1ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 57 ª LEGISLATURA
Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial
(Audiência Pública Extraordinária (semipresencial))
Em 22 de Novembro de 2023 (Quarta-Feira)
às 14 horas e 30 minutos
Horário (Texto com redação final.)
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A SRA. PRESIDENTE (Luizianne Lins. Bloco/PT - CE) - Boa tarde a todos e a todas.
Declaro aberta esta audiência pública da Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial, destinada a debater sobre a orfandade de crianças e adolescentes em decorrência da pandemia de COVID-19.
O evento decorre da aprovação do Requerimento nº 138, de 2023, de minha autoria, aprovado no âmbito desta Comissão.
Eu farei minha breve autodescrição para as pessoas cegas ou com baixa visão que estejam nos assistindo. Peço que os demais integrantes da Mesa façam o mesmo antes de iniciarem suas falas.
Sou mulher de pele clara, cabelos louros. Estou vestindo um paletó abóbora por cima de uma roupa preta. Estou sentada no meio do Plenário 9, do corredor das Comissões da Câmara Federal.
Este Plenário está equipado com tecnologias que conferem acessibilidade, tais como aro magnético, Bluetooth e sistema FM para usuários de aparelhos auditivos. Além disso, contamos com o serviço de intérprete de LIBRAS.
A audiência pública está sendo transmitida pela página www.camara.leg.br/cdhm.
Nesta reunião teremos participações presenciais e por teleconferência.
O registro de presença dos Parlamentares será feito de forma presencial, no posto de registro biométrico deste Plenário. Os Parlamentares que fizerem uso da palavra por teleconferência também terão sua presença registrada.
Esclareço que o tempo concedido aos expositores será de 5 minutos. Após a fala dos expositores, abriremos a palavra aos Deputados, por ordem de inscrição, por 3 minutos, ou a alguém no plenário que queira se manifestar.
Dando início às atividades de hoje, vou chamar para compor a Mesa os convidados e as convidadas.
Gostaria de chamar: o Sr. Milton Santos, representante da Coalizão Nacional Orfandade e Direitos (palmas); a Sra. Marina de Pol Poniwas, Vice-Presidente do CONANDA (palmas); o Sr. Diego Bezerra Alves, que é Coordenador-Geral de Fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos, representando a Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. (Palmas.)
Registro que se encontram no âmbito de teleconferência e participarão também desta Mesa, de forma virtual, os seguintes convidados: Padre Dario Bossi, representante da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil — CNBB; Paola Falceta, Presidente e fundadora da Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas de COVID-19 — AVICO; a Sra. Ângela de Alencar Araripe, Professora da Universidade Federal do Ceará, integrante do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança e da Articulação em Apoio à Orfandade de Crianças e Adolescentes pela COVID-19; a Sra. Stella Maris Nogueira Pacheco, que é representante da Comissão Especial de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB-CE.
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A Secretaria Nacional de Cuidados e Família e o Conselho Nacional de Assistência Social foram convidados, porém, não enviaram representantes até o momento.
Aproveitando a oportunidade, é importante saber que a nossa audiência está sendo transmitida para todo o Brasil através do site da Câmara dos Deputados.
Sobre o tema específico de que nós vamos tratar hoje, Orfandade de crianças e adolescentes em decorrência da pandemia de COVID-19, eu gostaria de fazer algumas colocações.
Primeiro, quero justificar o motivo da nossa solicitação de audiência pública. Além da Profa. Ângela, que é minha conterrânea, da Universidade Federal do Ceará, da qual também faço parte como professora — estou eventualmente licenciada, mas eu digo que a minha profissão é professora; estou Deputada —, um grupo de professores e professoras, pesquisadores, militantes, preocupados com essa situação e com a garantia de direitos das crianças e adolescentes, nos procurou para discutir especificamente a condição da orfandade em virtude da COVID–19. Então, hoje estamos com vários convidados para, juntos, retomarmos o debate sobre as condições das crianças e adolescentes órfãos em razão da pandemia.
