Nós vamos colocar VLT? O que vamos fazer?
Nós podemos fazer um debate amplo. Mas, nesse momento, nós não temos como fazer, e aí vai pingar dinheiro para fazer essas obras, talvez, sem que haja uma estruturação mais ampla disso. E é um dinheiro alto, é uma obra estruturante.
Nós, com muito trabalho e afinco, produzimos essa proposta aqui, que é um textão longo, porém belo, fofo e moral, falando sobre os pressupostos básicos para começarmos a discutir um Sistema Único de Mobilidade. E eu queria concluir falando o seguinte: nós sabemos que é uma proposta utópica, que é difícil e está distante, mas, 60 anos atrás, o SUS também era. As pessoas estão militando há 80 anos pela existência de um Sistema Único de Saúde. O sistema foi implementado, e nós brigamos para ele ser democrático, eficiente e um garantidor de direitos.
Então, eu gosto de pensar que não importa o quão utópico isso seja, mas temos que começar por algum lugar e temos a oportunidade de fazer agora. Nós podemos começar essa conversa e podemos finalmente chegar a um lugar em que o transporte, ao invés de ser uma barreira social, vai ser um meio de aprofundamento democrático neste País.
A SRA. PRESIDENTE (Natália Bonavides. Bloco/PT - RN) - Muito obrigada, Annie. O tempo foi perfeito.
Quero aproveitar para dizer que quem quiser pode olhar naquele placar o tempo que ainda resta. O relógio ali vai correndo.
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Muito obrigado pela oportunidade de estarmos aqui conversando sobre um tema tão caro para nós dos movimentos sociais da sociedade civil brasileira, que é a mobilidade urbana. Apesar de esse tema ser um dos caçulas das nossas lutas, ele não é tão caçula assim. É sobre isso que eu vou falar um pouco aqui para vocês.
Obrigado, Deputada Natália Bonavides. Obrigado, Deputado Boulos. O Deputado Boulos não pôde estar presente, por conta das greves em São Paulo, mas quero agradecer a ele também por ter permitido que esse espaço acontecesse. Agradeço também, claro, aos meus colegas da Coalizão Mobilidade Triplo Zero, por estar nessa luta junto comigo.
Eu acho que o Estado brasileiro, de certa forma, a Nação, o Brasil, tem uma série de dívidas históricas com a sua população. E algumas dessas dívidas estamos, aos poucos, conseguindo evidenciar, desvelar, fazendo com que o Estado brasileiro, com que a sociedade brasileira, com que o País, no geral, assuma que tem essa dívida, por mais que seja uma forma de assumir um pouco cínica, porque não enfrenta de verdade esses problemas. Por exemplo, ontem, este Congresso reconheceu o 20 de Novembro como um dia importante para este País, uma data histórica, e ela se tornou feriado.
Nós temos uma série de conquistas. Nós já tivemos derrotas também, mas, ultimamente, temos tido algumas conquistas no campo do reconhecimento de que o Estado brasileiro foi fundamentado no racismo e também nas questões de gênero. Enfim, o Estado brasileiro tem uma série de dívidas com a sua população, e isso faz com que o que chamamos de novos direitos sociais surjam, sejam reconhecidos como uma forma de mitigar alguns problemas e haja disputas por recursos.
Eu sou administrador público e eu tinha um professor que falava que uma das maiores expressões da luta de classes é o orçamento público. Podemos reconhecer direitos, como, por exemplo, reconhecemos, em 2015, o direito social ao transporte, que é o direito social caçula da nossa Constituição, ao lado do direito à saúde, do direito à educação, do direito ao trabalho, mas é um direito que, na prática, não se realiza. Não é à toa que nós estamos aqui hoje falando sobre o Sistema Único de Mobilidade. Então, ele um direito reconhecido. Nós temos uma lei, de 2012, avançadíssima, que é a Política Nacional de Mobilidade Urbana, que também não se realiza. Então, nós temos direitos reconhecidos institucionalmente, mas, na prática, não se concretizam.
A mobilidade urbana, apesar de emergir como um direito ao transporte, de emergir como esse conjunto ou esse direito social novo, junto com outros direitos, como o direito ao meio ambiente também, um direito social de quarta geração, de terceira geração, que está emergindo nos últimos anos, são questões que atravessam a vida das cidades brasileiras há muito tempo. Nós temos, por exemplo, no Brasil, uma série de revoltas populares, que não começaram em 2013, que não começaram nem em 2003, quando falávamos do MPL, e não vão terminar em 2003, com a Revolta do Buzo, em Salvador. Muito antes disso, nós tivemos revoltas no País. Tivemos o Quebra Bondes; a Revolta do Vintém, no Rio de Janeiro; a Revolta das Barcas, em Niterói. Se cavoucarmos aqui em Brasília também, que é uma Capital recente, vamos encontrar revoltas com relação ao transporte público coletivo. São revoltas que acontecem há muito tempo, são revoltas que têm um caráter de classe, que têm um caráter racial, porque as populações que mais dependem do transporte coletivo são as populações periféricas.
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No Brasil, por conta da formação de cidades segregadas... Eu me refiro a cidades coloniais, como Salvador, e também a cidades novas, como Brasília. Se pegarmos a distribuição racial das cidades brasileiras, vamos ver quem está nas periferias das cidades brasileiras. E o transporte tem um papel fundamental, primordial, estruturante na constituição de cidades segregadas socialmente, mas racialmente também. É claro que há outras pessoas que sofrem também por conta desse transporte público segregador. Estou falando especialmente da população negra, é claro, mas o transporte também é atravessado por questões de gêneros de forma muito profunda, por conta do assédio e por conta do padrão de deslocamento das mulheres, que são duplamente penalizadas, mas são duplamente penalizadas pela forma como o transporte público é organizado para atender apenas o mercado de trabalho formal. Aí entram também as pessoas com deficiência, que é outro público que temos que começar a incluir nas nossas políticas e nos debates com mais seriedade.
Então, temos uma série de revoltas que configuram a história do Brasil, e demorou muito para que elas sejam reconhecidas enquanto tal. Quando, em 2013, eclodiu no Brasil aquele conjunto de revoltas, nada mais foi do que o reconhecimento de que se tratava de uma questão nacional, não era mais uma questão local, não era uma questão de Salvador, não era uma questão de Brasília, não era uma questão de Belo Horizonte, mas uma questão do País. Pequenas e médias cidades também enfrentam um grande problema de transporte público.
Então, em 2013, emerge esse conjunto de lutas contra os aumentos tarifários, apresentando a tarifa zero como a solução possível para essa crise verde. Quando eu falo de solução possível para essa crise, não se trata apenas de derramar recursos no bolso dos empresários, trata-se de apresentar uma solução para o transporte público que o realize como um direito social que combata a desigualdade neste País. Então, apresenta-se esse projeto político para as cidades brasileiras, a tarifa zero. E, em 2015, temos, finalmente, por meio de uma PEC da Deputada Luiza Erundina, o reconhecimento do transporte como direito social.
Agora precisamos dar um passo a mais. Agora precisamos dar um grande passo a mais para que esse direito social aconteça de fato, para que ele não seja apenas uma letra morta na nossa Constituição, para que ele não seja apenas uma forma de dizer: "O.k. Vocês venceram nas ruas, vocês venceram no debate público, mas, na prática, nada mudou na vida de vocês. Na prática, vocês continuam pagando muito caro pelo transporte público. Vocês continuam tendo uma infraestrutura urbana da mobilidade ativa precaríssima". Por exemplo, agora em Salvador, fizemos uma auditoria da malha cicloviária, que já foi feita em outras cidades do Brasil, e nós percebemos que, até na infraestrutura cicloviária, a desigualdade, as segregações raciais e de gênero se reproduzem. Em todos os aspectos da mobilidade urbana, como na qualidade das calçadas, na qualidade da iluminação pública, as desigualdades são reproduzidas pela forma como nós ainda pensamos a mobilidade urbana neste País.
Então, precisamos, primeiro, entender que precisamos avançar. Ontem, eu estava conversando com alguns colegas meus aqui de Brasília. Eu estava explicando para eles o que era a proposta do Sistema Único de Mobilidade. Aí eles falaram: "Todo mundo quer um SUS". Sim, todo mundo quer um SUS, porque, no Brasil, o SUS, como todas as suas deficiências, com todas as suas necessidades de avançar, de melhorar, talvez seja a única política civilizatória deste País, a única política que beneficia toda a população.
Nós queremos o Sistema Único de Mobilidade inspirado no SUS, exatamente para que a mobilidade urbana também seja uma política.
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Hoje, no Brasil, sofremos com a desarticulação das políticas de transporte, das políticas de mobilidade urbana, de forma muito severa, especialmente nas regiões metropolitanas, onde o Estado não dialoga com os Municípios. Se o administrador de um Município de uma região metropolitana for de um determinado partido e o administrador de outro Município limítrofe for de outro partido, cada um tem a sua própria política de transporte. Aí entra o Governo do Estado com o transporte metroviário e diz que é de outra forma. Esses sistemas de transporte, portanto, não dialogam, e o Governo Federal, por sua vez, se desestabiliza nesse processo ou, então, cria suas próprias políticas de financiamento de infraestrutura, que também não dialogam com os Municípios, que não dialogam com o Governo do Estado, e isso vira um caos.
Às vezes, há derramamento de recursos. Não se iludam! Há muito recurso na mobilidade urbana no País. Há megas obras, há agora o novo PAC. Há bilhões para a mobilidade urbana, como já houve em outros momentos do País, mas não resolve o problema. As cidades brasileiras continuam reproduzindo desigualdades, continuam reproduzindo segregações, por mais que haja investimentos públicos nessa área, porque não há articulação, não há um propósito nessa política. O Estado brasileiro ou a Nação brasileira não se pergunta: O que eu quero com esse metrô? O que eu quero com esse BRT? O que eu quero ao desativar o trem do subúrbio de Salvador para colocar o monotrilho? O que eu quero ao transferir o metrô do Estado para a iniciativa privada? O que se pretende com isso? Qual o propósito disso? Que tipo de cidade pretendemos construir? Não se responde isso. Nem se pergunta isso na verdade, porque não temos, de fato, uma política estruturada de transporte público.
Então, eu acho que essa dívida social, histórica, que não é desta última década, é de muito tempo, é da formação da cidade brasileira, precisa ser encarada, precisa ser assumida e precisa de uma resposta, de uma resposta nacional. É um problema nacional, não é um problema local, não é um problema das Capitais, é um problema das cidades pequenas, das cidades médias. Na pós-pandemia, vimos o colapso do sistema de transportes públicos em várias cidades do Brasil e a tarifa zero emergiu com uma solução possível, como foi colocado pela Annie, para resolver esse problema. E nós precisamos agora que os Governos Estaduais entendam que fazem parte do problema e fazem parte da solução.
A SRA. PRESIDENTE (Natália Bonavides. Bloco/PT - RN) - Obrigada, Daniel.
Eu sou a Rafaela Albergaria, sou assistente social de formação, mestre em serviço social, articuladora de um movimento que se chama Mulheres Negras Decidem, faço parte da Coalizão Triplo Zero — zero mortes, zero emissão e zero tarifa — e sou idealizadora e coordenadora do Observatório dos Trens, uma iniciativa que surgiu na cidade do Rio de Janeiro, numa intencionalidade de pensar como o deslocamento e a mobilidade impactam a vida da população.
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Nós temos dedicado o nosso trabalho a produzir dados e a mapear a realidade das populações que vivem nos centros urbanos brasileiros, tentando trazer à tona as demandas que são produzidas pela mobilidade, pelas estruturas e pelos sistemas de transporte.
Lançamos, no início do ano, um estudo que se chama No transporte, quem tem menos paga mais, que é um estudo que desnuda a realidade de como as populações mais vulneráveis são profundamente impactadas pelas estruturas de transporte, no sentido de aprofundamento, inclusive das desigualdades sociais. Temos hoje um único instrumento que fala sobre comprometimento de renda com transporte previsto na CLT, que é a lei do cartão de passagem para os trabalhadores, que diz que o trabalhador só pode ter comprometido até 6% da sua renda com transporte.
Vivemos hoje, aprofundado principalmente pela dimensão da pandemia, uma realidade de desemprego e informalidade. Temos uma população de desocupados muito grande. O Rio de Janeiro e São Paulo são Estados onde esses dados são alarmantes. Olhando para a Região Metropolitana do Rio de Janeiro, onde temos nos dedicado a organizar esses dados, o trem é o único modal a atravessar 12 Municípios da Região Metropolitana do Rio. Desses 12 Municípios, 11 ficam na Baixada Fluminense, onde estão os Municípios com os piores indicadores de desenvolvimento humano e com os indicadores mais alarmantes sobre as injustiças que são produzidas pelo sistema de transporte.
São João de Meriti, Mesquita, Queimados, são Municípios que têm mais de 80% da sua população economicamente ativa no desemprego, na informalidade, na desocupação, e uma dependência muito grande de oportunidade na cidade do Rio de Janeiro. Mais de 2 milhões de pessoas que saem desse território com viagens de quase 6 horas por dia para acessar oportunidade na cidade do Rio de Janeiro são impactados em 56% de um salário mínimo — 738 reais por mês — só com transporte. Se pensarmos, 6% dariam um valor de passagem de 1 real e 65 centavos por percurso, considerando os 6% e levando em consideração que a renda média de um trabalhador fluminense é pouco mais de um salário mínimo. Isso é também uma disparidade muito grande de quem está na informalidade, no desemprego, ter esse impacto brutal na renda com o transporte. Isso é impedir e aprofundar as relações de desigualdade. No pós-pandemia, vivemos o aumento da passagem ainda, em grande medida, associado ao IGP-M, que é um índice que está associado ao dólar. E, na verdade, a manutenção não se faz associada ao dólar.
A Annie traz a dimensão de como precisamos pensar outras perspectivas de modelos de operacionalização do transporte. Paique também tem uma contribuição. Nós coordenamos e produzimos um livro que se chama Mobilidade antirracista, que faz o debate de que hoje o transporte público replica a lógica dos navios negreiros. A mercadoria são as gentes que são transportadas dentro desses transportes superlotados. Isso impacta no aprofundamento da desigualdade das pessoas que têm sua relação de dependência no transporte público.
Hoje, vemos no Rio de Janeiro, mas também em São Paulo, enfim, em várias Capitais, a ampliação da população em situação de rua parcial, população que tem casa, mas que não consegue voltar para casa todo dia, por causa do preço da passagem,
ficando numa situação profundamente desprotegida e vulnerável por causa do preço da passagem.
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Nesse sentido, temos feito o debate sobre a necessidade de criação do Sistema Único de Mobilidade. A Annie trouxe a dimensão de que essa é uma responsabilidade do Município, mas, na verdade, vivemos sob o modelo federalista, que é um modelo que envolve União, Estados, Distrito Federal e os Municípios. A produção de políticas, a regulamentação das políticas sociais que estão instituídas dentro da Constituição Federal, todas essas esferas de poder têm a responsabilidade de regulamentação dessas políticas.
Na verdade, a política de mobilidade é uma política que foge inclusive à modernidade. Temos feito esse debate. É muito importante entender que a repartição da cidade fundamenta inclusive o modelo rodoviarista. Não dá para discutir um sistema de transporte, um sistema de mobilidade que pense o enfrentamento das desigualdades. É importante entender que o debate de mobilidade e transporte é um debate que atravessa um elemento que é fundante do sistema democrático, que é a liberdade. Temos que nos deslocar para tudo na nossa vida. Deslocamo-nos para acessar a saúde, para acessar a educação, para procurar emprego, para acessar a cultura e o lazer.
É importante entender que a impossibilidade de deslocamento impacta diretamente na impossibilidade de existência dessas pessoas no pós-pandemia, e ainda mais com as consequências do processo de pandemia, que estão diretamente vinculadas, inclusive, à urgência climática que vivemos. No Rio de Janeiro, em especial, não sei se vocês chegaram a ver o caso de uma mãe que teve que quebrar o ônibus porque a criança começou a passar mal. Sem ar-condicionado, ela quebrou a vidraça do ônibus para a criança poder respirar, porque ela estava ali passando mal dentro do ônibus. Houve também o caso de uma jovem negra, num show da Taylor Swift. Mais de mil pessoas passam mal por causa do aquecimento, por causa, na verdade, de uma infraestrutura organizada pela produção desses eventos que estão vinculadas a uma perspectiva de lucro. Impedem que se leve garrafinha de água num território que é marcado pelo asfalto. E, há duas semanas, vivemos, no Rio de Janeiro, semanas de altas temperaturas. Os territórios mais periféricos chegaram a marcar 60 graus de sensação térmica, e isso impacta diretamente na condição de saúde da população.
Falar de transporte é falar sobre uma dimensão que vai para além de transitar pelos espaços urbanos. Os sistemas de transporte definem as possibilidades de circulação dentro desses espaços. Vemos que as periferias urbanas são atravessadas por sistemas. Por exemplo, as infraestruturas ferroviárias são aplicadas em territórios de periferia, e elas produzem dimensões de imobilidade e de mobilidade que são muito próprias dessa contextualização. O que percebemos é o seguinte: se são produzidas demandas de deslocamento, se os Municípios e os bairros são partidos ao meio, as pessoas têm dificuldade de atravessar de um lado para o outro.
Olhando para o sistema ferroviário do Rio de Janeiro, as pessoas que têm dificuldade de locomoção... Nós temos 104 estações no Rio de Janeiro, mas só oito estações têm infraestrutura de acessibilidade
— 96 não têm qualquer infraestrutura de acessibilidade.
Uma série de pessoas não consegue acessar outros serviços por causa da interdição organizada na mobilidade. Por isso nós precisamos pensar em gratuidade e entender que a mobilidade é determinante para a existência das populações, porque a realização das cidades está dada na possibilidade de as pessoas circularem nos espaços. Afinal, o que é a cidade, senão o lugar onde estão organizadas instituições e que depende, para a sua realização, da circulação das pessoas em seus espaços.
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Ao olhar para os territórios de periferia, vemos a replicação de uma lógica de exceção. Isso fica claro no debate da formação social brasileira, quando se observa o deslocamento e a transferência da Capital do Brasil do Rio de Janeiro para Brasília. A cidade foi construída de modo a impossibilitar que camadas populares, majoritariamente negras, acessassem espaços de poder. As ruas foram pensadas para carros, e há pouca oferta de serviço de transporte. Isso nós ouvimos em várias reuniões aqui. As pessoas que vivem nas cidades-satélites saem às 6 horas da manhã de casa e só conseguem voltar às 19 horas, porque o ônibus só volta para esses territórios às 18 horas. É uma política de interdição. O próprio desmonte do modelo de transporte ferroviário tem relação com essa política de interdição
Vejam que 62% da população brasileira vivem nos centros urbanos. É urgente o enfrentamento da crise climática. Isso não está relacionado só com uma perspectiva de futuro, com o debate sobre continuar ou não tendo um planeta pela degradação, pela expropriação predatória que se faz desde o processo colonial. É uma necessidade urgente. Temos visto cada vez mais tragédias que poderiam ter sido evitadas.
Nós olhamos para os territórios de periferia e vemos o agravamento de desabamentos, enchentes. Nós sabemos que as populações que vivem essa realidade têm cor. Estamos falando de territórios racializados. Não há a possibilidade de discutir sistema de transporte desvinculado disso.
Nós temos falado que o grande desafio para a implementação e o aprofundamento de direitos e para a qualificação do sistema federativo tem relação com como é que se constituem políticas de Estado e não políticas de Governo. Nós vemos, reeditadamente, quando se faz a mudança de grupos no poder, o desmonte de políticas que eram determinantes para a sociedade. Nós precisamos adotar princípios que garantam políticas de equidade. Nós vivemos num país que nunca implementou uma política de reparação para as pessoas que sempre foram foco de uma política de interdição.
A mobilidade está diretamente vinculada com a dimensão da segurança pública. Eu sempre dou o exemplo da Operação Verão, que acontece todo verão carioca. A Guarda Municipal e a Polícia Militar sequestram de 30 a 45 adolescentes negros por dia nos ônibus que fazem o deslocamento da periferia para a orla carioca.
Encaminham esses adolescentes para a Delegacia da Criança e do Adolescente, oferecem uma denúncia e, para dizer que a prisão tem materialidade, usam o fato de estarem sem dinheiro ou sem identidade. Esses adolescentes passam, então, por uma audiência de apresentação. Quando realizamos uma pesquisa em 2019 sobre essa realidade, perguntamos para a defensora o que o juiz fazia. Ela nos explicou que funcionava a lógica do susto, que o juiz dizia: "Interne para não fazer de novo". Não fazer de novo o quê? Sair de um território de periferia e acessar o lazer e a cultura na orla carioca.
Essas políticas de mobilidade e transporte são aplicadas de forma sistemática. A organização de horários e deslocamentos dos ônibus do Rio de Janeiro é um exemplo.
O Governo Federal repassou mais de 2,2 bilhões de reais para a Prefeitura do Rio, para a implementação do BRT da TransBrasil, que vai passar por territórios de favela como a Parada de Lucas, mas não vai parar ali. Isso tem uma dimensão de quem é que pode utilizar o transporte. Nós sabemos que o modelo rodoviarista está diretamente vinculado com a perspectiva de interditar a possibilidade de acesso à cidade de grupos específicos, que são grupos de maioria. Nós estamos falando de uma política racializada, que é centralizada na interdição dos espaços público. Isso atinge, além da população negra, a população feminina. Nós sabemos que é de profunda violação a dimensão de mulheres circulando pelo espaço público. Nós sofremos violação o tempo todo, nós adoecemos dentro do transporte. O deslocamento nos impacta. E impacta a população trabalhadora — retira dela 3 meses por ano, tempo que passa dentro do transporte público.
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Acho que é muito importante discutir a criação de um sistema único, entendendo que onde há menos infraestrutura deve ser feito mais investimento. Isso precisa ser princípio de aplicação dos orçamentos públicos. Existe um projeto sobre aplicação das infraestruturas que pretende seguir com a interdição das cidades e manter sempre nos territórios abastados toda a infraestrutura e o investimento do fundo público. E a população trabalhadora é a principal contribuinte para a formação desse fundo, porque, no Brasil, a arrecadação está diretamente vinculada com o imposto indireto sobre o consumo. É muito importante avançar na definição desse sistema e é impossível fazer esse debate sem olhar para uma política de equidade, que garanta que os territórios de periferia e favela tenham prioridade no investimento de infraestruturas urbanísticas.
(Palmas.)
A SRA. PRESIDENTE (Natália Bonavides. Bloco/PT - RN) - Muito obrigada, Rafaela.
Eu gostaria de agradecer o convite para participar, na condição de professor universitário, deste debate, deste seminário.
Eu queria falar um pouco de mim, porque não estou participando presencialmente do evento e não estive aí nos momentos iniciais, quando as pessoas se conheceram. Meu nome é Enilson Medeiros dos Santos.
No momento, eu estou aposentado como professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, embora tenha feito a adesão a um convênio que a universidade tem de professor colaborador voluntário. Então, para todos os efeitos, eu ainda posso dizer que sou professor da universidade federal.
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Sou engenheiro civil e, a partir de 1986, eu dediquei a minha vida a questões de transporte, especificamente, ou principalmente, transporte urbano. Então, eu diria que acompanhei vários momentos das mudanças de política no Brasil nesse setor, desde a implantação do sistema EBTU/GEIPOT, que trouxe para as cidades e regiões metropolitanas as EMTUs e superintendências de transporte urbano, até os últimos movimentos agora em torno da Lei nº 12.587, de 2012, da Política Nacional de Mobilidade Urbana.
Eu queria começar a minha fala falando um pouco desse momento de 2012. Já houve referência aqui, pelo companheiro de Salvador, o Caribé, aos movimentos de junho de 2013. Curiosamente, aquilo acontecia 1 ano depois do primeiro grande esforço do Brasil de criar uma política nacional formalizada e estruturada em termos contemporâneos, que foi a Lei nº 12.587. Análises acadêmicas que foram feitas na época anunciavam alguns problemas, mas o momento era de muita satisfação e felicidade com o surgimento dessa lei, que, para mim, é uma peça, uma política de Estado fundamental no Brasil. E o que mostra que ela é muito importante e muito consistente internamente é o fato de que, mais de 10 anos depois de sancionada e promulgada, mais de 10 anos depois de não sei quantas mudanças de governo — que não são meras mudanças de governo; são mudanças de orientação político-ideológica muito fortes em governos federais e em composição de Parlamento —, para quase todos os efeitos práticos, acredito eu, essa lei permanece, de certa forma, intocada. Ela não foi muito mexida estruturalmente pelo Congresso até hoje.
Vocês estão diante, agora, do Projeto de Lei nº 3.278, de 2021, do Senador Anastasia, e de movimentos parlamentares em torno da PEC da Deputada Erundina para criar o sistema único de mobilidade, depois da transformação do transporte em direito social, por outra PEC, no art. 6º da Constituição. Isso é muito relevante.
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Eu quero lembrá-los de que a tramitação da Lei nº 12.587 começou com um projeto de lei da Casa Civil, em 2005, que incorporou e substituiu outros projetos que havia lá de lei complementar — que a Constituição pedia para o transporte —, depois que já havia saído o Estatuto da Cidade, a política fundiária, etc. e tal.
O que eu gostaria de salientar inicialmente, então, é a importância dessa lei. Eu a acho extremamente importante, a ponto de, na justificativa do Projeto de Lei nº 3.278, de 2021, o Senador Anastasia dizer que já faz 10 anos que essa lei está pronta e que ela não mudou muita coisa nas cidades, mas sem avaliar por que não mudou, ou seja, sem avaliar por que a lei não foi implementada. E a minha preocupação é que partamos, neste momento, para uma atitude, às vezes — e eu não quero fazer crítica aos colegas de Mesa —, meio voluntarista de mudar as coisas nesse nível imediatamente. Eu gostaria de lembrá-los de que o SUS foi uma construção muito grande; durou muito tempo construir o SUS, e o SUS aconteceu juntamente com uma Constituinte. É muito importante que seja dito isso.
Então, eu acho que a Política Nacional de Mobilidade Urbana tem que ser estudada a fundo, analisada profundamente, inclusive para trazer elementos novos para configurarmos, de forma consistente, o que poderá vir a ser um sistema único de mobilidade.
Eu tenho uma preocupação grande — que, às vezes, me dizem que é muito boba, com sutilezas —, as palavras "transporte" e "mobilidade" me são muito caras. Eu sou um acadêmico, um pesquisador por toda a vida, então, para mim, conceitos têm que estar muito bem estabelecidos. O que é um direito social na Constituição é o transporte. Se existe alguma diferença entre transporte e mobilidade, quando formos criar uma política nacional, um sistema único de mobilidade, talvez tenhamos que justificar por que e o que chamamos de mobilidade. Uma coisa é o direito a transporte no art. 6º, outra coisa seria uma proposta de emenda à Constituição que cria um sistema único de mobilidade.
Para trabalharmos nessa direção, eu acho louvável que aconteçam muitos movimentos populares, acho louvável que aconteça esse esforço de alguns Municípios. Eu considero tudo isso louvável. Mas me parece que temos que ter os pés mais no chão e propor um sistema único de mobilidade internamente consistente, que seja justificável e exequível em seus objetivos. O que aconteceu com a Política Nacional de Mobilidade Urbana é que ela propôs algumas coisas que, diante do contexto brasileiro, das condições brasileiras, eram totalmente inexequíveis, como, por exemplo, que os Municípios com população acima de 20 mil habitantes, em sua totalidade, fizessem planos de mobilidade. E nós tivemos o quê? As maiores mexidas na lei foram exatamente para alterar as datas de penalização para os Municípios que não fizeram o plano — jogando para frente, jogando para frente —, porque não existia na época, no Brasil, massa crítica nem capacidade técnica para elaborar tantos planos de mobilidade de forma séria.
E nós corremos um sério risco de ter planos de mobilidade, como os planos diretores que temos aí, fabricados em usinas de copiar e colar, plano diretores como o de uma cidade do interior de Minas Gerais em que falam num porto marítimo, por exemplo, porque copiaram de algum lugar.
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Eu respeito muito o tempo — fui durante muito tempo treinado para isso — e vou querer finalizar a minha participação dizendo algumas coisas que acho que são relevantes.
É fundamental que tenhamos uma forma de agendar na política pública, na discussão pública, principalmente olhando para as eleições municipais do próximo ano, a questão do transporte da mobilidade. E eu diria que acho fundamental discutirmos a questão da acessibilidade. Nós usamos pouco esse termo, porque no Brasil cravou-se o termo acessibilidade para a microacessibilidade, relacionada à lei de proteção e fomento às pessoas com dificuldade de mobilidade. Mas a acessibilidade é um elemento fundamental. A cidade só existe porque o transporte oferece mobilidade a cada nó da cidade, oferece acessibilidade a cada nó da cidade. Se não oferecer, a cidade não existe como espaço de interação.
Eu gostaria de lembrar também que a Lei nº 12.587 fala em transparência — e eu acho que esse é um ponto fundamental do SUS e do Sistema Único de Mobilidade proposto —, mas do outro lado da transparência está a participação pública. Gente, para haver participação pública significativa, efetiva, para não incorrermos nos conselhos fajutos, que temos hoje em muitos Municípios, nós precisamos que as pessoas, as lideranças, as pessoas que representam a sociedade estejam capacitadas para a discussão. É parte da educação para a cidadania educar as pessoas para discutir as políticas de saúde, de esgoto, de drenagem e de mobilidade também.
Essa exigência de capacitar pessoas e instituições, tanto em nível federal como em nível municipal — e essa é uma das falhas que não colocou o Estado como responsável também —, está lá na Lei nº 12.587. Cabe à União ajudar o Município a fazer a capacitação de pessoas, a qualificação de pessoas para o debate, porque sem debate qualificado nós não vamos para canto nenhum.
Nós temos que entender também o transporte, a mobilidade, a acessibilidade como um todo. Transporte não é só uma questão para propiciar movimento para determinadas pessoas ou para todas as pessoas. O transporte urbano é um fator de produção urbana, é um elemento econômico importantíssimo na cidade. Todo custo de transporte é custo de produção ou de consumo.
Então, temos que entender que quando propomos a tarifa zero — e tarifa zero é um conceito diferente de uma tarifa fortemente subsidiada, é a tarifa zero mesmo — nós estamos dizendo que a sociedade vai financiar um custo de produção capitalista nos Municípios. As empresas vão se apropriar disso, porque, no momento em que as empresas deixam de pagar o vale transporte,
esse subsídio que é dado à tarifa para os trabalhadores e que é pago por toda a sociedade mudou de origem.
Nós podemos até usar o exemplo francês, por exemplo, do versement transport, uma coisa parecida com o vale transporte, mas, em muitas cidades, como na região metropolitana de Paris, existe o premium transport, que é uma coisa relacionada diretamente à empresa e a seus funcionários. Há dois tipos de contribuição, e nós podemos pensar nisso, mas é importante lembrarmos que, além do fato de o transporte e a mobilidade serem elementos importantíssimos na, digamos assim, configuração social e na estruturação de uma sociedade melhor, mais igual, menos excludente, nós temos que pensar também esse outro lado, de que o transporte é um fator de produção.
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Outra coisa que eu quero deixar claro aqui, Boulos, Natália, é que hoje os promotores dessa discussão têm um grande elemento para pensar. Eu acho que precisamos — não em 10 anos, porque já passou, mas com um pouco mais de 10 anos de Política Nacional de Mobilidade — estabelecer uma série nacional de seminários, sediados em Brasília ou onde for, para avaliar os 10 anos da Política Nacional de Mobilidade Urbana. Isso seria fundamental para criarmos um lastro de consistência para a Política Nacional de Mobilidade Urbana.
Nós não podemos simplesmente dizer que vamos fazer outra coisa além da Política Nacional de Mobilidade Urbana ou ficar escutando que essa lei não funcionou, porque ela nunca foi implementada. Eu costumo perguntar aos meus amigos onde está o Ministério Público que não vai atrás dos Prefeitos que não implantam uma política nacional de lei. E o Ministério Público, como guardião da lei, teria que estar intervindo.
A SRA. PRESIDENTE (Natália Bonavides. Bloco/PT - RN) - Obrigada, Prof. Enilson.
Eu queria, em primeiro lugar, cumprimentar todos os presentes nesta audiência e também quem nos acompanha pelo Youtube da Câmara. Agradeço o convite feito ao Ministério das Cidades para estar presente. Parabenizo a Comissão e a Câmara, na pessoa da Deputada Natália Bonavides, pela iniciativa desta audiência, que traz um assunto tão importante.
Quando se fala particularmente na mobilidade, a Política Nacional de Mobilidade Urbana tem como um dos objetivos consolidar a gestão democrática como instrumento e garantia da construção contínua do aprimoramento da mobilidade urbana. Então, eventos como esta audiência pública aqui nos ajudam a perseguir esse objetivo e a tentar atingi-lo de forma mais plena para permitir a participação de todos.
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Primeiro, especificamente com relação à Proposta de Emenda à Constituição nº 25, de 2023, ressalto que ela ainda não chegou para análise formal do Ministério das Cidades. Creio que é porque foi muito recente que foi designado o Relator da PEC. Então, acho que é uma questão temporal mesmo, mas ainda deve chegar.
Não obstante, à primeira vista nos parece uma discussão muito oportuna. Vemos que a gestão da mobilidade urbana tem uma articulação interfederativa muito complexa, com várias competências compartilhadas entre União, Estados e Municípios. Até reforço um pouco do que os colegas já disseram: precisamos melhorar muito a gestão, o planejamento, a regulação. Isso porque, até quando conseguimos viabilizar recursos para o setor, esses recursos acabam não sendo alocados de forma tão eficiente se não houver gestão, não houver planejamento e não houver os instrumentos.
Vemos também, estudamos um pouco isso lá no Ministério das Cidades, que o Ministério das Cidades tem esse papel interfederativo muito forte. Estudamos também o Sistema Único de Saúde e o Sistema Único de Assistência Social e vemos que, nas políticas públicas onde há esses sistemas únicos constituídos, se desenvolvem, com muito mais força, os instrumentos de controle social e participação popular, os conselhos, os instrumentos de gestão, de transparência, de regulação, os dados. Temos uma carência muito grande de receber dados dos Municípios e dos Governos Estaduais para poder consolidá-los em esfera federal. Vemos que, nos setores onde há um sistema único, esses fluxos são muito mais consolidados e robustos.
Enxergamos isso com bons olhos. Vamos ainda fazer uma análise técnica e legislativa da PEC especificamente, mas também enxergamos que o SUM, além da frente legislativa, ele também, como já fui dito, é um processo muito maior. É desafiador, sim, mas não é impossível, muito pelo contrário. Além da parte legislativa, vamos ter que evoluir também na parte infralegal, na parte de planejamento, de gestão, na parte institucional, na parte gerencial e até na parte de tecnologia da informação. Então, são várias frentes que têm que ser discutidas e encaminhadas para conseguir botar de pé um sistema único.
Eu queria aproveitar para registrar também, Deputada, que, em que pese o Ministério ainda não ter analisado a PEC, não especificamente a PEC, mas o SUM como um todo já recebeu recentemente três moções de apoio.
Uma delas foi no dia 8 de novembro, pelo Conselho das Cidades, que foi retomado agora pelo Governo Federal. Ainda não foi numerada e não foi publicada a resolução. Ela ainda está em trâmite, mas já foi aprovada pelo plenário do Conselho das Cidades. É uma moção favorável ao SUM.
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Este ano, o evento ocorreu em Florianópolis, do dia 15 ao dia 19 de novembro. Na carta, há uma moção favorável ao SUM, dentre várias moções que foram aprovadas na plenária final do Bicicultura.
Eu acredito que tudo isso vai ser comunicado ao Relator e aos envolvidos em breve. Então, só queria registrar essas três moções de apoio.
Queria registrar também que, além desse debate do SUM, o Ministério também vem trabalhando num projeto de lei do Marco Legal do Transporte Público Coletivo. É um projeto de lei que foi construído a várias mãos, junto com o Fórum Consultivo de Mobilidade Urbana, no qual participam as entidades mais representativas do setor. Passou por um processo de consulta pública de quase 3 meses, recebeu mais de 800 contribuições. Recentemente, em outubro, finalizamos essa minuta e estamos agora em tratativas com a Casa Civil da Presidência da República e com o Senado Federal para vermos a melhor forma de trazer para o Legislativo essa proposta.
O Prof. Enilson até falou um pouco do Projeto de Lei nº 3.278, de 2021, de autoria do Senador Anastasia, que hoje é Ministro do TCU. O Relator atualmente é o Senador Veneziano Vital do Rêgo. E nós estamos fazendo um diálogo com o Legislativo para incorporar o que existe de melhor nessa proposta de marco legal, que foi feita junto com o Fórum Consultivo, e o projeto de lei já está correndo lá no Senado, para tentarmos chegar ao melhor texto possível e colocá-lo para tramitar.
Esse projeto vem como uma complementação da Política Nacional de Mobilidade Urbana, mas trata mais especificamente do transporte público coletivo. A lei atual de mobilidade urbana só tem quatro artigos que tratam de transporte público coletivo e, além disso, ela já está um pouco defasada temporalmente, inclusive com relação primeiro à inclusão, em 2015, do transporte como um direito social na Constituição e depois de várias outras questões que vieram mais fortes após 2012, como questões ambientais, questões de mudanças climáticas e questões tecnológicas também.
Então, há várias atualizações que estamos fazendo no marco legal. Convido todos a conhecê-lo. Há uma página no site do Ministério das Cidades com a explicação desse trabalho e a própria minuta do projeto de lei. Se colocarem no buscador "marco legal do transporte público coletivo", já aparece a página. Se forem pelo site do Ministério das Cidades, também encontrarão.
Em outra frente, trabalhamos muito com o transporte coletivo e com a mobilidade ativa, que hoje a lei ainda chama de transporte não motorizado, que é, no grosso, na maior parte, o transporte por bicicleta e a pé. Nesse sentido, eu queria destacar também que, neste ano de 2023, foi publicada a Estratégia Nacional de Promoção da Mobilidade por Bicicleta — ENABICI. Também procurando no buscador, vocês a acham. Ela contém um conjunto de objetivos e de ações para o poder público, setor privado, legislativo, esferas municipal e federal, enfim, para vários agentes, visando implementar uma política nacional de ciclomobilidade, e não só de ciclomobilidade, mas até com a bicicleta também sendo promotora da saúde, do esporte, da inclusão social e de tudo mais.
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Então, eu acredito em todas essas frentes para fazer uma transformação profunda no sistema de mobilidade entendendo a realidade de que, primeiro, o transporte é um direito constitucional e, segundo, esse modelo — que por décadas se perpetuou no Brasil — de que o transporte coletivo foi sustentado apenas pela tarifa paga por quem usa não é mais viável economicamente e nem justo socialmente.
A mobilidade pelo transporte coletivo gera benefícios inclusive para quem não usa e também para quem só usa carro, porque tira outros carros na rua. Então, nós acreditamos que todo mundo tem que contribuir com alguma parcela para o sistema. Mas, como foi dito, não adianta contribuir, ter recursos e não ter gestão na aplicação desses recursos.
Já finalizando, eu queria só parabenizar a Deputada Federal Luiza Erundina, que hoje aniversaria e completa 89 anos. A Deputada é exemplo de vitalidade, de vanguardismo. A idade no papel não representa a idade real da pessoa, e a Deputada é uma das autoras da PEC que estamos tratando aqui e autora também da PEC que foi promulgada, que inclui o transporte como direito constitucional. Então, eu queria parabenizá-la pelo aniversário, pelas iniciativas.
A SRA. PRESIDENTE (Natália Bonavides. Bloco/PT - RN) - Obrigada, Antonio.
Queria reforçar este registo do aniversário da companheira Deputada Luiza Erundina, uma mulher que inspira cotidianamente principalmente nós mulheres que estamos aqui neste espaço.