É verdade que a orfandade, de uma maneira geral, já nos remete a um longo debate, uma vez que o próprio nome já sugere uma condição de abandono, privação de afeto e cuidado no aspecto mais familiar e privado, mas, sobretudo, desamparo do Estado em relação ao dever de proteção, cuidado e assistência. A pandemia, na verdade, trouxe luz e visibilidade para essa dura e cruel realidade. A orfandade decorrente da pandemia de COVID-19 foi uma das consequências mais devastadoras desse período turbulento da história mundial. Especificamente no Brasil, onde a condução das ações governamentais foi desastrosa, a cifra de óbitos ultrapassou a marca de 700 mil, deixando um número alarmante de crianças e adolescentes órfãos.
Em 2021, estudo publicado na renomada revista científica The Lancet trouxe à luz a dimensão trágica da orfandade decorrente da pandemia. Durante o período de mais de 1 ano, entre março de 2020 e abril de 2021, estima-se que 1,5 milhão de crianças e adolescentes tenham perdido pai ou mãe em todo o mundo. No Brasil, nesse mesmo período, o estudo apontou o número de 113 mil órfãos da COVID, da pandemia. É importante ressaltar que esses índices não contemplam outros cuidadores, como tios, madrinhas ou irmãos mais velhos, que desempenham também papéis de proteção e acolhimento em muitas famílias. Portanto, na realidade, a magnitude desse problema é ainda maior e demanda ações efetivas e sensíveis.
Tivemos a CPMI da COVID, mas é preciso continuar lutando, por todos que perdemos e também por todos que ficaram. É preciso lutarmos por reparação e responsabilização em prol das vítimas da COVID, por memória, verdade e justiça. É essencial promover esse debate e que a sociedade, como um todo, mobilize-se para discutir e pressionar pela criação e implementação de políticas públicas abrangentes que possam lidar com a orfandade resultante da pandemia de COVID-19. Investir na proteção e assistência a crianças e adolescentes órfãos é o imperativo ético e humanitário. Devemos delinear políticas públicas que ajudem a mitigar os impactos negativos da orfandade, proporcionando às crianças e aos adolescentes um ambiente social seguro e acolhedor, condições materiais vitalícias, alimentação adequada, oportunidades educacionais e acesso a serviços de saúde e de bem-estar.
Hoje damos um pequeno passo em direção ao combate do negacionismo sanitário e científico, das ações negligentes de um Governo que zombou da dor e do sofrimento da população. Todo mundo acompanhou que, nos últimos dias, tivemos a sanção, pelo Presidente Lula, do projeto de lei que garante o amparo do Estado brasileiro aos órfãos do feminicídio. Transpondo isso para a orfandade decorrente da COVID e de tantas outras violências, como a violência urbana, a violência policial, a violência do crime organizado, a violência do trânsito, certamente vamos nos unir para que, assim como os órfãos do feminicídio tiveram o apoio do Poder Legislativo e do Poder Executivo, as demais pessoas que ficam tenham todo o suporte necessário e possam seguir suas vidas, mesmo com profundas marcas na alma. Tais marcas não podemos apagar, mas que essas pessoas possam reconstruir suas vidas com dignidade e voltar a sonhar.
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Então, a partir do apanhado de discussões que nós vamos fazer aqui, a ideia é que, conversando com o grupo da Coalizão Nacional, possamos buscar espaço aqui no Poder Legislativo; rever propostas de legislação em tramitação, ou seja, aperfeiçoar projetos de lei que por ora estejam tramitando; colaborar na construção de uma rede nacional de reparação e responsabilização em prol das vítimas da COVID; criar uma frente parlamentar que trate dessa questão, provocando o Governo e construindo juntos a política pública universal de orfandade no Brasil.
Informo que sempre temos uma tolerância, mas o relógio começa a apitar sozinho, independentemente da minha vontade. Quando ele apita a primeira vez, são concedidos 30 segundos para o término da fala. Depois ele começa a apitar de 30 em 30 segundos, está certo? Para todo mundo saber, isso independe da minha vontade. Normalmente damos uma tolerância para as pessoas falarem o que acham que devem falar, mas o reloginho está ali. Ele tem vida própria.