O Antonio trouxe a questão de pensar uma regulamentação geral a partir do Ministério, e isso é muito importante, no sentido de que se não debatermos a gestão, não vamos conseguir fazer uma implementação que seja verdadeiramente eficaz.
Eu gostaria inclusive de retomar o que a Rafaela disse sobre um dos princípios básicos de implementação. Onde há menos infraestrutura tem que haver mais recurso investido, para que essa infraestrutura passe a existir. Eu acho que esse é um princípio norteador fundamental.
Dito isso, eu gostaria de reiterar mais uma vez que esse debate de sistema único é aberto. Então, nós gostaríamos muito que as pessoas viessem participar. Quanto mais gente quiser participar, melhor.
Pode parecer para alguns, por sermos pessoas do Nordeste, mulheres, não binários, nordestinos, que nós não somos estudiosos, não somos pesquisadores. Mas nós somos.
Nós temos uma história de militância, e alguns têm uma história de pesquisa de mais de uma década. O que nós estamos fazendo é tecnicamente embasado, é politicamente necessário e tecnicamente embasado.
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Nós, por exemplo, lançamos aqui neste Congresso mesmo, no meio do ano, um estudo que é um substituto do vale-transporte para o Brasil, é a modernização da forma de financiamento do transporte público coletivo, muito inspirado no modelo francês, como foi colocado aqui mais cedo. É também uma das formas de tentarmos viabilizar esse direito social, que é o transporte, em particular, mas o direito à mobilidade no geral. Também há uma diferenciação que para nós é muito clara. Não é à toa que nós fundamos a Coalizão Mobilidade Triplo Zero para dialogar com o movimento cicloativista, para dialogar com o movimento ambientalista, porque nós entendíamos que o transporte por si só, enquanto meio técnico, não é suficiente. Nós precisamos repensar as cidades.
A SRA. RAFAELA ALBERGARIA - Eu queria partir dessa observação do Daniel. Com todo o respeito, Sr. Enilson, eu acho que temos produzido políticas de morte, porque, na verdade, a academia reproduz lógicas que olham para setores privilegiados, majoritariamente personalizados por homens brancos, para reforçar uma dinâmica que exclui a maioria da população.
Nós estamos falando de um sistema de transporte que é utilizado. E eu, que sou materialista, entendo a produção dessas políticas, entendo o olhar para o singular para construir a totalidade, construir políticas públicas, que são, na verdade, a consolidação da apaziguação do papel de como o Estado se coloca entre interesses de dominadores e dominados. A produção dessas políticas abarca centralmente mais de 56% da população, que é negra e que produz e experiência as cidades, e a existência a partir de uma perspectiva de interdição.
Eu sou acadêmica, sou mestre em serviço social, tenho mais de dois livros publicados sobre o tema de mobilidade, discuto a mobilidade a partir de algo que me atravessa. Minha prima foi morta atropelada pelo trem indo para a faculdade — ela era a segunda da minha família a acessar a universidade —, e eu uso as técnicas e os métodos que eu consegui acessar na universidade para produzir política de vida. A Joana foi morta indo para a faculdade, no dia 27 de abril. Quando ela foi entrar no trem, a porta fechou, prendeu o pé dela e a arrastou por mais de 20 metros. Ela foi arremessada no vão entre o trem e a plataforma, que tinha mais de 50 centímetros, e seu corpo ficou estirado no trem por mais de 8 horas. Disseram que era suicídio, porque a vida de uma mulher preta no território de periferia é desumanizada.
Eu comecei um estudo inédito para levantar as ocorrências. Não havia nenhum dado sobre ocorrência violenta nos transportes ferroviários. Nós descobrimos que, só em 2018, 2 pessoas foram mortas por semana atropeladas pelo trem. Com esse estudo, nós embasamos 2 CPIs. Uma CPI, em 2018, levantou uma série de irregularidades, ilegalidades praticadas pela empresa de transporte SuperVia, que é uma concessionária que atua desde 1998 no sistema ferroviário e que desloca corpos para não ser responsabilizada. Essa demanda é muito importante,
porque não temos um sistema de regulamentação, de fiscalização e de monitoramento, que é condição para a realização de políticas públicas no debate de mobilidade.
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Eu acho muito importante o Ministério das Cidades estar aberto a esse debate, mas é uma perda também a forma como o próprio Conselho das Cidades foi reconstituído, sem participação social, sem eleição. Apenas uma organização da sociedade civil tem feito esse debate no campo progressista e está representada nesse conselho.
Temos uma dificuldade muito grande de dialogar sobre questões centrais, porque percebemos, especialmente no Rio de Janeiro, que o debate sobre o transporte público dá corpo para as milícias. Esse foi o primeiro serviço comercializado pelas milícias no Rio de Janeiro. Vários Municípios e bairros da Região Metropolitana do Rio de Janeiro não têm nenhum transporte formal. Todo o transporte é feito pela milícia, porque controlar o deslocamento das pessoas é ter poder sobre elas. Não é à toa que o modelo que está sendo proposto, inclusive de tarifa zero em São Paulo, está diretamente vinculado ao desmonte do transporte de massa, do transporte sobre trilho.
Vemos um subsídio muito grande para as linhas que são privadas, mas a CPTM já operava o sistema todo com um recurso muito menor do que o que está sendo repassado para a linha privada. Então, na verdade, mais do que discutir a operação, nós precisamos entender que transporte é direito, não pode ser mercadoria. As pessoas não podem continuar sendo tratadas no transporte público como uma mercadoria, porque o impacto disso é morte, é mutilação sistemática.
É importante lembrar que, no Brasil, todo ano, morrem 32 mil pessoas nos transportes. O número de mortes no transporte representa a ocupação de uma cidade de pequeno porte. Isso ocorre todo ano. Hoje, o principal fator de mortalidade de crianças e adolescentes são mortes no trânsito. Sabemos que essas crianças e esses adolescentes têm cor, têm território, têm gênero. Então, são muito importantes essas dimensões.
Para dialogarmos, Sr. Enilson, entendo ser muito importante deslocar o lugar de produção de conhecimento para um lugar implicado, porque, na verdade, a experiência é uma forma de conhecer a realidade. É muito fácil falarmos sobre a política de mobilidade, mas o senhor já deu o diagnóstico — ela nunca foi implementada. Então, como é que desburocratizamos esse debate? Porque é um debate de existência determinante e fundamental, é o debate do futuro. Hoje, os centros urbanos são responsáveis por 60% das emissões. E essas emissões estão na conta do transporte público. Hoje tem se debatido, dentro do tema de mitigação, a importância do transporte logístico. Como é que associamos o investimento em transporte logístico com a restituição e a estruturação de transporte público de massa dentro das cidades? Temos visto uma captura dos interesses de grandes empresas sobre essa agenda relevante para o futuro, apresentando os ônibus elétricos como solução para uma mobilidade sustentável.
Em primeiro lugar, ônibus elétrico está longe de ser solução, porque ônibus não é transporte de alta capacidade. Há 2 semanas, vivemos isso. A produção de energia nos centros urbanos já estava aquém da demanda por causa do aquecimento. A capacidade de um ônibus de transportar passageiro com conforto é de 75 pessoas, estando 45 sentadas e 30 em pé.
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Sabemos que as empresas de ônibus que transportam as pessoas como mercadoria colocam 300 pessoas ou 400 pessoas dentro de um ônibus. Mas isso tem um impacto em suas vidas, tem um impacto em saúde pública. Então, ônibus está longe de ser o modelo de cidades eficientes. Sempre vamos lidar com os engarrafamentos e nunca vamos conseguir atender à perspectiva e ao conceito de cidades eficientes. Se queremos ser uma cidade de 15 minutos, essa está longe de ser a resposta. Não temos investimento em produção de energias renováveis. Então, como é que colocamos uma frota de ônibus se um ônibus elétrico equivale a, pelo menos, o valor de dois ônibus movidos a diesel, entendendo que temos que considerar os relevos, a conformação dos territórios, as dinâmicas de mobilidade?
Estamos discutindo isso. Temos a oportunidade de discutir a COP 30 no Brasil, mas o modelo que está sendo apresentado como legado da COP é a aplicação de ônibus elétrico no território onde se faz deslocamento majoritariamente por rios. Com isso, já está colocado que a grande parcela da população não vai ter acesso à COP nem ao legado da COP. Então, é muito importante termos soluções eficientes. Temos produzido essas soluções em várias frentes, temos discutido e dialogado com a população, porque o transporte é algo que atravessa a realidade de todo mundo, desde as pessoas que não conseguem emprego, porque o transporte é muito caro, até as pessoas das camadas mais abastadas, que se deslocam de jatinho, de aviãozinho, de táxi aéreo, porque não conseguem ter eficiência dentro da cidade. Essa é uma demanda de todo mundo. E é importante começarmos a pensar uma metodologia de técnica e pesquisa aplicada para apresentar soluções efetivas para a realidade.
Para mim, é impossível imaginar como é que essa tecnicidade — que se reivindica como saber único e universal — pode se estruturar sem entender quais são as dinâmicas de deslocamento e de existência desta população para a qual vão se destinar políticas de garantia de vida ou de produção sistemática de morte. Então, eu queria colocar esse apontamento e agradecer muito à Natália por puxar esse debate, que é estruturante para a nossa sociedade. Também agradeço à Erundina, que está fazendo aniversário e que é uma liderança para muitas de nós.
Temos tratado dos espaços de discussão da cidade, que são majoritariamente masculinos e brancos. Mudar essa composição não é só uma questão de representação, é uma questão de vida e de existência. Na semana passada, tivemos uma campanha nacional e internacional para mudança do quadro do Judiciário, porque, na verdade, as cidades também são muito movidas pela dimensão de como o direito nos atravessa ou nos interdita. E é uma perda, mais uma vez, que um espaço de decisão tão determinante para a nossa existência continue sendo majoritariamente branco. Acho que pensar o futuro é pensar como é que aplicaremos, de fato, políticas de equidade e de diversidade que nos possibilitem decidir políticas de vida, porque é material aquelas pessoas que vivem em territórios abastados olharem e priorizarem soluções que vão impactar a sua realidade em benefício da vida da maioria da população.
(Palmas.)
A SRA. PRESIDENTE (Natália Bonavides. Bloco/PT - RN) - Obrigada, Rafaela.
O SR. ENILSON MEDEIROS - Sem querer provocar debate, eu digo ao Caribé e à Rafaela que, em primeiro lugar, eles não conhecem o meu trabalho.
Em segundo lugar, eu não tentei fazer nenhuma desqualificação de nenhum trabalho de fora da academia. Pelo contrário, as pessoas que me conhecem sabem que eu sempre trabalhei com pessoas de fora da academia.
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Finalizando o convite, Natália, eu queria lhe agradecer e lhe pedir dispensa, porque vou ter que me ausentar. Você sabe das minhas dificuldades de estar aqui nesse dia e estou precisando cumprir a minha outra agenda da manhã.
A SRA. PRESIDENTE (Natália Bonavides. Bloco/PT - RN) - Obrigada, professor. Queria agradecer muito aos participantes desta Mesa.
Peço agora que façamos a transição para a segunda Mesa, que terá como tema: Formas de Financiamento do Sistema Único de Mobilidade e do Passe Livre.
Para a sua composição, eu queria convidar Ana Caroline Azevedo, que é arquiteta urbanista do Movimento Tarifa Zero de Belo Horizonte; Leila Saraiva, que é assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos — INESC; e Paique Duques Santarém, que é antropólogo e urbanista do Movimento Passe Livre do Distrito Federal.
Peço desculpas a quem está nos acompanhando. Tivemos um problema estrutural, mas já podemos começar.
Então, retomamos com a nossa segunda Mesa, que vai seguir o tema do Sistema Único de Mobilidade, agora buscando analisar possibilidades de financiamento e relacionando essa temática à do passe livre.
A SRA. ANA CAROLINE AZEVEDO - Bom dia, gente. Eu sou a Ana Caroline, faço parte do Movimento Tarifa Zero de Belo Horizonte desde 2013, desde as jornadas de junho. Também estou atuando no mandato da Deputada Estadual Bella Gonçalves, do PSOL, que está bem comprometida com a pauta da tarifa zero em Minas Gerais, em Belo Horizonte, cidade de onde eu sou obviamente.
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Agradeço-lhes muito o convite, a oportunidade de estar aqui conversando sobre mobilidade, que é um dos principais desafios para construirmos cidades mais justas, mais democráticas, mais igualitárias, mais sustentáveis.
Quando uma pessoa opta pelo transporte coletivo ou pela mobilidade ativa, ela está acarretando uma série de benefícios para todo mundo. Um carro a menos na rua é menos trânsito, menos poluição, menos emissão de poluentes, menos acidente de trânsito, o que reflete também no orçamento da saúde pública.
Com essa redução dos carros, conseguimos ter, na cidade, mais espaços públicos, mais áreas verdes, mais espaços brincantes, mais espaços seguros para as crianças. E esses são fatores muito importantes para desenvolvermos as nossas comunidades e para mitigarmos os eventos extremos das mudanças climáticas. Já que o benefício é para todo mundo, é justo que todo mundo contribua de forma progressiva para esse sistema de mobilidade. Então, quem tem mais condição pagaria mais, quem tem menos condição pagaria menos e quem não tem condição não pagaria nada de forma indireta.
Só que está bem difícil, hoje em dia, optar pelo transporte público, pelos ônibus, pelos trens, pelo metrô. Em Belo Horizonte, estamos presenciando uma situação bem deplorável do sistema de transporte. Os ônibus estão muito velhos, estão causando acidentes. Todos os dias, temos notícias de acidente com feridos e até com mortos. Não temos confiabilidade no quadro de horários. Para as pessoas que moram na periferia, não há ônibus. A tarifa é muito absurda, apesar do subsídio de meio milhão de reais. Tudo isso acabou gerando uma queda muito grande na demanda e afastou as pessoas do transporte coletivo. Quem continua utilizando esse transporte o faz porque não tem outra opção mesmo. Eu me refiro à população mais pobre, mais periférica, mais preta, que constantemente está perdendo oportunidade de trabalho, de renda, de educação, pela má qualidade do transporte e pelos valores da tarifa.
Então, precisamos criar condições para que as pessoas optem pelo transporte coletivo com mais frequência do que o individual, como carro e moto. Faremos isso melhorando a qualidade, colocando mais ônibus na rua, mais metrô. Lá em Belo Horizonte, o metrô foi privatizado neste ano, e não tivemos nenhuma melhoria até agora. Pelo contrário, estamos tendo notícias de que acabou precarizando mais o serviço, de que a tarifa aumentou. Então, diminuiu muito o número de usuários. O metrô lá já não era grande coisa. Há muito tempo, não conseguimos avançar nisso. Então, precisamos priorizar o transporte coletivo e a mobilidade ativa. E, com isso de inverter as prioridades, já liberamos o orçamento que está sendo investido em infraestrutura para carro. Então, em vez de ser usado para ampliar vias e construir viadutos, o orçamento é usado para fazer ciclovias e para investir em ônibus melhores.
Nesse sentido, o SUM é muito importante para atingirmos esse objetivo. Precisamos de recursos da União. Precisamos de uma gestão compartilhada do transporte. Precisamos integrar os diferentes modos, para que as pessoas escolham como é que elas vão se deslocar na cidade sem que elas percam em conforto, em segurança e em eficiência.
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Na Região Metropolitana de Belo Horizonte, nós estamos vendo diariamente a população ser abandonada. Os ônibus são muito mais velhos do que na capital, e não há fiscalização. Temos 12 fiscais para muitos Municípios, as tarifas são bem mais caras, não há integração nem operacional nem tarifária, apesar de que as mesmas empresas operam o serviço na região metropolitana e no Município de Belo Horizonte. Todo dia — todo dia mesmo —, temos notícia de acidente. Os ônibus metropolitanos pegam fogo com as pessoas dentro. Então, está uma calamidade.
Nós do Tarifa Zero estamos nessa luta desde 2013. E eu fico muito feliz de estar aqui e de poder dizer que a nossa luta avançou muito desde então. Quase 90 Municípios no Brasil já implementaram a tarifa zero. Em Minas, já são quase 20 Municípios. Nós sonhamos com isso para Belo Horizonte. Então, elaboramos, em conjunto com o Nossa BH e o Minha BH, da rede Nossas, um projeto de lei para financiar a tarifa zero na cidade, para fazer de Belo Horizonte a primeira capital que implementou a tarifa zero.
A campanha chama Busão 0800. E esse projeto é muito simples. As empresas com 10 ou mais funcionários contribuiriam com um valor mensal por funcionário. Essa contribuição eliminaria a necessidade de pagamento do vale-transporte. Fizemos o cálculo para Belo Horizonte. Esse valor seria de 172 reais mensais por funcionário, que hoje em dia é mais barato do que uma tarifa de ida e volta, que custa 4 reais e 50 centavos. E essa tarifa deve aumentar nos próximos anos. Então, essa contribuição, que estamos chamando de taxa do transporte público, por princípio, é mais justa do que o vale-transporte. Atualmente, só 15% dos vínculos empregatícios contribuem para o financiamento do sistema. Com esse projeto, passamos a contribuição para 78% dos vínculos empregatícios. Então, as pequenas e microempresas ficam isentas, são desoneradas. Os funcionários deixam de arcar com os 6% do vale-transporte no contracheque. O financiamento do sistema fica mais bem distribuído entre toda a sociedade, ao contrário do que ocorre hoje — trabalhadores com maior renda não utilizam o vale-transporte e, portanto, não contribuem.
Pensando nas experiências de tarifa zero de muito sucesso que temos ao redor do País, observamos que a demanda cresceu muito com a implementação da gratuidade. Esse cálculo foi feito considerando também um crescimento do sistema para acolher essa nova demanda de pessoas utilizando o transporte. Então, nós dimensionamos esse sistema em mais 500 milhões de reais por ano, que seria 33% de aumento, e, mesmo assim, está ficando mais barato do que é a passagem.
Como eu falei, toda a sociedade se beneficia disso, até quem não larga o carro de jeito nenhum.
Os empregadores, principalmente os pequenos empreendedores, economizam no vale-transporte, e os trabalhadores passam a não ter mais a barreira da tarifa e também da má qualidade do transporte para acessar renda, trabalho, lazer, educação, todos os serviços e direitos que temos garantidos na Constituição. Até a economia passa a girar melhor quando as pessoas economizam na passagem. Elas podem gastar com serviços e comércio e usufruir da cultura que temos. Há muita coisa em Belo Horizonte.
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Nosso projeto mostra isso, a tarifa zero é viável. Esse modelo de taxa do transporte público também pode ser replicado em outros Municípios, e essa conversa já está acontecendo. Então, esperamos que a Câmara de BH reconheça essa necessidade e essa urgência de discutir e aprovar esse projeto. Esperamos também influenciar nas eleições municipais do ano que vem. Mas o foco não é só isso. Precisamos pontuar que o foco não é só o financiamento. Precisamos reformular o sistema como um todo, e ele precisa ter participação popular; precisamos tratar o transporte como um direito, e não como uma mercadoria que tem que dar lucro para os empresários; e precisamos de transparência, de controle social e de novas concessões.
É isso. Estamos nessa luta nacional pela aprovação do SUM. Estamos trabalhando para criar caminhos de implementar a tarifa zero lá em BH, cidade que tem muito potencial. Mas, quando olhamos para o transporte coletivo, percebemos que ela está bem abandonada, sim. O transporte é um sintoma muito grande disso.
A SRA. PRESIDENTE (Natália Bonavides. Bloco/PT - RN) - Obrigada, Ana. Mande um abraço para Bella.
Eu queria registrar a presença de João Maria Cavalcanti, Superintendente da CBTU no Rio Grande do Norte. Obrigada, João. Daqui a pouco, nós vamos ter uma agenda sobre o sistema ferroviário do Rio Grande do Norte.
O SR. JILMAR TATTO (Bloco/PT - SP) - Bom dia.
Eu é que agradeço, Deputada Natália Bonavides. Parabenizo V.Exa. pela iniciativa da audiência pública, pelo debate sobre o sistema único de mobilidade, muito necessário e importante para o Brasil.
Cumprimento a Ana Caroline Azevedo. Eu estive lá em BH, na quinta-feira passada, num debate sobre a tarifa zero, com o nosso Deputado Rogério Correia. Havia bastante gente. O debate foi muito importante.
Cumprimento também o Paique. É importante o movimento de vocês. Nós só vamos conseguir a tarifa zero no Brasil se realmente houver organização e apoio da sociedade brasileira, da juventude, de todo mundo. Parabéns, Paique, pelo trabalho e pela desenvoltura de vocês!
Cumprimentando todos os que estão presentes, quero dizer que nós lançamos, na quarta-feira passada — e, Deputada Natália, V.Exa. também é proponente disto —, a Frente Parlamentar da Tarifa Zero. Já há uma PEC da Deputada Luiza Erundina na CCJ, cujo Relator é o nosso Deputado Kiko, do PT de São Paulo. Conversei já com o Presidente Arthur Lira. Nós vamos ter uma Comissão Especial, depois da apreciação dessa PEC da Deputada Erundina. Estamos conversando com os Líderes dos principais partidos aqui para que na Comissão Especial nós possamos avançar em relação à tarifa zero.
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Temos hoje 88 cidades que já têm a tarifa zero; vamos ter 89 cidades a partir de 1º dezembro. A 89ª será Santa Isabel, lá em São Paulo. Então, serão 89 cidades a partir primeiro de dezembro.
Eu fiz uma cartilha do meu mandato, em maio, sobre a tarifa zero, Deputada Natália. Na cartilha, dizia: "Já temos 67 municípios com a tarifa zero". Hoje, em novembro, já estamos com quase 89 Municípios com a tarifa zero, e está havendo muitas iniciativas.
É por isso que é importante esse debate, Deputada Natália, que V.Exas. da Comissão estão propondo. Depois, com a Frente, devemos procurar ver todo o arcabouço legal que existe, aqui na Câmara e do Senado, em relação ao Sistema Único de Mobilidade e também as fontes de financiamento. A grande pergunta que os Prefeitos fazem é: "De onde vem o recurso?". E eu acho que há recursos para que possamos viabilizar isso.
A SRA. PRESIDENTE (Natália Bonavides. Bloco/PT - RN) - Obrigada, Deputado. Eu registro a sua participação na articulação dessa Frente. Inclusive, na sua fala, no dia do lançamento, V.Exa. se referiu à proposta do Sistema Único de Mobilidade. Queria agradecer a sua participação.
Começo comentando, Deputado Tatto — e faço talvez uma inversão da sua fala —, que, para nós que estamos construindo esse processo de luta pela tarifa zero e pelo Sistema Único de Mobilidade há tantos anos, é muito bom também ver os Parlamentares abraçando isso, construindo essa Frente Parlamentar neste momento. A luta pela tarifa zero vem das ruas. Concordando plenamente com sua fala, ela só vai ser conquistada com mobilização popular, mas finalmente, talvez, com alguma demora, chegou agora de fato essa mobilização também no Congresso Nacional. E é como queremos, de fato, ver essa bandeira saindo do papel agora.
Eu estou falando aqui pelo INESC, como a Deputada já falou, o Instituto de Estudos Socioeconômicos. Nós somos uma organização aqui de Brasília. Atuamos principalmente no monitoramento e na luta pelo orçamento público. Então, monitoramos a garantia de direitos a partir da análise do orçamento público.
Queria até começar a minha fala retomando a fala do Caribé logo no início, na mesa anterior, para dizer justamente que o Orçamento é um lugar onde vemos muito firmemente como se dá a luta de classes. Aqui estamos trazendo isso justamente para discutir as possibilidades de financiamento da implementação da tarifa zero e do fortalecimento e da concretização do SUM. E não há como pensarmos nisso sem pensar justamente como funciona e se organiza o orçamento público no Brasil. Sempre se diz: "Tudo bem, tarifa zero é muito importante, é fundamental, mas não há como financiar". É isso o que sempre escutamos. A minha fala é um pouquinho no sentido oposto a esse, justamente para dizer que há como financiar, sim.
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A Ana já apresentou uma proposta pensando na realidade de BH. O INESC também construiu um estudo pensando numa realidade nacional, que é o âmbito que estamos discutindo aqui agora. É uma discussão para pensar como tiramos o SUM do papel a partir de um reforço do pacto federativo, ou seja, pensando formas de financiamento para o transporte que tirem o peso atual que isso tem nos Municípios, no orçamento dos Municípios, e, na prática, na vida de usuários e usuárias de transporte coletivo, redistribuindo essa responsabilidade a partir da construção de um fundo de financiamento que passe por contribuições da União, dos Estados e dos Municípios.
Seria justamente pensar como construímos um tipo de mecanismo de financiamento que dê conta de acabar com o financiamento tarifário e efetivamente garantir o direito ao transporte, que já está previsto na nossa Constituição. Está previsto na Constituição, sem dúvida, com o esforço da Deputada Luiza Erundina, aniversariante, mas também como resultado direto das mobilizações populares que conseguiram incluir mais esse direito. De novo, ressalto que precisamos não apenas incluir esse direito no papel e na Constituição, mas precisamos garantir que ele saia de fato do papel.
Nesse sentido, o INESC lançou, em 2018, o estudo chamado Embarque por direitos, que está no nosso site para quem quiser ver, que levanta algumas hipóteses de possibilidades de financiamento, pensando, como eu disse, nesse fortalecimento do pacto federativo, com recursos provenientes da União, dos Estados e dos Municípios. No estudo, desenhamos três cenários. Precisaria de algumas atualizações no sentido de atualização de IPCA e tudo mais, mas previmos, para se financiar a tarifa zero total em todo o País, que seriam necessários mais ou menos 71 bilhões de reais anuais.
De onde viriam esses recursos? De três fontes diferentes, como eu disse. Por parte da União, viriam de taxações específicas da gasolina. Lembro aqui que é sempre complexo falar de taxação de gasolina, porque pensamos no usuário final, que vai ser prejudicado, mas também temos dados que demonstram que quem mais gasta... Essa não é uma fonte regressiva, como, às vezes, aparece, que cobraria mais de pessoas mais pobres. Na verdade, os dados que temos são contrários a isso. A parcela mais rica da população gasta muito mais com gasolina do que a parcela mais pobre.
Além disso, obviamente, também estamos pensando essa disputa pelo financiamento do transporte como uma possibilidade de enfrentamento da crise climática que estamos vendo, com uma mudança da nossa matriz energética. Então, quando estamos falando isso, também estamos pensando medidas que diminuam a possibilidade do uso do transporte motorizado individual ou que desestimulem esse uso, que também são importantes.
Incluímos nos recursos provenientes da União a taxação de gasolina e mais uma reformulação do funcionamento do vale transporte, mais ou menos como o modelo que BH está pensando. E isso não tem nada a ver com desonerar empregador. A ideia não é desonerar empregador, porque justamente o que vemos é que precisa ser financiado pelos setores mais ricos. Só que, em vez de onerar também o trabalhador, pagando sua parte da passagem e adquirindo vale-transporte, o que se faz é construir um fundo com recurso do empregador.
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Por parte dos Estados, pensaríamos numa taxação extra no IPVA, também pensando na progressividade do uso desses impostos. Para os impostos municipais, pensaríamos numa parte do IPTU e eventuais taxas de cobrança pelo uso do espaço público, pelo uso viário etc., como, por exemplo, está proposto na PEC 25.
Essa é uma proposta. São muitas. Precisamos pensar e aprofundar essa discussão. Para nós, o que é muito importante é pensar de fato que as fontes sejam progressivas, que exista um pacto federativo que garanta o financiamento do transporte, que isso faça que efetivamente se tire uma coisa que é tão fundamental para as cidades acontecerem, com a responsabilidade dos usuários, que também são a parcela justamente mais vulnerável da sociedade.
Então, 71 bilhões de reais — que é, mais ou menos, o cálculo que fizemos — é muito? Qual é o nosso argumento? São milhões de pessoas que vão ter a possibilidade de acessar a cidade a partir daí. São justamente os setores que carregam a sociedade nas costas que vão parar de financiar, inclusive para fazer as cidades funcionarem. É uma possibilidade de mudar a lógica das cidades, inclusive fazendo com que elas sejam, de fato, um espaço de garantia de direitos e acesso a outros serviços, e não apenas condenando as pessoas a um deslocamento, que é um martírio, de casa para o trabalho e do trabalho para casa. É também a possibilidade de mudar o nosso quadro de emissões, porque se desestimula o uso do transporte individual motorizado.
Para quem ainda acha que isso é pouco pelos argumentos políticos, eu queria trazer alguns números. São os seguintes: Brasília gastou até agora 860 milhões de reais numa ação orçamentária que eles chamam, ironicamente, de equilíbrio do sistema financeiro do transporte coletivo. Não vou entrar aqui nos meandros de como funciona o transporte coletivo em Brasília, mas é basicamente o recurso que se paga diretamente para fazer o equilíbrio do sistema financeiro de acordo com as demandas dos empresários de transporte coletivo.
Em 2023, prevê-se que só São Paulo vai gastar 7,4 bilhões de reais de subsídios para o transporte coletivo. Isso tudo com usuários e usuárias seguindo oprimidos pela tarifa e com uma crescente ausência das pessoas, que são expulsas da possibilidade de se locomover pelo transporte coletivo atualmente por conta do preço da tarifa. Esses valores são versus 71 bilhões de reais para garantir tarifa zero e todas aquelas outras contribuições políticas que uma medida como essa traz.
Atualmente, gastamos muito dinheiro com transporte coletivo. Só que não gastamos muito dinheiro para garantir o direito de ninguém, a não ser do empresário do transporte. O que temos hoje é um constante aumento de subsídios para as empresas. E isso, depois da pandemia, aumentou muito, cresceu muito. O que temos hoje justamente é uma forma encontrada de conciliação: o aumento de subsídios pagos para as empresas é o novo aumento de tarifa. É o aumento de tarifa sem conflito social.
Só que, como diz Caribé, o orçamento é luta de classes. E, se estamos falando disso, estamos perdendo, sem um conflito social imediato que a tarifa ocasiona, mais recursos para garantir nada mais, nada menos que o lucro dos empresários.
Então, de novo, o que falta não é exatamente recurso público, e sim um olhar garantidor de direitos. O que falta é que o Orçamento revertido para o transporte seja investido para outro fim que não proteger os empresários de uma suposta falência, que, aliás, é anunciada há anos e nunca chega. É bem curioso como isso sempre acontece. Desde que eu entrei na luta por transporte, os empresários estão falindo, mas nunca faliu nenhum. É impressionante! Como olhar para esse recurso que é gasto no transporte coletivo para garantir os lucros dos empresários e modificar essa lógica?
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A luta pelo transporte pode ser uma oportunidade de jogar às claras sobre o funcionamento da lógica de subsídios no Brasil, porque isso acontece no transporte coletivo, mas acontece também em vários outros setores. Vou até fazer uma propaganda: segunda-feira vamos lançar no site do INESC, no âmbito da Convenção sobre as Mudanças Climáticas, um novo estudo sobre subsídios aos combustíveis fósseis. Vejam, dados do ano passado revelam um investimento de 46,3 bilhões de reais em subsídios para a produção de combustíveis fósseis no Brasil, valor muito maior do que o investido em energia renovável. De novo, são 46,3 bilhões de reais gastos para beneficiar alguns poucos acionistas — não é de trabalhador da PETROBRAS que nós estamos falando — e continuar estimulando a produção de combustível fóssil, que é basicamente o contrário do que deveríamos estar fazendo.
Eu acho que é importante trazer essas coisas, porque, a partir da luta pelo transporte público, pela garantia da tarifa zero e pela construção de um fundo para financiamento de uma política que vai ampliar direitos e que tem o potencial de modificar a lógica da cidade e de reduzir as nossas emissões, temos a oportunidade de entrar também na discussão sobre como funciona o Orçamento e qual é a lógica dos subsídios atualmente no Brasil.
A SRA. PRESIDENTE (Natália Bonavides. Bloco/PT - RN) - Obrigada, Leila.
Como foi colocado, me chamo Paique Duques Santarém e sou militante do Movimento Passe Livre do Distrito Federal e Entorno e também do Movimento Passe Livre Brasil.
Eu estou ajudando a construir o movimento desde o começo, há 19 anos, e estou pesquisando, produzindo e trabalhando no tema também há 19 anos — coincidiu com o início da minha vida universitária —, de modo que, entre os doutos, a partir dessa forma estranha de se aferir e arrogar autoridade, eu estaria classificado como um amplo pesquisador e ativista do tema dos transportes, alguém que conhece profundamente o assunto. Mas eu penso justamente o contrário. Desde o começo do movimento, qualquer usuário ou usuária do transporte que se vincula à pauta tem décadas de vida de espoliação do transporte, então, tem muito mais legitimidade do que qualquer prototécnico que arroga para si a qualidade de formulador e realizador do transporte ou de suas diretrizes, sem necessariamente estar vinculado ao transporte ou realizando o transporte cotidianamente.
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A nossa defesa fundamental, como movimento social, é que os usuários e as usuárias do transporte, os trabalhadores e as trabalhadoras são quem deve gerir o transporte coletivo, são quem deve definir como ele se organiza e funciona. E o papel dos técnicos — muitos técnicos foram chamados para cá — é obedecer aos trabalhadores, às mulheres, à população negra e à população LGBT. Essa é a questão fundamental para nós. A partir daí, nós vamos discutir economia e formas de financiamento. O nosso papel, como movimento social é, claro, propor e constituir a política pública, formar uma nova perspectiva de transporte, mas, fundamentalmente, a nossa disputa é econômica. Nós estamos disputando os recursos da sociedade.
É nessa disputa econômica que eu vou centrar a minha fala. Mas vou também, claro, fazer algumas provocações, algumas ofensas veladas a diferentes setores que nos oprimem, nos violentam e nos assassinam — tentam o genocídio da nossa população há alguns séculos — e também desafiar a população à mobilização, a um tipo de ato, a uma disputa, a um conflito que nós temos no momento. Então, esta fala vem carregada de anos de luta, de anos de gás lacrimogêneo, de anos de enfrentamento aos principais setores da burguesia e ao racismo e patriarcado presentes na sociedade. Eu acho que é fundamental colocar essa perspectiva de conflito social, de luta de classes, de luta antirracista, de luta contra o sistema patriarcal presente na sociedade, para que nos localizemos a partir dos termos técnicos que vou falar, mantendo essas provocações.
Quando os ricos, os liberais, os playboys ou os manipulados dizem que não existe almoço grátis, estão muito corretos, porque sabem que o almoço é uma produção social e, como toda produção social, é produto de relações sociais. Hoje o almoço no Brasil, que não é grátis, é produto da expropriação capitalista da produção. Eles estão corretíssimos. Igualmente, o transporte hoje é produto da expropriação capitalista da produção. É um mecanismo de extração, de espoliação e de exploração de uma classe sobre outra.
Qual é o mecanismo? Por meio da tarifa, nos últimos 120 anos, as classes C, D e E têm financiado a classe A+, detentora das empresas de transporte. Nos últimos 120 anos, 130 anos, foi assim que o transporte foi organizado. Por meio da tarifa do transporte coletivo, pessoas pobres e muito pobres pagam todos os dias o enriquecimento de empresários do transporte. Esse é o ciclo da tarifa hoje, essa é a forma econômica de financiamento do transporte hoje. Não existe transporte grátis. Hoje as classes C, D e E pagam para que a classe A+ enriqueça. E essa classe faz o que com esse dinheiro? Funda empresa de transporte de mercadoria, pega chassi de caminhão e coloca carroceria de ônibus para fazer empresa de ônibus. Depois, com o dinheiro que ganha, compra empresa de avião, fazem empresa de avião. Temos alguns casos na história do Brasil. Compram terra. Fazem financiamento de caixa dois de político — não sou eu que estou dizendo, podem procurar nos jornais, porque há denúncias —, fazem lavagem de dinheiro para legalização de drogas. Essa é a economia do transporte hoje. O almoço que não é grátis está financiando isso.
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Então, esse é o ciclo que nós estamos interessados em quebrar quando discutimos o financiamento do transporte.
Qual é o ciclo que nós estamos interessados em constituir? O ciclo em que a classe A+ e a classe A, e talvez parte da classe B, paguem pelo transporte. Elas vão ser tributadas — acho que os mecanismos foram apresentados aqui — para financiar o transporte coletivo, para que toda a população possa utilizar a cidade. Esse é o centro da disputa que nós estamos colocando quando dizem que não há dinheiro para tarifa zero. O que os ricos dizem quando afirmam que não há dinheiro para tarifa zero? Eles estão dizendo que não querem pagar para a população circular, que querem continuar expropriando a população preta, pobre e periférica para circularem pela cidade.
O que nós estamos discutindo aqui, então, como forma de financiamento da tarifa zero, são os mecanismos de revertermos, atacarmos e acabarmos com a expropriação de classe presente no transporte coletivo, e em diferentes outros serviços, é claro. Por meio desse, entramos num debate mais amplo. É disso que nós estamos falando.
As cidades que implementaram a tarifa zero, hoje, por mecanismos muito diversos, são 88. Nós não estamos chegando à meta de 100 cidades neste ano, que era nossa perspectiva enquanto Coalizão Mobilidade Triplo Zero. O que as cidades estão falando? O que as cidades estão relatando? O que aconteceu com esse dinheiro das classes C, D e E, que não pagam mais a tarifa? Essa galera está comprando churrasquinho; essa galera não está lavando dinheiro de tráfico de cocaína para financiar político para ganhar a eleição e, assim, aprovar uma série de leis escrotas no Congresso; essa galera está comprando churrasquinho com esse dinheiro, está comprando comida para a família; está financiando e aquecendo o mercado local; está indo para a balada e, assim, financiando e aquecendo a economia do setor cultural; está dando recursos para os seus filhos e as suas filhas; está comprando livro para ir para a escola; não está indo mais descalça para a escola, está indo de chinelo ou de tênis; está comprando, está financiando e aquecendo a economia local; está aquecendo a economia de uma forma ainda, sim, dentro do marco capitalista, é claro, mas que garante renda para a população que hoje está excluída do transporte coletivo.
Muita gente fala, e corretamente, do martírio dos trabalhadores que vão e voltam para casa nesse transporte organizado como expropriação, mas não falam — e eu quero acrescentar isto também — do tanto de pessoas que não circulam na cidade porque não têm dinheiro para pagar a tarifa. A mudança da forma de financiamento implica, em alguma medida, modificar isso. Então, nós estamos falando de uma transição de ciclos, de uma modificação da forma da expropriação econômica do transporte na cidade.
Em torno da crise atual do transporte — em que as empresas não estão falindo, elas estão tendo retração de lucros, e, quando a empresa está tendo retração de lucros, ela não tem mais investidores, porque talvez não consiga mais fazer uma coisa ou outra que sempre realizou —, em torno dessa crise, que é fruto de luta social e de movimento social que foi à rua pela tarifa zero, nós temos a aprovação do transporte coletivo enquanto direito e a elaboração agora de alguns projetos de sistema único de mobilidade. Esse é um avanço institucional importante para a conquista e a consolidação do direito à tarifa zero.
Eu quero fechar esta fala com aspectos necessários à implementação da tarifa zero por meio de uma nova forma de financiamento. Hoje, há uma abertura de debate sobre como financiar o transporte coletivo, em que o subsídio está aparecendo como mecanismo de salvação econômica desses setores capitalistas que expropriam os trabalhadores há 120 anos. É como se o subsídio fosse um mecanismo para manter as coisas como estão, para não quebrar esse ciclo em que as classes C, D e E pagam o transporte. É isso que nós estamos discutindo quando colocamos que a tarifa zero é o centro, é o princípio, é a primeira coisa a ser realizada no sistema único de mobilidade. Ela não é processo, ela não é a parte final do sistema único de mobilidade. Tudo começa pela tarifa zero e se estrutura a partir daí.