Passamos a palavra, então, ao nosso primeiro convidado, que é o nosso companheiro Milton Santos, representante da Coalizão Nacional Orfandade e Direitos.
Muito obrigada pela presença. A palavra é sua.
O SR. MILTON SANTOS - Boa tarde. Eu que agradeço, Deputada Luizianne Lins. Na sua pessoa saúdo todos os membros desta Mesa, os que estão aqui presentes e também os que estão participando de forma remota, companheiros e companheiras que têm atuado no Governo, fora do Governo, nos conselhos de direitos em relação ao tema da orfandade, que iniciaram e estão construindo esta agenda.
O tempo é curto, mas eu acho que eu não falo por mim, sozinho, quando eu digo que, ao ouvir a Deputada, com esse sumário de uma agenda de compromissos que ela manifestou aqui a partir da Comissão, isso nos causa uma certa comoção, uma emoção que só quem batalha por causas populares ditas marginais deve sentir, que é de que as causas vão ganhando um estatuto de validade pública. Então, esta audiência, desse ponto de vista, tem um caráter histórico, e eu tenho a certeza de que ela é um passo fundamental e muito concreto para uma agenda de reparação consistente, de justiça consistente e de reconhecimento dessas situações de desproteção social que alcançam o cotidiano concreto de crianças e adolescentes em todos os Municípios brasileiros.
Então, desenvolvendo esse raciocínio e tentando dialogar aqui com o que estamos chamando de orfandade, quero mostrar por que, efetivamente, é importante enfrentar a orfandade em razão de COVID em termos de atenções e de proteções.
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É muito comum no Brasil certa lógica de que as pessoas precisam superar o sofrimento, de que as pessoas precisam ser fortes e de que as famílias devem dar conta dos seus próprios problemas cotidianos. Isso é, infelizmente, o senso comum brasileiro, que muitas vezes ainda é o orientador das políticas públicas, principalmente das políticas de proteção social destinadas a essas mesmas famílias.
Então, apoia-se a família para que a família não precise de apoio. Inclusive achando que se está sendo progressista ao defender que família boa é aquela que tem porta de saída.
E a orfandade vai nos colocar uma situação um tanto diferente: há circunstâncias na trajetória de crianças e adolescentes que exigem um tipo de suporte de longuíssimo prazo, que não se encerra no apoio às crianças ou só no apoio às famílias, mas que exige uma visão integral e universal de proteção.
No caso da orfandade especificamente — e podemos focar aqui o tema da audiência, que é a orfandade em decorrência da COVID-19 —, nós temos uma especificidade, originada de uma situação — e temos que explicar isso para o Brasil — que foi produzida de maneira criminosa. O vírus é um agente da natureza; mas a maneira como o vírus foi tratado é um agente da política.
Quanto à gestão da pandemia, há estudos que mostram a diferença entre população brasileira, população de outros países e a presença proporcional de mortes — portanto, a presença proporcional de órfãos. E viu-se que ela não é compatível com o tamanho da população brasileira, ou seja, proporcionalmente, nós perdemos mais brasileiros e brasileiras do que a média de países com números populacionais parecidos.
O que explica essa diferença? Não é o vírus; é a maneira como a gestão do vírus e da doença foi feita no Brasil. E nós sabemos, é só retomarmos os programas de TV do momento, os jornais e as manchetes, que a gestão da pandemia foi baseada em negligência, em negacionismo científico, em falta de generosidade e solidariedade social. Isso, então, levou a uma geração de órfãos que são órfãos de um crime de Estado, e nós temos que caracterizar essas mortes e essas orfandades como crime de Estado. Como é que esse crime foi cometido? Quais são as circunstâncias? Como é que esse crime poderia ter sido evitado? É algo para investigarmos.