O que nós estamos querendo dizer com isso? Estruturando o transporte por meio da tarifa zero, estruturando o sistema único de mobilidade por meio da tarifa zero, você traz os trabalhadores e usuários do transporte para o centro do debate, e não a gestão dele.
A gestão do transporte serve para resolver os problemas, os princípios do transporte, que são os trabalhadores e as trabalhadoras do transporte e os usuários e as usuárias do transporte como o centro dele. E serão o centro dele a partir do momento em que tiverem o acesso pleno por meio da tarifa zero. Essa é a questão central para nós.
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Então, nós estamos falando de financiamento do transporte coletivo, modificando esses mecanismos, trazendo a classe A+ para pagar o transporte, por meio de uma série de tributações possíveis, que nós temos que imaginar, e trazendo os usuários para dentro dele, para que nós possamos mudar a função do transporte.
O que falta para a tarifa zero ser implementada neste modelo que nós temos agora — coisas que faltam para ela ser implementada. Primeiro, a aprovação imediata da PEC 25, do seu texto original, do texto hoje apresentado, do texto apresentado pela Deputada Luiza Erundina, mas que foi construído em diálogo com dezenas de movimentos sociais e organizações do Brasil inteiro. Esse texto tem que ser aprovado da forma como está escrito, sem nenhuma modificação regressiva, sem que retire algum direito de tarifa zero e gestão dos trabalhadores e trabalhadoras e usuários e usuárias do transporte. Esse é o passo inicial para podermos chegar à tarifa zero no âmbito nacional.
A constituição de um fundo nacional do transporte que vá financiando e constituindo a tarifa zero nos diferentes Municípios do País coloca também uma questão de gestão. Não se trata necessariamente de enriquecer estas mesmas empresas. O modelo que nós estamos discutindo é o das Prefeituras criarem empresas municipais de transporte e essas empresas poderem contratar os serviços. Aí, é preciso um debate sobre se você freta uma empresa que já contrata o trabalhador ou se você freta os veículos e a Prefeitura também contrata os trabalhadores, que é o modelo do SUS basicamente — sobre se o modelo é como você faz na coleta de lixo, em que contrata a empresa e a empresa contrata os trabalhadores; ou se você faz o sistema como o SUS ou como a educação, em que freta os materiais, mas o Município e a Federação são responsáveis pela contratação dos trabalhadores. Aí, nós temos um debate. Mas o centro é isto: nós estamos falando em acabar com os atravessadores e atravessadoras do transporte, que são essas empresas de transporte coletivo que hoje funcionam, mais do que para realizar o serviço de mobilidade, para definir o destino de muitas pessoas na cidade.
E essa segunda disputa nós resolvemos como? Com esse chamado que quero fazer. Nós precisamos, sim, em todas as cidades do Brasil ou nas principais cidades do País, da constituição de organismos, de conselhos populares de transporte e de movimentos sociais que lutem pela tarifa zero, que façam a constituição desse direito nas ruas, que façam uma pressão, realizando as suas lutas locais e a luta federal, para garantir a organização desse direito.
Está muito legal, muito interessante, a constituição de uma série de frentes — a Frente Parlamentar, organizações, articulações de diferentes setores — que têm buscado capitanear a pauta da tarifa zero. Nós sabemos a importância, a relevância de ela ser aprovada. Ela tem que passar pelas leis, a não ser que nós tenhamos uma sonhada e necessária revolução social que organize melhor as coisas no País, uma revolução social anticapitalista, numa perspectiva, de fato, libertadora, etc. Mas, tratando-se de lei, nós precisamos da aprovação dela no Congresso.
É fundamental, então, a constituição dessas Frentes Parlamentares, desses espaços de articulação. O fundamental da constituição de uma política pública, porém, é a mobilização de base, são os usuários e as usuárias do transporte e os trabalhadores e as trabalhadoras do transporte realizarem a gestão dele.
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Então, há um chamado que fazemos para 2024. Se for aprovada na CCJ, no último mês do ano, a PEC 25, nós teremos, em 2024, muita disputa para a aprovação desta lei e para a implementação da tarifa zero. Esse é o chamado, então, para que a população, os movimentos sociais, as diferentes frentes se organizem para pautar esse direito. Vamos seguir nessa luta por uma vida sem catracas e pela taxação de todos os ricos para financiarem o transporte.
A SRA. PRESIDENTE (Natália Bonavides. Bloco/PT - RN) - Muito obrigada, Paique.
No Youtube, havia alguns questionamentos no começo desta Mesa sobre o financiamento do passe livre. Eu acredito que todas as falas abordaram medidas concretas de propostas para essa questão. Como a Mesa foi mais curta, eu consulto vocês sobre fazerem considerações finais ou seguirmos para a seguinte.
A SRA. ANA CAROLINE AZEVEDO - Em primeiro lugar, quero mandar um salve para a Luiza Erundina, o que eu esqueci de fazer na minha fala. Ela é uma companheira que inspirou muito a nossa luta no tarifa zero, pioneira nessa discussão quando foi Prefeita de São Paulo.
Em segundo lugar, ficamos muito felizes em vermos os pré-candidatos, os prefeitáveis se apropriando da pauta. Mas é isso. Não adianta discutir sem o movimento social, porque já acumulamos muita coisa. E fizemos isso enquanto estávamos sendo chamados de doidos. Há 10 anos, a tarifa zero era utopia, era coisa de gente doida. Então, precisamos ter eventos para discutir no âmbito institucional, mas temos que convidar os movimentos sociais que estão construindo essa pauta desde sempre. É isso. A luta está aí. Ela não surgiu agora e é muito importante.
A SRA. PRESIDENTE (Natália Bonavides. Bloco/PT - RN) - Obrigada, Ana.
A SRA. LEILA SARAIVA PANTOJA - Na verdade, é isso. Quando pensamos neste tema dos mecanismos de financiamento, o pressuposto de tudo é mais ou menos na linha do que o Paique falou, porque não vamos conseguir fazer nenhuma dessas disputas de fato para o orçamento e mudar a lógica do financiamento do transporte agora, porque não faz sentido. Há um ponto fundamental de reafirmarmos. Como costumamos dizer na Coalizão Triplo Zero e no próprio Movimento Passe Livre, qualquer tarifa zero é melhor do que nenhuma tarifa zero.
Ainda assim, não faz sentido que, justamente sem a nossa mobilização popular, uma política de garantia de direitos como a tarifa zero sirva para manter o lucro dos empresários, sirva para manter essa expropriação, dessa vez indireta, via orçamento público, e não mais via tarifa. Então, reforçando o que o Paique falou, qualquer mecanismo de financiamento, disputa, desenho de orçamento — de onde vem o quê, se vai vir da União, do Estado, do Município, como vai vir, como vai ser organizado —, só vai conseguir alcançar um nível de progressividade que faz sentido com a nossa proposta de cidade, de organização do transporte e do mundo, em alguma instância, se vier com base na mobilização popular de fato.
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O SR. PAIQUE DUQUES SANTARÉM - Só quero fazer uma complementação, apesar de eu ter acabado de falar.
Estão saindo agora matérias sobre a aprovação da tarifa zero. Saiu uma matéria recente falando que tudo começou como um delírio de jovens e que agora está sendo implementado. É uma matéria que trata da tarifa zero em Campo Grande, eu acho, e que fala da possibilidade de aprovação dessa medida.
De alguma forma, está sendo tratada a pauta. Mas eu acho que vale a pena pensarmos que não foi, claro, um delírio de jovens, ainda que fôssemos jovens à época. Mas não foi um delírio de jovens. Do que estamos falando de fato? A Luiza Erundina está completando 89 anos. Ela não era jovem em 1992. Lucio Gregori também não era jovem em 1992, quando foi proposta a tarifa zero. Mas há uma questão fundamental em relação a quem luta por direitos sociais. Não é que haja algum problema em ser jovem. Aliás, eu adoraria voltar a sê-lo. O que eu acho é que há um problema ainda pela infantilização ou pela forma como são destratadas as pessoas que estão fazendo propostas e proposições.
Na Mesa anterior, eu acho que era para fazer essa citação. O colega que falou pelo vídeo ainda não entendeu que nós somos acadêmicos, que estamos na academia, que estamos produzindo mestrados e doutorados, que somos professores e professoras universitárias. E fundamentalmente nós conhecemos o tema para além desses espaços doutos. Então, a abertura do debate público, a construção de política pública precisa fundamentalmente dessa quebra tecnocrática da gestão do transporte, dessa quebra tecnocrática dessa forma de mobilidade.
Essa tecnocracia serve hoje, cremos nós do Movimento Passe Livre, como um mecanismo de dominação. Eu quero reforçar isso porque é para o transporte ser discutido por pessoas não alfabetizadas, que estão de chinelo, que estão de Kenner, que estão de aba reta, que estão na quebrada, que vão falar de outra forma, que vão usar outra linguagem, que vão falar gírias, que vão falar palavrão, que vão falar estranho. São essas pessoas que têm que estar discutindo o transporte. É preciso que seja nessa linguagem, não necessariamente na linguagem de modal, IPK, quilômetro rodado e blá-blá-blá. Legal, é importante colocar em termos técnicos. Eu não sou contra termo técnico de forma alguma, mas nós temos que entender que esse é um debate popular, é um debate de outra linguagem.
A SRA. PRESIDENTE (Natália Bonavides. Bloco/PT - RN) - Obrigada, Paique.
Faremos agora a transição para a terceira e última Mesa, continuando o debate sobre o Sistema Único de Mobilidade e a relação com as mudanças climáticas, cujo tema é: Transporte público como ferramenta de enfrentamento das mudanças climáticas.
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Eu queria agradecer inicialmente o convite à Deputada e às organizações que colaboraram para realizar esta audiência pública sobre um tema fundamental para a realidade brasileira. Aproveito obviamente para saudar a querida Deputada Luiza Erundina, que, há muito tempo, engrandece a arena pública brasileira com a sua trajetória de lutas por direitos.
Eu vou fazer uma fala rápida. Acredito que o debate já trouxe as principais questões sobre as quais o instituto não tem experiência ou atuação focada, que são muito específicas da estruturação da política pública de transporte no Brasil. O Instituto Ar tem um foco na qualidade do ar, na poluição do ar, na melhoria da qualidade do ar no Brasil. O instituto atua há mais de 15 anos, tem sede em São Paulo, nasceu de uma iniciativa de médicos e se debruça sobre essas questões sob o viés da política pública. Sempre buscamos que o Estado brasileiro tenha uma atuação condizente com aquilo que está disposto na Constituição e com as legislações já existentes, cuja implementação efetiva ainda não vemos, assim como ocorre em diversas áreas.
Com relação à política de transporte, à poluição do ar e à crise climática, gostaríamos de trazer ao debate a relação, de fato, intrínseca entre esses componentes. O setor de transporte no Brasil é uma das principais fontes de poluição e de emissão de gases de efeito estufa. Aí eu chamo atenção para essa dicotomia que existe sobre questões técnicas na diferenciação entre gases de efeito estufa e poluentes. A sua existência tem um sentido histórico, mas sabemos cada vez mais que é uma falsa dicotomia e que, muitas vezes, leva a uma dificuldade de implementação de políticas públicas também. Afinal de contas, se gases de efeitos estufa a longo prazo — ou não tão a longo prazo, como estamos vendo agora — vão inviabilizar a continuidade da vida na terra ou, pelo menos, afetar diretamente a população mais vulnerável, os seus efeitos terão impacto maior do que os próprios poluentes. Além disso, temos também um componente muito importante nessa discussão que são os poluentes climáticos de vida curta, especialmente o carbono negro, que compõe o material particular e que é o principal poluente gerado no setor de transporte.
Trago dados da saúde para rapidamente acrescentar à informação que a colega trouxe no começo da audiência de que cerca de 32 mil pessoas morrem anualmente em razão do transporte no Brasil. Sabemos quem são essas pessoas, como ela bem pontuou, onde vivem, que cor têm, que gênero têm. As pessoas que sofrem com a poluição do ar têm a mesma condição. Cerca de 50 mil pessoas, segundo dados da Organização Pan-Americana de Saúde, morrem anualmente no Brasil em razão da poluição. A poluição do setor de transporte e da indústria e a queima de biomassa nas florestas são as principais fontes de emissão de poluentes no Brasil.
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Nesse sentido, uma política pública que trate de qualidade do ar é intrinsecamente ligada à perspectiva da questão climática e do setor de transporte como componentes fundamentais, especialmente nos grandes centros urbanos, mas não só neles. Como os dados apontam, nos grandes centros urbanos, a questão da poluição relacionada ao transporte afeta especialmente a população mais frágil. Na população em geral, estão jovens, crianças e idosos. Obviamente, dentro dessa população, mais uma vez, há o recorte de classe, de renda e de território dentre aqueles que são mais afetados.
O Instituto Ar, que atua especialmente em São Paulo, onde temos sede e estamos localizados, entende como fundamental a aprovação da PEC como elemento que, de fato, vai dar uma diretriz para a ação do Estado brasileiro, especialmente para a União, de atuação e de estruturação de um sistema nacional que viabilize o transporte acessível, gratuito e limpo para a população.
As premissas e as ressalvas que foram colocadas aqui são fundamentais. Esse debate sobre o financiamento do transporte gratuito, de fato, é algo que precisa ser urgentemente colocado para que o transporte gratuito não passe a ser simplesmente um recorte no orçamento que vai inviabilizar outras políticas fundamentais. Sabemos — e isso está colocado na legislação — de onde esse financiamento pode sair, como foi também muito bem pontuado por outros colegas.
Em síntese, é essa a contribuição que nós gostaríamos de acrescentar ao debate sobre o transporte nos centros urbanos, especialmente do ônibus, que utiliza o combustível fóssil. Sabemos que, apesar de sempre buscarmos o aumento e a implementação do transporte sobre trilho de massa, é um processo muito mais moroso do que o de transformações mais estruturantes no sistema de ônibus. Então, buscar um modal de ônibus mais limpo, que tenha mais qualidade para o trabalhador, para os usuários do transporte de ônibus nas cidades é fundamental.
Em São Paulo, vivemos hoje um processo — ainda está lento, mas já se iniciou — de transição da frota de ônibus para a frota elétrica. De fato, é a tecnologia que se encontra disponível com capacidade de suprir a quantidade de ônibus que o sistema em São Paulo possui, que é gigantesca. Cerca de 12 mil ônibus compõem o sistema de transporte público do Município de São Paulo. E esse processo está ocorrendo lá com vários problemas, que foram mencionados aqui também e que já ocorrem com uma pequena quantidade de ônibus que entraram, como o fornecimento dessa energia, a capacidade do sistema de suportar esses ônibus transitando. Enfim, são desafios que estão colocados. Muitas organizações que trabalham em parceria conosco também estão buscando dialogar com o poder público local e sempre pressioná-lo para que essa transição não deixe de ocorrer, buscando um sistema de transporte de emissão zero no Município.
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A SRA. PRESIDENTE (Natália Bonavides. Bloco/PT - RN) - Obrigada, Sr. Hélio.
O SR. YURIÊ BAPTISTA CÉSAR - Deputada, eu queria, primeiro, agradecer-lhe o convite e a oportunidade de estar aqui.
A pauta do transporte e da mobilidade urbana é fundamental para discutirmos cidades, discutirmos o ambiente em que vivemos, discutirmos a sociedade inclusive. Como anunciado, eu faço parte da União de Ciclistas do Brasil, que é uma organização, uma ONG que luta pelos direitos dos ciclistas, para que existam políticas públicas que favoreçam e garantam às pessoas a segurança no pedalar nas cidades — e não só nas cidades, mas nas vias de uma forma geral.
Na semana passada, a nossa organização fez 17 anos. E nós reunimos pessoas, outras organizações e empresas em torno dessa pauta da mobilidade por bicicleta. A pauta do transporte como direito é muito importante para nós. Obviamente, utilizamos a bicicleta no dia a dia para nos deslocarmos na cidade, para acessarmos os locais de trabalho, as moradias, a educação e todas as políticas públicas.
Temos uma discussão importante a ser feita. Eu tento colocar muito a questão da mobilidade urbana, não necessariamente do transporte em si. A pauta do transporte público é uma pauta importante, fundamental, porém temos que entender o transporte de uma forma mais ampla. Quando falamos em mobilidade urbana, estamos falando dessa complexidade muito maior do transporte, que não se limita ao transporte público coletivo. Nesse sentido, o uso da bicicleta vem como uma forma que não é simplesmente complementar — e não é só a bicicleta, mas o caminhar também.
Aqui em Brasília, eu sou diretor também da Andar a Pé, que é uma associação também que luta pelos direitos dos pedestres. O andar na cidade, o caminhar na cidade, o pedalar na cidade não deve ser visto, nessa pauta do transporte como direito social, apenas como complementar a esse sistema. Ele é essencial para a cidade viver. As pessoas não se deslocam apenas para acessar o automóvel, o ônibus, o trem, o metrô. As pessoas se deslocam também para chegar aos seus destinos. Por mais que seja só esse deslocamento da casa para o ponto de ônibus ou para a estação do metrô, muitas vezes é um deslocamento longo, árduo e que também precisa de políticas públicas para acontecer da melhor forma.
Então, é importante colocar isso para ampliarmos esse entendimento da política pública, do Sistema Único de Mobilidade Urbana. Existindo uma estrutura federal, um financiamento, uma forma de se ver e de se organizar a mobilidade urbana como um todo no País, precisamos pensá-la na íntegra, e não numa parte dela somente.
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Nós entendemos que a mobilidade urbana é central para discutirmos o direito à cidade. Ela é central para que a cidade tenha a sua função de fato social. As pessoas precisam se deslocar, precisam ser respeitadas nos seus deslocamentos, e a sua integridade física precisa ser garantida. Elas precisam também ser respeitadas nos espaços que estão ocupando. Eu coloco muito a questão do ir e vir e do estar na cidade, permanecer na cidade, viver na cidade.
Então, nós precisamos entender que um dos grandes problemas da mobilidade urbana, que é segregadora, que é excludente, como foi bastante falado aqui, é a questão do automóvel. O automóvel permitiu que isso se acentuasse ainda mais, não só com o transporte coletivo, que traz as pessoas da periferia da cidade e a força de trabalho para os locais de trabalho, mas também com o automóvel, que faz com que as pessoas que não estão dentro desse transporte se desloquem na cidade. Com isso, foi reforçada essa segregação. E a forma de colocar o automóvel na cidade, que fez com que as cidades fossem basicamente projetadas para crescer e se desenvolver em torno desse automóvel, fez com que a cidade se tornasse um local inseguro para as pessoas estarem.
Nesse sentido, quanto mais pessoas se deslocam de automóvel na cidade, quanto mais a cidade se coloca para propiciar que cada vez mais o deslocamento de automóvel tenha mais fluidez, como gostam de falar, mais se torna a cidade inóspita e não convidativa para outros modos de transporte, ou seja, para que o transporte público não seja de qualidade e também para que quem pedale e caminhe na cidade enfrente uma série de dificuldades.
O automóvel é uma barreira urbana, ele cria milhares de barreiras urbanas. Aqui em Brasília, há o Eixão, o Eixo Monumental, que são vias muito espaçosas com várias faixas destinadas ao automóvel com velocidades altas e com pouquíssimas travessias seguras para os pedestres e ciclistas. E isso cria barreiras na cidade. Da mesma forma, as linhas de trem criam barreiras também intransponíveis muitas vezes. Os automóveis também criam isso na cidade. Então, nós precisamos entender e combater isso.
O automóvel, como foi colocado, gera poluição, gera uma série de problemas para a cidade e afetam não somente quem está se deslocando no automóvel, que fez a opção ou não por estar dentro do automóvel, mas afeta a cidade como um todo. Nós fizemos uma pesquisa recentemente e constatamos que 80% da população brasileira já perderam alguém em decorrência da violência do trânsito. Mais de 80% da população brasileira já perderam alguma pessoa conhecida em decorrência da violência no trânsito. Mais de 30 mil pessoas perdem suas vidas no trânsito anualmente no País, e esse número, infelizmente, está crescendo, não está diminuindo.
Então, nós precisamos ver outras formas de permitir que as pessoas se desloquem na cidade. E quando falamos disso, estamos falando de garantir segurança para as pessoas se deslocarem na cidade. E essa segurança vem também com a redução de velocidade.
Vem com um desenho da cidade feito de forma que garanta que as pessoas não sejam intimidadas pelo uso irrestrito do automóvel. Quando falamos do uso da bicicleta principalmente, temos exemplos mundiais, como o da cidade de Paris. Já foi colocada aqui a forma como se custeia o transporte coletivo na França. Paris tem na bicicleta o seu carro-chefe para a descarbonização da mobilidade urbana e para, inclusive, atingir as metas dos Acordos de Paris, dos acordos climáticos globais. Sabemos que, colocando mais pessoas para pedalar, colocando mais pessoas para caminhar nas cidades, menos pessoas utilizarão o automóvel, menos pessoas, também, às vezes, utilizarão o transporte coletivo, o que o desoneraria.
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Precisamos entender — e este é o grande recado que eu quero trazer aqui hoje — que a mobilidade urbana é maior do que o transporte. A pauta do transporte como um direito social é importante, é fundamental para nós, mas ela não se restringe ao transporte público coletivo. Ela precisa ser mais ampliada e entendida como uma política que garante o acesso às outras políticas, o acesso a uma vida comunitária, a uma vida na cidade.
Então, temos que entender a centralidade dessa política de mobilidade urbana como uma política de cidade, uma política de convivência, de bem-estar social também, não só de como se vai financiar a tarifa, de como as pessoas vão se deslocar por meio do ônibus, mas também fora dele, e de como, a partir disso, a cidade vai se desenvolver.
O Paique colocou aqui, um pouco antes, como, hoje, nas cidades do Brasil que já têm tarifa zero, as pessoas estão aplicando esse recurso na sua comunidade. O que elas gastariam no transporte estão gastando em outras coisas. E há também um outro viés, que é o quanto essas pessoas estão se deslocando mais pela cidade, estão vivendo mais a cidade. E hoje as pessoas deixam de se deslocar na cidade não só porque não existe transporte coletivo, mas também porque não existe segurança pública. O trânsito também é um fator que inibe as pessoas de se deslocarem, porque ele cria um ambiente urbano que não é convidativo, um ambiente de ruído, de poluição, de altas velocidades, que afasta as pessoas das vias.
Nesse sentido, então, precisamos entender a mobilidade urbana como essa grande teia que conecta toda a cidade e que faz com que esta seja de uma forma ou de outra. Incluir na pauta do SUM a questão dos pedestres, dos ciclistas e do desenvolvimento urbano como um todo eu acho que é fundamental para avançarmos em relação a esse debate.
A SRA. PRESIDENTE (Natália Bonavides. Bloco/PT - RN) - Obrigada, Yuriê.
Deputada, agradecendo o convite, eu peço licença para me autodescrever para quem estiver nos assistindo e não puder nos visualizar. Eu sou um homem branco de 1 metro e 80 e cabelos castanho-claros. Uso óculos e estou trajando paletó, que está frio aqui, e uma camisa branca riscadinha.
Eu queria começar falando da minha experiência pessoal e profissional. Eu comecei a lidar com esse assunto na década de 80 — muitas pessoas aqui não eram nascidas ainda —, na luta contra o aumento de tarifa. Eu morava num bairro de periferia em Ribeirão Preto, no bairro de COHAB, e o transporte público era um dos fatores de segregação da meninada. Eu era adolescente. Comecei minha luta no transporte contra o aumento de tarifa já na década de 80.
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Naquele momento, nós tivemos a generosidade de vários profissionais da academia e de vários integrantes de administrações e de empresas públicas que dividiam com o movimento social seu conhecimento. E é isso o que procuramos fazer hoje também, disponibilizar aos setores populares conhecimento para que tenham análise crítica e condição de participar de fóruns e de conselhos e de questionar o que está sendo feito, o que está sendo decidido, muitas vezes em nome da população, como políticas excludentes.
Por que eu falo isso? Porque, para o transporte público e a mobilidade urbana, hoje nós vivemos um momento histórico fundamental. Nós, enquanto País, vamos ter que tomar uma decisão: se nós mantemos um sistema estruturado de transporte público, regulado pelo Estado, com todos os problemas que nós temos hoje, ou se nós vamos ceder à tentação de muitas propostas neoliberais, inclusive de liberação de mercado, de desregulação do transporte público, o que vai fazer com que regridamos uns 40 ou 50 anos e estejamos num patamar de outros países da América Latina, da África e da Ásia em que as soluções que predominam são de mercado — quem tem dinheiro paga a tarifa, quem não tem fica em casa. E aí, no mercado, não vai haver meia tarifa, tarifa zero, não vai haver nada disso.
Então, eu queria fazer primeiro a observação de que é a primazia do Estado no planejamento da mobilidade que devemos buscar para podermos ampliar direito, e não cedermos à tentação de desregulação, de transporte clandestino, de operadores individuais. Defendemos sistemas organizados e planejados pelo Estado, e essa mudança só vai ser possível por meio de uma frente ampla. Nós estamos falando de várias forças políticas, de várias organizações. E é muito bom estar num ambiente em que há vários movimentos, vários ativistas e várias organizações discutindo, refletindo e formulando diferentes documentos sobre um sistema único de mobilidade urbana no Brasil. Esse é outro registro que eu gostaria de fazer.
O que eu vou apresentar aqui não é uma proposta acabada, é um esforço que o MDT — Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade para Todos fez para justamente produzir subsídios para o debate e colocá-los à disposição das pessoas que vão ter que tomar uma decisão, as que passam aqui pelo Congresso Nacional.
(Segue-se exibição de imagens.)
Para o MDT, o trabalho de implementação desse sistema único teve início em 2017, quando apresentou, no Congresso Nacional, uma proposta de sistema único de mobilidade urbana da ANTP — Associação Nacional de Transportes Públicos.
Em 2020, o debate sobre esse assunto foi caminhando, e vários Prefeitos, Deputados, Vereadores e movimentos começaram a discutir o transporte público principalmente por conta da crise da pandemia.
A primeira foi: quais são os direitos sociais garantidos pela Constituição Federal e como o Estado brasileiro se organizou para prover esses direitos? Fizemos uma análise comparativa dos vários sistemas existentes no Brasil que propiciam direitos — o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, o sistema de alimentação, o SUAS, o SUS, o SUSP, que é o de segurança, o Sistema Nacional de Trânsito e também a Política Nacional de Educação. Olhamos 17 variáveis e conseguimos sistematizar isso, então, nessa análise comparativa. Essas publicações estão no site do Instituto MDT: institutomdt.org.br.
A segunda pergunta foi: a partir das necessidades que nós temos e das características da mobilidade urbana, como se estrutura um sistema de mobilidade urbana? Que elementos de sistemas únicos poderiam ser incorporados? Este é o documento de fundamentação. O material que nós distribuímos aqui hoje é uma síntese dessa fundamentação.
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A primeira coisa que é importante frisar é que defendemos que o transporte público é o sistema estruturador da mobilidade urbana, porque é um direito social e um serviço essencial, assim definido pela Constituição. É o único serviço de mobilidade urbana que pode ser universalizado numa cidade. Nem todas as viagens podem ser feitas a pé, nem todos andam de bicicleta, muito menos têm dinheiro para comprar moto ou carro. Então, é o transporte público estruturado em rede que dá acessibilidade, como o Prof. Enilson colocou, para as cidades e para as pessoas. É por isso que entendemos que o transporte público é o estruturador da mobilidade urbana.
O transporte público tem o desafio quádruplo de recuperar passageiros, melhorar a qualidade do serviço prestado, ampliar seu financiamento e reduzir o custo para o usuário e também para a sociedade. Como insumo de produto de produção, como foi falado, tem que custar menos para a sociedade, e não apenas para o usuário. Então, são necessárias novas formas de contratação, operação e organização do transporte público, para que seja reduzido o custo para a sociedade.
Nós não estamos trazendo uma proposta acabada, finalizada. Isto aqui não é uma bíblia. O que nós trouxemos foram subsídios para qualificar o debate.
Defendemos, para o sistema de transporte público, primeiro, obviamente, uma base legal, com a aprovação de uma proposta de emenda à Constituição da Deputada Luiza Erundina, de que participamos da elaboração. Entendemos que o sistema único tem que ter uma fonte nacional de recursos administrada pelo Governo Federal e uma complementação financeira da União para o que for necessário, inclusive para a compra de veículos — eu vou tratar um pouco mais à frente da necessidade de transição energética no transporte. Entendemos, ainda, que é preciso um investimento mínimo por parte das três esferas de governo, além de permissão legal para que Estados e Municípios criem novas fontes de financiamento. Então, não se trata de transferir a conta para o Governo Federal. Estados e Municípios também têm que fazer seu esforço de financiamento para garantir o direito social ao transporte público.
O SUM é entendido no nosso documento como instrumento de gestão para atuação conjunta, coordenada, sistêmica e integrada dos entes federados para garantir o direito à cidade e o direito ao transporte público.
São princípios do SUM: primazia do Estado no planejamento e na organização dos sistemas; universalidade da cobertura e atendimento do transporte público coletivo; diversidade de fontes de financiamento; incentivo à pesquisa e incorporação do desenvolvimento tecnológico — é o motivo da Mesa —, que é onde acreditamos que entra toda a mudança de tecnologia que se pode ter em termos de frota de transporte público no Brasil; e planejamento integrado com as políticas de desenvolvimento urbano, ambiental e outras que se manifestam na cidade.
Nós procuramos organizar as responsabilidades das esferas de governo a partir do que chamamos de metas estratégicas nacionais: ampliação dos modos ativos; redução de vítimas do trânsito; ampliação do uso do transporte público coletivo; realização de transição energética; e estruturação da gestão pública. O sistema único reorganiza a ação do Estado para propiciar o direito ao transporte.
Além disso, o sistema considera a integração e o planejamento dos modos ativos como solução de transporte e mobilidade também, e não apenas como modo complementar. Em muitos locais, nas cidades menores, em especial, o transporte a pé e por bicicleta predomina. E, conforme as cidades vão crescendo, há maior complexidade, há o início do transporte público coletivo e há um pacote de aprimoramentos, que são diferentes daqueles para as cidades menores. Há uma obrigação, conforme a Política Nacional de Mobilidade Urbana, para todas as cidades, de cuidar da mobilidade a pé e de bicicleta. Depois, as cidades vão ter que cuidar do transporte público, conforme o seu crescimento. Então, existem obrigações mínimas para todas as cidades e outras que dependem do seu porte.
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O sistema único tem que se organizar para atender tanto as cidades pequenas quanto as médias e as grandes. A implementação do SUM deve considerar essa diversidade de cidades e as dificuldades que cada uma tem. Elas não estão no mesmo estágio de desenvolvimento e não têm a mesma estruturação da sua gestão pública. Então, o cumprimento dos princípios, diretrizes e objetivos da Política Nacional de Mobilidade Urbana são aplicáveis a todas as cidades — todas elas têm que cuidar do transporte a pé e por bicicleta, e as cidades onde há transporte público têm que cuidar disso também.
No caso das atribuições, o Governo Federal passa a ter um protagonismo maior, não no pagamento da conta, mas na coordenação de esforços, na gestão e implantação de uma fonte nacional, com divisões que vão ter que ser definidas por meio de lei regulamentar — como é que vai ser dividido o recurso entre Estados e Municípios —, na eventual complementação de recursos e no financiamento de infraestrutura.
Os sistemas precisam hoje de financiamento para dois fins: infraestrutura, o que o Governo Federal já faz, e custeio, o que solicitamos. Estamos reivindicando que o Governo Federal coordene e atue também nesse financiamento.
Em termos de estratégias e instrumentos, no campo de conhecimento das políticas públicas e dos direitos humanos, nós trabalhamos com vários referenciais teóricos. Nós atuamos junto ao Conselho Nacional dos Direitos Humanos para a aprovação de uma resolução, uma recomendação do estudo do Sistema Único de Mobilidade Urbana. Estivemos também na Conferência das Cidades. O Instituto MDT esteve, juntamente com outras organizações, na retomada do conselho, lá no Ministério das Cidades, reivindicando a discussão do SUM no Brasil. Também trabalhamos aqui, junto com a Frente Parlamentar Mista de Logística e Infraestrutura, que tem um comitê que trata de transporte e mobilidade, solicitando que a discussão seja feita. É com esse conceito de frente ampla que trabalhamos.
O SUM deve constituir um mapa do caminho e definir instrumentos para a mudança de comportamento e de gestão do poder público e também das pessoas nas cidades. Então, nós estamos falando de mudança da cultura de gestão e também da cultura de mobilidade urbana. É uma nova cultura, associada ao desenvolvimento orientado para o transporte e à estruturação do espaço urbano a partir do transporte público coletivo, e não da recepção de uma frota crescente de automóveis, mesmo que com as melhores condições possíveis de circulação para essa frota. Não se trata disso. Não adianta ter carros elétricos nas cidades, porque o nosso problema também é de espaço e de equidade na apropriação do espaço e das condições de acessibilidade. É por isso que a discussão ambiental não pode ser capturada como uma simples forma de mudança de tecnologia, se estão mantidos os mecanismos de exclusão criados na sociedade brasileira, que baseia a mobilidade urbana no transporte individual. Então, nós estamos falando de mudança de cultura, de mudança de financiamento, de mudança de gestão e de mudança do Estado brasileiro para propiciar a mobilidade urbana.
Um dos instrumentos que nós defendemos é justamente a implementação de um programa de desenvolvimento tecnológico de equipamentos e veículos de transporte associado a uma transição energética justa — não é qualquer transição energética —, para que o custo não recaia sobre os usuários e sobre a parcela da sociedade com menor renda.
O Brasil hoje exporta engenharia de transporte e sempre exportou veículos e equipamentos. Os ônibus brasileiros têm reconhecidas a sua capacidade e a sua tecnologia, e nós estamos perdendo mercado na América Latina por conta da eletrificação. Então nós podemos, no Sistema Único de Mobilidade Urbana, com um aporte de recursos do Governo Federal para a promoção da renovação de frota elétrica,
desenvolver a indústria nacional, gerar mais empregos e disputar novamente o mercado internacional.
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É na articulação dessas políticas públicas, então, que o sistema único de mobilidade urbana, no entendimento do Instituto MDT, também tem que ser pautado. Várias mudanças em termos de economia e de políticas sociais e de políticas urbanas podem ser feitas também por meio de um sistema único de mobilidade urbana. E isso passa também pela construção de capacidades para que Estados e Municípios contratem melhor, gerenciem melhor sistemas, planejem melhor sistemas e possam inclusive subsidiar, controlar subsídios, propiciar geração e transparência de dados para a sociedade. Não adianta falarmos em espaço de controle social se não houver informações compreensíveis pela população e se a população não tiver capacidade de análise crítica daquilo que está sendo proposto. São conhecidos vários espaços de participação social manipulados, ou em que a população simplesmente homologa decisões por falta de conhecimento. Por isso, é importante que a academia, os pesquisadores — e me incluo também nessa categoria — estejam dispostos a socializar e dividir conhecimento com a sociedade.
Fontes de recursos e objeto de financiamento — fonte nacional, distribuída, fontes estaduais, e a possibilidade de os Municípios criarem e aprovarem um leque de instrumentos de financiamento. Várias cidades que nós pesquisamos, e estão nos documentos, quiseram promover inovações e tiveram problemas por questões legais. No nosso caso, nós apontamos várias experiências, inclusive uma que nos chama muita ação e que temos divulgado, a experiência de Vargem Grande Paulista, que implantou a tarifa zero e criou o fundo de transporte e a taxa de transporte para subsidiar esse financiamento.
Organização, estrutura de gestão e funcionamento — conselhos, planos, programas, controle social, porque essa é a base. E nós não estamos mudando nenhuma atribuição do Município. É o Município que continua com a responsabilidade de planejar a sua rede de transporte, porque mobilidade urbana, diferentemente de saúde, está associada ao uso e à ocupação do solo, que são competências municipais. Quando o SUS foi criado, a ideia era municipalizar o SUS, o atendimento. A mobilidade urbana já é municipalizada, e a abordagem tem que ser um pouco diferente da trajetória histórica que nós vemos nos outros sistemas.
Com a implementação do SUM, a política é única, as metas são nacionais, a execução das ações é descentralizada para cada ente, mas coordenada pelo Governo Federal, que assume maior protagonismo. Ele não paga a conta; ele ajuda a criar fonte de financiamento, a fazer a divisão de recursos e a complementar onde for necessário, a partir de critérios claros e objetivos. O Governo Federal tem maior protagonismo, conforme prevê a lei de diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana. O SUM vem para implementar a Política Nacional de Mobilidade Urbana.
A SRA. PRESIDENTE (Natália Bonavides. Bloco/PT - RN) - Obrigada, Renato.
Primeiro, eu queria agradecer, Deputada Natália Bonavides, pelo convite, em nome do Ministério do Meio Ambiente. É uma honra enorme estar aqui com vocês para discutir esse tema tão importante para o meio ambiente urbano. Falar de mobilidade é falar de qualidade de vida, de melhoria no meio ambiente. É um prazer estar aqui com os meus amigos Renato Boareto, Hélio, Yuriê.
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São quase 20 anos em que estamos militando e trabalhando pela mobilidade sustentável. Hoje eu estou no meio ambiente, mas com toda a complementaridade dessas duas agendas. Todos nós sabemos dos grandes desafios que a humanidade enfrenta, que as pessoas enfrentam nas cidades. Infelizmente, todos os alarmes das emergências climáticas se tornaram realidade. Vivemos hoje estas grandes crises globais com as mudanças climáticas: a crise da poluição; a crise da perda de biodiversidade; as crises climáticas e a crise da qualidade do ar, que são crises gêmeas, que andam juntas.
Sabemos que a maior parte da emissão de poluentes nas cidades vem do transporte urbano. Não existe cidade bem-sucedida no mundo, Deputada, que não tenha um bom sistema de transporte público, um bom sistema de transporte não motorizado, com calçadas, com ciclovias, com integração modal. Por isso, há a importância de discutir o Sistema Único de Mobilidade e fazer esse debate à luz das mudanças climáticas, desses grandes desafios que vivemos.
Nós sabemos que infelizmente as nossas cidades não cresceram de forma planejada. Nós nunca tivemos aquele tripé do crescimento das cidades — mobilidade, habitação e emprego — tão pregado pelos urbanistas ainda no século passado.
O desenvolvimento orientado aos transportes, o TOD — transports oriented development, como se conhece lá fora, é a base do crescimento. Quando a cidade cresce desorganizada, com espraiamento, com centenas de milhares de pessoas morando a 20 quilômetros, a 15 quilômetros do centro das cidades, obviamente, não é fácil criar um bom sistema de mobilidade. É difícil promover a acessibilidade desse sistema, que tem elevado custo, assim como é muito mais difícil levar saneamento, postos de saúde e tudo o mais para essa cidade que cresceu sem planejamento.
Então, cada vez mais, temos que resgatar a essência das cidades, esse espaço de convivência, de interação social, revitalizando as áreas centrais, diminuindo as viagens e, obviamente, tentando melhorar o transporte público para reduzir a poluição.
O Hélio comentou bastante sobre os problemas da qualidade do ar nas nossas cidades hoje. Pelo menos, 30 mil pessoas morrem de acidentes, conforme o Yuriê comentou, mas 50 mil brasileiros morrem todos os anos do impacto direto da poluição urbana, do material particulado. Nisso, Deputada Natália, não estou nem considerando as outras milhares de pessoas que morrem de câncer, de problemas cardiorrespiratórios e de outros causados pelo impacto da poluição.
Para se ter uma ideia, cidades mais poluídas chegaram a ter três ou quatro vezes mais mortes por COVID–19 do que cidades não poluídas. Estudos de Harvard feitos em Nova Iorque, da Universidade de Siena feitos em Milão e da Universidade de São Paulo já têm os primeiros dados relacionados à morte nas regiões periféricas das cidades.
Infelizmente, nunca conseguimos implementar o chamado tripé político, que iria reduzir a quantidade de viagens, fazer a mudança modal e dar eficiência ao sistema. Então, como essas políticas nunca foram integradas, hoje temos que correr atrás do prejuízo. E a realidade é que a maior parte dos sistemas de transporte público do Brasil antes da pandemia era bancada pelos usuários do sistema.
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Uma emenda à Constituição, feita à época por proposição da Deputada Luiza Erundina, equiparou o direito ao transporte e à mobilidade ao direito à educação e à saúde, ao acesso ao lazer e ao emprego. Infelizmente, as cidades não criaram estruturas de transporte público boas para terem uma baixa emissão de poluentes e se desenvolverem ao redor da estruturação desses corredores.
Nós sabemos como as grandes e as médias cidades têm hoje a política de expansão urbana muito baseada na ótica do setor imobiliário, que muitas vezes não pensa nessa correlação que precisa ser feita entre a infraestrutura e as outras políticas. Esse é um desafio para nós. E, para trazermos o desafio climático para dentro da política pública, precisaremos cada vez mais pensar no peso das emissões de gases de efeito estufa e de poluentes locais à medida que planejamos esse futuro sistema integrado.
Para mim, não há dúvida de que, em poucos anos, o transporte público será uma das principais pautas de debate dos Prefeitos, porque as cidades vão travar, não vamos ter recurso para bancar a estrutura desses novos sistemas, os usuários não vão conseguir pagar. Por décadas e décadas, nós subsidiamos o transporte individual, construindo infraestruturas.
Também me lembro muito do Prefeito Enrique Peñalosa, lá de Bogotá — o Boareto deve se lembrar daqueles eventos que fazíamos lá em São Paulo —, que nos mostrava propostas de agências de cooperação internacional de países que vendem muito veículos, fazendo grandes viadutos elevados, cortando cidades. E ele mostrava que, com aquele dinheiro, podia fazer um super-sistema. Com o recurso de um elevado, ele podia construir todo um sistema de BRT, de corredores rápidos, e Bogotá virou uma referência mundial.
Visitando agora Nairóbi, no Quênia, vi que o maior investimento da década da cidade foi um grande viaduto elevado, que vem do aeroporto até o centro da cidade. E, quando se pega um táxi ou um Uber, o motorista vai por baixo, porque custa 2 dólares a tarifa do viaduto, que fica vazio.
Do quarto do meu hotel, eu via o viaduto. No chamado horário de pico, de manhãzinha, havia meia-dúzia de carros passando ali. E o trânsito estava travado na cidade inteira, com centenas de milhares de pequenos ônibus e vans velhas vendidas na Ásia, sem regulamentação nenhuma sobre poluentes, com um cheiro de diesel de baixa qualidade — com certeza mais de 500 PPMs, de 2.000 PPMs de enxofre — e que não têm nem onde andar.
Quer dizer, investe-se na infraestrutura de transporte individual, e, ao fazer isso, falta dinheiro para a infraestrutura do transporte público. Isso é corriqueiro. Por isso, há a importância, nesse contexto da emergência climática, de cada vez mais termos uma abordagem transversal.
Hoje o meio ambiente é um dos eixos da transversalidade do Governo. Isso está provado no plano de ação. O próprio PPA Participativo trouxe a emergência climática como o primeiro item da demanda da sociedade. Quer dizer, a sociedade, então, está atenta a esses desafios.
Por exemplo, vimos a situação essa semana em Natal, Natália. Eu realmente fiquei abismado. Gosto muito de Natal, já fui muito para lá, nunca imaginei uma chuva naquela dimensão ou os estragos que faria. Eu sou de São Paulo. Vejo isso todos os anos ao recorrer o Brasil todo. Mas, se nós não integrarmos essa política pública de uma maneira eficiente entre o nível federal, estadual e municipal, vamos sempre enxugar gelo.
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Então, o principal programa do Governo hoje, que é o Plano de Transformação Ecológica, tem como eixos bioeconomia, finanças verdes, economia circular, adensamento tecnológico, infraestruturas verdes, mas tem também o eixo da transição energética, com um foco muito grande na expansão dos sistemas de mobilidade urbana por ônibus elétricos.
O MMA e o BNDES trabalharam agora na emissão de títulos soberanos. Foram emitidos 2 bilhões de dólares, que equivalem a 10 bilhões de reais. A maior aposta é que esse recurso será financiado para os ônibus elétricos. O Boareto está correto quando diz que o foco do investimento na mobilidade tem que ser o transporte público. Primeiro, porque leva mais passageiros. Segundo, porque os benefícios, as externalidades positivas são muito grandes. Uma pessoa que chega meia hora antes em casa tem acesso a lazer, à educação do filho e a muito mais. Um paulistano médio perde 2 horas, 3 horas no trânsito de São Paulo. A cada hora, fuma um cigarro sem querer. Quem mora lá na ponta da Zona Leste fuma 3 ou 4 cigarros a cada perna de viagem, sem poder fazer muito.
Então, as políticas de integração do desenvolvimento urbano e da mobilidade precisam trazer esse aspecto do meio ambiente, do impacto da poluição na qualidade de vida das pessoas. Por isso é que estamos hoje muito focados nisso. O Ministério do Meio Ambiente está trabalhando para lançar e bancar redes de estações de monitoramento da qualidade do ar, com estações de referência, sensores de baixo custo para todos os 16 Estados que ainda não têm infraestrutura.
Vamos ajudar os Estados a fazer os planos de combate à contaminação e os planos de eventos críticos. Isso já estava previsto na Resolução nº 491, de 2018. A grande maioria dos Estados não o fez. O Supremo já declarou a inconstitucionalidade de uma parte da declaração. O CONAMA — Conselho Nacional de Meio Ambiente criou um grupo de trabalho sobre qualidade do ar para discutir a atualização desses padrões, que são os primeiros passos para depois termos bons inventários, bons planos de ação e políticas públicas integradas.
Ao mesmo tempo, há um plano de neoindustrialização, como o Boareto comentou. O Brasil sempre foi um grande exportador de ônibus, gerando milhares de empregos no País e milhões de divisas para nós. Mas o Brasil vem perdendo mercado. Argentina e Uruguai nunca tinham comprado um ônibus que não fosse brasileiro, e hoje trazem ônibus elétricos da China, porque a indústria brasileira não fez a transição para as tecnologias do futuro.
Por isso é que o plano de neoindustrialização, o Plano Nova Indústria Brasil, que o Presidente Lula vai lançar para a sociedade agora em dezembro, tem um foco tão grande no adensamento da cadeia produtiva de ônibus para melhorar as cidades e, eventualmente, impactar os outros setores.
Para finalizar, do ponto de vista climático, há a análise de ciclo de vida e todas essas tecnologias que estão a postos. Lá no Ministério do Meio Ambiente, nós tínhamos em desenvolvimento o Cidades Verdes e o ampliamos para um programa chamado Cidades Verdes e Resilientes, junto com o Ministério das Cidades e com o Ministério de Ciência e Tecnologia.
Nós o lançaremos daqui alguns dias na COP. Estou embarcando para o evento amanhã cedo. Esse novo programa tem alguns eixos, algumas abordagens intersetoriais e transversais nas políticas. Vamos ter gestão de áreas verdes; área de arborização, abordando todos os desafios do calor e de eventos extremos; soluções baseadas na natureza; agricultura urbana; uso e ocupação do solo; e eixo de mobilidade. Isso vai ser muito bom.
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Se um ônibus leva 40 mil pessoas por hora por sentido num corredor exclusivo, 20 mil pessoas por hora por sentido num corredor simples e 10 mil pessoas por hora por sentido num corredor sem preferência, o carro leva mil pessoas por hora por sentido.
Então, se estivesse faltando combustível, Deputada, eu tenho certeza de que nos sentaríamos aqui e falaríamos:
Só há mil litros de combustível para todo mundo. A prioridade é da ambulância, da viatura policial e do ônibus escolar. Se não há viário para todo mundo no horário de pico, nas viagens pendulares, em especial de casa para o trabalho e de casa para a escola, temos que chegar a um consenso. Se não tem viário para todo mundo, a prioridade são os ônibus, que levam mais gente; depois, a ambulância; em seguida, o carro de polícia.
A nossa Constituição foi muito clara no art. 225. O Constituinte, na época, liderado pelo Deputado Fabio Feldmann, trouxe para todos nós o direito a um ambiente ecologicamente equilibrado. Logo na sequência, no art. 227, o Constituinte fala que é obrigação, é dever das famílias, da sociedade e do Governo dar absoluta prioridade às crianças, aos jovens, aos adolescentes, à primeira infância.
Os mais impactados pela poluição são as crianças na primeira infância, porque respiram duas vezes mais rápido e estão no nível dos escapamentos. Elas têm ainda um sistema em formação do ponto de vista cardiorrespiratório. Então, estamos contaminando as nossas crianças e gerando consequências para toda a sua vida. A criança submetida à poluição, assim como a criança submetida à pobreza, à falta de alimentos, não vai ter o desenvolvimento cognitivo e motor de outras e, quando se tornar adolescente, jovem, vai competir em situação de desigualdade.
Aquele que morou em regiões mais poluídas teve o corpo frequentemente mais inflamado e vai desenvolver muito mais doenças. E não me refiro só a doenças cardiorrespiratórias. A poluição agrava problemas respiratórios, mas existem casos, comprovados por estudos, de diabetes, de hipertensão, de problemas de coração. Surgem problemas dos mais variados em função de as pessoas viverem em regiões mais poluídas.
Eu me lembro muito da campanha do nosso antigo Senador Jean Paul Prates para a Prefeitura de Natal. Ele fazia uns vídeos muito legais sobre transporte zero com ônibus elétrico. Na sua candidatura, ele fazia umas contas e mostrava que era viável uma cidade como Natal ter ônibus elétrico, ter um transporte tendendo à gratuidade.
Se sabemos que a mobilidade urbana é a chave para as cidades bem-sucedidas, é a chave para a melhoria da qualidade de vida nas cidades, por que não priorizá-la? Se o Governo Federal hoje coloca recursos importantes no PAC para ampliar a infraestrutura de transporte, precisamos, com Estados e Municípios, encontrar maneiras de financiar a operação desse novo transporte. Como o Boareto comentou, este é o nosso grande desafio: a fonte de financiamento para a mobilidade urbana.
Por isso, eu só tenho a parabenizar a Deputada, mais uma vez, por trazer esse debate e, melhor ainda, por unir o debate de mobilidade ao do clima. Esses são dois temas que nós precisamos debater cada vez mais em função da emergência climática.
Precisamos combater o racismo ambiental que habita as nossas cidades todos os dias. As pessoas que vivem nas regiões periféricas são as que mais sofrem e, infelizmente, com o agravamento dos eventos extremos, também serão as que mais vão sofrer com as enchentes, os deslizamentos e a quebra da infraestrutura de mobilidade, que sempre vem acompanhada desses eventos.
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A SRA. PRESIDENTE (Natália Bonavides. Bloco/PT - RN) - Muito obrigada, Adalberto.
Mais uma vez, quero falar sobre a importância desta audiência que está acontecendo hoje e parabenizar a Natália pelo compromisso de fazer um debate que nos é tão caro.
A partir dessa agenda, temos feito o debate sobre mobilidade associado a soluções de enfrentamento à crise climática. Falamos, nas primeiras Mesas, que 60% das emissões nos centros urbanos brasileiros estão na conta do transporte.
Na verdade, o custeamento do transporte individual e o custeamento do transporte rodoviário continuam com uma conta muito alta para as cidades brasileiras, como essas constantes operações de asfalto liso.
O transporte individual é o mais subsidiado pelo Estado. O Lucio Gregori, que também é da Coalizão Triplo Zero, no livro Tarifa Zero, traz os cálculos de como é possível formular um fundo de mobilidade para custear uma estrutura de mobilidade a partir de transportes que enfrentem a realidade das desigualdades na cidade. Temos debatido, desde 2017, o quanto a mobilidade é determinante para fazer as leituras das desigualdades sociais latentes que estão organizadas na cidade.
Como o Adalberto traz, ao final de sua fala, o racismo ambiental é um elemento acachapante nas estruturas e nas consequências das desigualdades que já são produzidas pelo clima. Então, a produção de uma política de mobilidade urbana precisa ser associada a essa perspectiva.
Sabemos que a construção e a regulamentação de leis têm um processo, inclusive, de aprofundamento de como essas políticas se operacionalizam nas cidades. Então, existe uma disputa de como é que se produz e se sistematiza e se garante que essas políticas, de fato, enfrentem a realidade de interdição sistemática que atravessa a vida de das populações negras, dos territórios negros.
Hoje é impossível fazermos leituras sobre as condições de vida, as condições sociais da população que estejam desvinculadas de uma leitura de que os territórios são racializados. Existem territórios negros e territórios brancos. As infraestruturas são repartidas, na verdade, a partir dessa perspectiva de que a dimensão e a construção dos territórios negros são atravessados pela interdição, pelo não acesso.
Cito a própria junção da política de mobilidade com a política de segurança pública. Eu coordenei a política de enfrentamento à violência contra a mulher no Município do Rio de Janeiro em 2021, quando conseguimos expandir o recurso para implementar novos serviços de atenção a mulheres em situação de violência.
Quando nós apontávamos o fato de que as mulheres tinham mais dificuldades de sair do ciclo de violência por causa da inexistência de equipamentos nos territórios de favela e periferia, o que nos diziam é que, nesses territórios, não poderiam ser implementados esses serviços, porque são territórios conflagrados.
Então, na verdade, essa dimensão da vulnerabilidade e da desumanização de territórios negros estrutura e define a continuidade de políticas de interdição. E, quando olhamos para a dimensão da cidade e para a forma como se estruturam as políticas, vemos inclusive a reprodução de desigualdades a partir da política de mobilidade.
Eu acho que isso é preocupante.
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O Brasil, desde a vitória eleitoral do Lula — e oficialmente na COP 27 —, assumiu um compromisso com a Agenda de Adaptação. Eu participei da COP do Egito, que foi histórica, com a maior delegação de negros das COPs. Mas, quando olhávamos para as mesas de negociação e pactuação sobre a prioridade orçamentária, víamos uma centralidade nas políticas de mitigação climática, que são principalmente a transição energética e a adoção de infraestruturas que reduzam e que zerem a emissão de carbono. Ou seja, nós víamos um debate que, na verdade, excluía das agendas e das soluções os setores mais impactados.
Houve uma resistência muito grande dessas mesas de negociação para a criação de um fundo de adaptação. Apesar de termos conseguido sair da COP com esse fundo criado, há uma dificuldade de o Governo brasileiro entender como estabelecer, nas estruturas e nas políticas que estão sendo construídas, ações de restituição. Nós já vivemos uma realidade de refugiados climáticos dentro do Brasil. Nós temos visto o agravamento dos impactos da crise climática e as injustiças por ela produzidas. Eu sempre faço uma analogia. Santa Teresa é um bairro no centro do Rio de Janeiro que tem vários castelos e algumas comunidades como o Morro dos Prazeres. Toda vez que há chuvas fortes, as comunidades têm desabamentos e mortes, mas eu nunca vi um castelo cair. Isso é sobre infraestrutura urbanística. Quais são os territórios que vão ser abarcados por essa dimensão?
Preocupa-me também — nós sinalizamos, no início — a dificuldade de diálogo com o Ministério das Cidades para a adoção... Nós vemos a priorização nos investimentos do PAC 2 para políticas de mobilidade, mas a discussão não passa por aqueles que são afetados pela violência. Há uma replicação, inclusive, do afastamento desses atores das soluções construídas. Nós vamos a vários congressos que debatem mobilidade. Há ali feiras de ônibus elétricos que estão sendo apresentados como a grande solução para a mobilidade nas cidades, mas não são. Há experiências nesse sentido.
Eu achei uma perda não ter aqui o pessoal da Prefeitura de Formosa de Goiás. É um Município de média capacidade, com 120 mil habitantes, com uma arrecadação pequena, muito menor do que a de Maricá, por exemplo, que tem os royalties do petróleo, mas que conseguiu desenvolver, com 600 mil reais por mês, o que representa 1% de sua arrecadação, um sistema de transporte que atende os territórios de favela, com micro-ônibus, entendendo a necessidade de os territórios de favela serem abarcados por políticas de transporte. Maricá tem um investimento massivo em transporte público e é o modelo mais avançado de tarifa zero no País. Eu fui, 2 semanas atrás, a um seminário sobre cidades e mulheres, e o que as mulheres que vivem nos territórios de favela em Maricá apresentaram foi que não se tem nenhum transporte que atenda os territórios de favela. Isso é sobre escolha política.
Nós sabemos que os ônibus estão longe de responder às demandas de enfrentamento à crise climática. Pelo contrário, aprofundam os problemas a ela relacionados.
Nós olhamos para o Chile e vemos o agravamento da crise e suas novas expressões, pela extração de lítio, que cria outras demandas.
Ônibus não é modal de grande capacidade, mas de pequena capacidade, porque transporta no máximo, como falei inicialmente, 75 pessoas. Quando comparamos com o trem ou o metrô, vemos que não é um modal de grande capacidade. Nós não investimos massivamente em transição energética, nós estamos aquém da necessidade de produção de energia. E estamos discutindo colocar um monte de ônibus na cidade. Isso nunca vai contribuir para uma cidade eficiente. Ônibus sempre vão estar no caminho dos grandes engarrafamentos, que são uma questão de saúde pública. Nós vemos a realidade de pessoas que adquirem varizes na perna ou problemas de coluna por causa do tempo de deslocamento. Se passamos 1 hora e meia por dia no trânsito, perdemos 1 mês por ano dentro do transporte. E é 1 mês que não vamos recuperar. Então, ônibus não é solução para crise climática, para cidades eficientes, para enfrentamento às desigualdades, para melhoria de qualidade de vida da população.
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Muito nos preocupa que, infelizmente, o Ministério do Meio Ambiente, apesar de ter focado muita energia no debate de conservação de floresta verde, que é uma urgência em termos de resposta à crise, não consiga transitar com uma agenda de fato intersetorial para outros Ministérios estratégicos, como o Ministério das Cidades, o Ministério dos Transportes, o Ministério do Planejamento, o Ministério da Infraestrutura, garantindo que as populações que ocupam os centros urbanos, que majoritariamente vivem em territórios de periferia e favela, tenham a possibilidade de acessar políticas de adaptação, de bem viver e de proteção.
E é muito importante, para finalizar, discutir a produção de uma agenda positiva de enfrentamento à crise climática que necessariamente case a estratégia de mitigação, que é a estratégia que recebe mais financiamento dos bancos e fundos internacionais, com a estratégia de adaptação e compensação das injustiças produzidas pelo clima. É possível fazer isso com a construção de metrô e trem. Nós sabemos que, aonde chega infraestrutura de transporte, se mobiliza possibilidade de emprego. Há um deslocamento pendular nos centros urbanos de milhares de pessoas que trabalham no setor de serviços. É possível montar polos comerciais no entorno das estações e absorver e melhorar a distribuição de oportunidades na cidade.
Nós precisamos avançar na agenda de escuta e de construção coletiva. Acho que o Sistema Único de Mobilidade é determinante nesse processo, mas, como já dissemos, deve ser princípio de aplicação do recurso público o entendimento de que onde há menos infraestrutura deve haver mais investimentos, para enfrentamento da realidade de racismo ambiental e para aplicação de uma agenda de justiça climática.
A SRA. PRESIDENTE (Natália Bonavides. Bloco/PT - RN) - Obrigada, Rafaela.
Nós da UCB construímos — recentemente terminamos a publicação — um documento chamado Estratégia Nacional de Promoção da Mobilidade por Bicicleta, um instrumento em que criamos uma agenda até 2030 para transformar a realidade da bicicleta no Brasil, para garantir segurança e conforto para quem pedala nas vias públicas de todo o País.
Essa estratégia foi construída nos últimos anos com ampla participação da sociedade civil — mais de 200 pessoas de mais de 100 entidades.
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Nós estamos hoje em diálogo com o Governo Federal, por intermédio do Ministério das Cidades, para subsidiar uma política federal de estímulo ao uso da bicicleta, com a regulamentação de uma lei federal de 2018 que criou o Programa Bicicleta Brasil.
Também temos atuado para a redução da velocidade nas vias urbanas, com um projeto de lei que está em tramitação na Casa. A ideia é estabelecer uma velocidade máxima de 60 quilômetros por hora nas vias rápidas e 50 quilômetros por hora nas vias arteriais. Além disso, pretendemos tirar do Município, do órgão de trânsito local o poder de alterar essas velocidades. Hoje o Código de Trânsito tem as velocidades máximas determinadas para cada tipo de via, mas um dispositivo permite que a autoridade de trânsito local reduza ou aumente essa velocidade. O que nós queremos é que o órgão de trânsito local não possa ultrapassar o que está estabelecido na lei federal. Esse PL em tramitação também permite a fiscalização e a aplicação de multas a partir da velocidade média aferida nas vias urbanas. Hoje só é possível a aplicação de multa de uma velocidade pontual, constatada no momento da medição. Existe tecnologia implantada no Brasil para isso, mas não é utilizada, o que permite ao motorista acelerar mais do que a velocidade máxima e reduzir apenas ao passar pelo pardal, pelo radar eletrônico.
Eu quero reforçar a importância de entender a mobilidade urbana como uma política estruturante da cidade. Não dá para falar de mobilidade urbana e de transporte sem falar de cidade, sem falar de espaço público, sem falar de convivência entre as pessoas. Não dá para pensar o SUM apenas dentro do Ministério das Cidades. Ele precisa também transitar pelo Ministério da Infraestrutura, pelo Ministério dos Transportes, pelo Ministério do Planejamento, porque a mobilidade urbana tem impacto em todas as esferas da sociedade.
Também trago a discussão dos recursos, de que se tem falado bastante. O impacto da violência no trânsito é de cerca de 50 bilhões de reais por ano, segundo o IPEA. É um impacto gigantesco. O problema não é a falta de recurso. O que é aplicado para a construção de viadutos e de novas vias destinadas exclusivamente aos automóveis poderia ser mais bem distribuído para que, de fato, fosse alcançada a mobilidade sustentável que almejamos por meio do SUM.
A SRA. PRESIDENTE (Natália Bonavides. Bloco/PT - RN) - Muito obrigada.
O SR. RENATO BOARETO - Eu só queria reforçar alguns aspectos, porque, na apresentação, acabamos falando muito rápido.
O primeiro é o financiamento social do transporte público. O exemplo que uso muito é o elevador no edifício. Independentemente de quantas vezes usem o elevador ao longo do dia ou ao longo do mês, todos os apartamentos contribuem para o seu custeio. O financiamento social do transporte público tem esse objetivo.
Toda a sociedade se beneficia da disponibilidade de uma rede de transporte público e toda a sociedade deve custeá-la, e não apenas os usuários, que, inclusive, geram o benefício de ocupar menos espaço e emitir menos poluente por cada viagem.
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Outra coisa que eu queria destacar é a evolução do conceito de mobilidade urbana, que começou a se consolidar no País no começo dos anos 2000. À época, havia a necessidade de superação de uma análise fragmentada entre transporte e trânsito. Dois campos de conhecimento disputavam quem deveria resolver o problema. Havia também uma disputa entre modos — o ferroviarismo e o rodoviarismo. O conceito de mobilidade urbana vem justamente para tratar de modos adequados à demanda. Assim, existem eixos estruturais, com metrô e trem, eixos de menor capacidade, com sistemas que podem ser alimentados por BRT, e aí entram veículos menores, como micro-ônibus, que atendem vilas e favelas, bairros periféricos e linhas de baixa demanda. O importante é sempre ter em mente o aspecto de modos adequados à demanda.
Como nós comentamos, dentro do Sistema Único de Mobilidade Urbana, tem alguns princípios que nós temos que tratar para planejar essa rede e a discussão de modos. Nós estamos falando de equiparação de oportunidades, de equidade e de alguns aspectos que têm se agravado no Brasil nos últimos anos e que têm que ser considerados na discussão do SUM, no planejamento de redes e na implementação de serviços, por exemplo a feminilização da pobreza. Quer dizer, a gravidade da pobreza no Brasil tem recortes de gênero. Esse é um aspecto fundamental. Normalmente, as mulheres são responsáveis pelo que chamamos de viagens de cuidado, aquelas viagens para cuidar de um ente da família. Além disso, há o aspecto racial. O racismo estrutural tem que ser considerado um elemento de formação do País, e nós temos que mitigar isso e resolver essa questão no Sistema Único de Mobilidade Urbana.
Há um último aspecto que nós temos chamado de morte por desespero. Os trabalhadores, que são precarizados — recebem 8 reais numa entrega de motofrete —, se matam no trânsito brasileiro para conseguir sua renda. E, se prestarmos atenção, veremos que esses trabalhadores são jovens e negros. Estão morrendo no trânsito em função do que temos chamado — eu tenho trazido esse conceito da economia para a mobilidade urbana — de morte por desespero. Quer dizer, o desespero de subsistência tem levado as pessoas a um comportamento de risco. É mais uma evidência dessa iniquidade em termos de política social.
Por fim, quero registrar a necessidade de reestruturar a indústria brasileira de transporte público. Temos que adensar a cadeia, como disse o Adalberto, com a fabricação de veículos de transporte público no Brasil — metrôs, trens e ônibus, inclusive elétricos —, para retomar exportações e gerar emprego no País. Nós temos condição, tecnologia, técnicos, trabalhadores preparados para adensar a cadeia.
Uma ação importante do Governo Federal seria sinalizar uma renovação de frota de ônibus no Brasil, de forma perene, para que a indústria se preparasse e contratasse pessoas, para que novas montadoras viessem para o País, para que retomássemos nossa posição de plataforma de exportação, como sempre foi.
A SRA. PRESIDENTE (Natália Bonavides. Bloco/PT - RN) - Muito obrigada, Renato.
Primeiro, eu quero destacar a importância que a mobilidade não motorizada, como a bicicleta, e a mobilidade humana têm para a sociedade e voltam a ter dentro do Governo.
Nesses dias, tivemos o privilégio de ver o Presidente Lula sancionar uma lei que incentiva o cicloativismo, as ciclovias, obrigando Municípios a incluí-las no planejamento de obras, ampliando a participação.
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Nós, no Ministério do Meio Ambiente, fizemos um edital de contratação de projetos de ciclorrotas turísticas há 2 meses, e foi um sucesso absoluto. O prazo foi muito pequeno, o orçamento foi pequeno, mas mais de 270 cidades, consórcios, Estados inscreveram projetos. Inicialmente, eu tinha só 2 milhões de reais no orçamento. Conseguimos dar uma rebolada e chegamos a 5 milhões agora. Então, dez rotas cicloturísticas vão ser ampliadas e desenvolvidas. No ano que vem, pretendemos fazer um edital maior, incluindo grandes obras, e uma terceira fase, depois, com reflorestamento de vegetação nativa e corredores de biodiversidade junto com as ciclorrotas turísticas.
É claro que nós normalmente, a vida inteira, discutimos as bicicletas nos ambientes urbanos. Certamente são os mais importantes. Esse planejamento da bicicleta como alimentador do transporte público, junto com metrô, ônibus e as próprias viagens diretas feitas lá dentro, mas também como preservador do meio ambiente é o que podemos fazer hoje lá. E podemos atuar muito na ligação dessas áreas verdes, das rotas cicloturísticas, com as unidades de conservação. Então ficamos muito feliz de ver isso andando.
E só para responder um pouquinho às indagações — na verdade, às provocações — da Rafaela, com as quais eu concordo bastante, quero dizer que é verdade que todos nós queremos transporte público de massa. Em geral, os teóricos consideram que o modal de alta capacidade são os sistemas metroferroviários. Os sistemas metroferroviários conseguem com facilidade transportar de 20 até 80 mil passageiros por hora/sentido. A Linha Vermelha, do metrô de São Paulo, é considerada uma das mais carregadas do mundo: chega a picos de 70, 80 mil passageiros por hora/sentido.
Mas, infelizmente, os metrôs são muito caros. No mundo inteiro vemos que não são muitos os países que estão expandindo rotas de metrô em grande escala. O Brasil tem muita dificuldade de fazer grandes investimentos em metrôs há muito tempo. Cidades acima de 2 ou 3 milhões de habitantes já têm uma densidade, uma demanda de subida e descida, para viabilizar sistemas metroferroviários. É importante que continuemos nisso, e o próprio PAC vem atuando, mas 90% dos passageiros de transporte público ainda estão no ônibus.
(Intervenção fora do microfone.)
O SR. ADALBERTO FELICIO MALUF FILHO - Sim, é claro. Esse é um grande desafio. A falta de investimento nos sistemas de alta densidade, de alta capacidade, no Brasil são desafios. Temos que continuar investindo em metrô, em trem. Isso é superimportante. Mas também vivemos um momento de restrição orçamentária. E, como os ônibus levam 90% das pessoas hoje no transporte público — no caso de São Paulo, 80% das pessoas que chegam ao metrô chegam de ônibus —, não temos como nos desvencilhar do ônibus como um dos principais atores de qualquer sistema de mobilidade.
É verdade que as cidades brasileiras hoje têm ônibus velhos, poluentes, barulhentos. Ninguém gosta do sistema que vemos nas nossas cidades, mas também precisamos, além de investir nos metrôs, voltar a fortalecer e investir na requalificação de frotas, na priorização do ônibus no sistema viário, na integração modal. Precisamos trazer a bicicleta como alimentador do sistema. Precisamos investir em todos os modais urbanos.
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Eu acho que, às vezes, temos só que tomar cuidado, porque, sim, queremos sistemas de alta densidade, como os metrôs, que são limpos, transportam por baixo, são muito mais tranquilos, mas também é possível qualificar os corredores de ônibus, os Bus Rapid Transit, os corredores de alta densidade, com segregação física. Eles podem chegar à capacidade de 30 mil, 40 mil, quem sabe até 50 mil passageiros por hora/sentido. É metade da capacidade do metrô, é verdade, mas 90% das cidades do mundo não precisam de uma capacidade tão grande. No caso da Zona Leste de São Paulo, existe a linha de metrô com 80 mil passageiros por hora/sentido, existe a linha da CPTM, trazendo 20 mil a 30 mil passageiros por hora/sentido. E mais 80 mil a 100 mil estão vindo de ônibus da Zona Leste para o Centro. E seria impossível construir mais uma linha de metrô ali.
Então, precisamos também requalificar o sistema de ônibus, fazer a integração modal, a racionalização de linhas. Precisamos melhorar a operação com mapinhas bonitinhos, com planos de comunicação. O nosso objetivo é tirar pessoas do transporte individual e fazê-las voltar para o ônibus. Quase sempre isso ocorre com os jovens, aquele que usava o ônibus e que, quando tem a oportunidade, compra uma moto, vai para um aplicativo ou vai para o transporte individual. Qualificar o ônibus é manter esse passageiro, principalmente nas viagens pendulares, que são aquelas do trabalho à casa, da educação à casa, porque elas são sempre do mesmo jeito. E transporte público que não tem subida e descida, já que o uso misto do solo no Brasil nunca foi muito bem trabalhado, dificilmente se viabiliza. Por isso, precisamos focar o transporte público, um sistema único de mobilidade, mas vamos precisar de todos os modais: ônibus, bicicleta, metrô.
E espero que, com o passar do tempo, consigamos sensibilizar a população de que a única maneira de termos um bom sistema de transporte público é tirar o viário do individual e jogá-lo para o público, porque não existe mágica. Podemos abrir...
Eu me lembro dos nossos debates — não é, Boareto? —, lá em São Paulo, sobre a expansão da Marginal. Lembra que a gente brincava? A Marginal já tinha quatro, cinco pistas e aumentou em mais três pistas. Nós brincávamos: "Vai demorar quanto tempo para se sobrecarregar? Dois anos? Um ano?" "Não, 5 anos." O Governo Estadual falava em 5 anos na época. Em 3 meses já estavam todos lotados. Combater a obesidade comprando roupa mais larga não resolve o problema da obesidade. Resolve o tamanho da roupa que se compra. Então, ou combatemos o problema vital das cidades, que é a prioridade absoluta e o subsídio histórico absoluto para o carro, que leva uma parcela pequena da população, uma elite da população, em geral, nas cidades e investimos maciçamente no transporte público que, predominantemente ainda é o ônibus, para requalificá-lo, melhorá-lo, trazer mais tecnologia, para termos ônibus com matrizes mais limpas, que emitam menos poluente, ou dificilmente conseguimos sair desse desafio.
A SRA. RAFAELA ALBERGARIA - Uma questão. Não se trata de ansiedade. Estamos, inclusive, expandindo para o Amazonas priorizando rota de ônibus elétrico, quando o deslocamento se faz, em grande parte, por rios. Então, na verdade, há uma expansão e uma aposta num modelo.
Vocês sabem, o Rio de Janeiro foi, antes da década de 50, o território no mundo com a maior infraestrutura de transporte. E era transporte sobre trilho, que foi vendido por causa da adoção de um modelo.
Então, não é só uma questão de ansiedade, não é uma questão de escolha de um modal, é uma questão de priorização, como política, de um modelo, que é um modelo excludente, um modelo sujo, que polui mais, um modelo pouco eficiente. Então, acho que se trata de todas essas questões de como avançamos num modelo que contemple, que olhe para outras formas de deslocamento, de outros modais.
Quem prioriza um modelo único de mobilidade é quem aposta no modelo rodoviário.
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O SR. ADALBERTO FELICIO MALUF FILHO - Com certeza, Rafaela. Estamos juntos. Concordo com você, mas, infelizmente, esse é o modelo que a gente vivemos hoje. Mudar e quebrar grandes paradigmas não é fácil. Acho que ainda vamos ter que passar por um aperfeiçoamento e melhoria do que temos. Mas, certamente é importante que vocês continuem com essa visão de futuro aspiracional de onde queremos chegar, para, quem sabe, conseguir influenciar a política pública.
A SRA. PRESIDENTE (Natália Bonavides. Bloco/PT - RN) - Nós vamos agora, até para devolver o plenário aos trabalhadores da Câmara, fazer o encerramento.
Queria agradecer profundamente a todo mundo que participou: as debatedoras, os debatedores, quem veio assistir, quem participou on-line.
Eu estava lembrando de um filme, esses filmes de Hollywood, cujo nome é O Preço do Amanhã. Vocês já assistiram? Mesmo em ficção científica, as pessoas conseguem imaginar tudo, menos o fim do capitalismo e da desigualdade. No filme, basicamente, o seu tempo de vida é a moeda de troca nessa sociedade. Então, o trabalhador trabalha e tem um relógio em que recebe minutos de vida. Se acabarem aqueles minutos, ele morre. Essa é a ficção científica do filme.
Nesse debate do transporte, eu acho que o que mais tem que nos deixar permanentemente indignadas, indignados, é que estamos falando de um direito. Não é o direito a andar de ônibus, não é o direito a andar de trem, é o direito a ter como viver a cidade e acessar os outros direitos.
Muitas das falas aqui remeteram, por óbvio, à realidade da minha cidade, Natal. Inclusive foi comentado aqui que, nesta semana, houve um dia de chuva atípica — um dia — e a cidade parou. As ocupações de pessoas sem teto ficaram completamente alagadas, até hospitais. Essa é a não preparação das nossas cidades não ao vem aí, mas ao que já está na nossa cara.
E a ideia de hoje era relacionar esse debate que está posto. A PEC está protocolada, está posto o debate sobre o sistema único de mobilidade, e pensamos em relacionar com esses temas. Por que o tema de participação popular, de transparência, de controle? Porque não temos como mudar a perspectiva de prioridade de um sistema de transporte sem repensar isto aqui, o que tanto foi dito. Hoje os subsídios são para financiar empresas ou financiar um direito?
Houve o debate sobre o passe livre. Também foi falado aqui por diversas vezes sobre como o não ter dinheiro para pegar um ônibus é uma questão limitadora de acessar tudo mais. Lembro de novo sempre, ouvindo aqui, que nós que disputamos esse espaço institucional do Parlamento, se não ficamos com o pé na nossa terra, esvaziamos o sentido de estar aqui.
E eu estava me lembrando de uma reunião que eu tive há alguns dias com as mulheres de um grupo de economia solidária, de artesãs. Ia haver uma grande feira em Natal, uma feira internacional de artesanato com centenas de estandes expositores. Elas foram convidadas para ir à feira e não iam porque não tinham como voltar quando a feira acabasse. Nem valia a pena para elas. Elas moram num bairro extremamente distante de onde ia ser a feira. O que elas vendessem lá ia ser usado para voltar de Uber, porque não ia haver transporte público. Não foram. Não foram trabalhar.
O sistema ficou disfuncional até para viabilizar a exploração dessas pessoas. Há jovens que estão deixando de aceitar emprego em bar, em restaurante, em hotel o quanto isso está disfuncional lá na nossa cidade.
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E há esse terceiro tema da relação com as mudanças climáticas. Acho que ainda existe, na nossa sociedade, a impressão sobre mudanças climáticas como algo que vai acontecer, como um problema a ser resolvido entre nações. E nós estamos aí, inclusive em plena COP acontecendo, com esse tema na centralidade, mas, na verdade, as mudanças já chegaram à porta, chegaram ao teto ou ao não teto do povo trabalhador, que é quem vai sofrer qualquer consequência primeira dessas mudanças climáticas, seja com inundação, seja com enchente, seja com desabamento, seja, voltando novamente para a minha terra, de desertificação no Sertão nordestino, que tem secas cada vez mais extensas, e as cidades com tempestades, como vimos essa semana em Natal.
Então, acho que tudo isso é sobre situarmos esse debate do Sistema Único de Mobilidade de forma humana, de forma a olhar para as pessoas, que seja menos, como quando vamos a algumas feiras, a alguns eventos, uma mostra comercial de exposição de quais serviços e inovações tecnológicas estão disponíveis, apesar de serem espaços importantes também a ser estimulados, mas é pouco, porque, no fim das contas, estamos falando — e com isso eu termino — de uma classe trabalhadora que está, remetendo ao filme de que eu falei no começo, gastando a vida. O tempo de vida está se esvaindo entre esperar pelo transporte, ficar dentro do transporte, cumprir o seu papel de força produtiva e, na volta para casa, fazer a mesma coisa, esperar pelo transporte e passar o tempo no transporte para chegar à casa e ter outras tarefas mil. As mulheres, principalmente as mulheres pretas, que o digam.
Portanto, quando eu falo de humanidade e de humanizar, o que pode ser mais significante para nós do que lutar para que cada pessoa possa entrar nos seus potenciais e desenvolvê-los? Mas como se faz isso só pegando ônibus e trabalhando? Como alguém vai poder aprender a tocar um instrumento, como vai participar de sua comunidade religiosa, como uma mulher pode ir a uma reunião de um partido político e voltar para casa sem medo de ser violentada? No final, é sobre o transporte estar inviabilizando que as pessoas desenvolvam as suas potencialidades, as suas capacidades, os seus sonhos, porque rouba todo o tempo. Não é só sobre o valor da remuneração que é tomada para acessar o transporte, é sobre o tempo de vida, que, no fim das contas, é a coisa mais valiosa que temos.
Então, eu queria agradecer muito a quem participou. Eu queria agradecer muito às trabalhadoras e aos trabalhadores aqui da Câmara que nos deram assessoria aqui no Plenário. Hoje é feriado em Brasília para quem está nos assistindo e não sabe. Então, obrigada por vocês terem prestado toda essa assessoria aqui para nós.
É isso. Eu ia dizer que não é o começo. Na verdade, esse é um debate de décadas. Espero que aprofundemos, nesse novo momento pelo que o País passa, essa perspectiva de direito, e é um direito que faz acessar os outros direitos, então, tem que ser visto como prioridade, sim.
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