A Deputada traz algo com o qual nós concordamos e o qual defendemos: nós temos que ter uma política de memória. Sem memória não é possível constatar a verdade. E, sem a verdade, não é possível perseguir a justiça. A memória significa não só a memória do sofrimento e dos desmandos, mas a memória da resistência, da solidariedade, dos afetos, das formas de cuidar que essas famílias estão preservando, na medida do possível, sem apoio do Estado, na maioria do Brasil — essas 90 mil, 150 mil, 113 mil.
Eu não gostaria de terminar, para ficar no tempo proposto, sem levantar alguns aspectos que, para a Coalizão Nacional Orfandade e Direitos, são fundamentais.
O primeiro deles é que nós precisamos saber quantos são e quem são esses órfãos. Essa providência é absolutamente necessária e possível de ser feita. Nós poderíamos começar respondendo: onde estão as 12 mil crianças e adolescentes até 12 anos de idade que foram identificados pela ARPEN — Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Brasil vítimas de orfandade durante a COVID-19? Nós temos nomes, CPFs e endereços dessas famílias, dessas crianças. Onde elas estão? Que proteção elas estão recebendo?
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Num segundo momento, nós sabemos, pelos dados do DATASUS, quais são os índices de mortalidade por unidade censitária, por hospital. Nós temos uma política de visitação no Sistema Único de Saúde que permite identificar, por região de abrangência de cada serviço de saúde da família, quais foram as famílias que tiveram letalidade de COVID–19, se deixaram ou não filhos menores e o que está acontecendo com essas crianças do ponto de vista da saúde.
Por fim — eu entendi que agora há uma explosão —, nós precisamos efetivamente levantar as políticas de cuidado que estão sendo produzidas Brasil afora, obviamente em âmbito federal, num primeiro momento, mas também municipal e estadual.
Termino novamente agradecendo o convite e a iniciativa da Deputada e desta Comissão e pedindo que nós sigamos neste debate.
Obrigado. (Palmas.)
A SRA. PRESIDENTE (Luizianne Lins. Bloco/PT - CE) - Muito obrigada, Sr. Milton Santos, que representa a Coalizão Nacional Orfandade e Direitos, pela presença e pela provocação do debate.
Quero registrar a presença do Deputado Prof. Paulo Fernando, do Distrito Federal, membro desta Comissão.
Obrigada pela presença, Deputado.
Vamos passar a palavra ao Padre Dario Bossi, que vai participar de forma virtual, representante da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil — CNBB.
Ele vai precisar falar agora. Então, nós vamos passar imediatamente à fala dele, que vai se dar de forma remota.
Padre Dario Bossi, muito obrigada pela participação. A palavra é sua.
O SR. DARIO BOSSI - Obrigado, Deputada.
Boa tarde a todas e a todos.
Para quem não enxerga, vou me apresentar: eu sou um homem branco, tenho barba, pouco cabelo e estou vestindo uma camisa azul, num fundo branco. Atrás de mim, há um crucifixo, que representa a minha escolha de vida e o meu compromisso.
Agradeço este espaço e faço uma saudação a todas as pessoas que estão aqui. Registro a minha admiração pelo trabalho e, também, pela convocação desta audiência.
Algumas etnias indígenas consideram que o critério para decidir o que é bom e o que é mau são os efeitos que uma determinada ação ou decisão provocam até a sétima geração dos descendentes, o que é chamado de justiça intergeracional. Pois bem, nós estamos numa sociedade que está gerando órfãos: órfãos pela guerra, órfãos pela pandemia, órfãos pelo ataque ao planeta vivo que temos entre as mãos. Esse é um corte definitivo com a nossa história. É, de fato, uma negação profunda da justiça intergeracional.
Na Bíblia, o cuidado prioritário é pedido para os órfãos, as viúvas e os estrangeiros, porque são o símbolo das pessoas desprotegidas. O Profeta Zacarias disse: "E não oprimais a viúva, o órfão, o estrangeiro e o pobre; ninguém planeje no coração atitudes malignas contra o seu irmão".
Com isso, denuncia-se outra pandemia, talvez ainda mais grave, que é aquela que podemos chamar de esclerocardia, quer dizer, de coração endurecido. O coronavírus, creio, revelou os corações, porque revelou corações extremamente compassivos, corajosos, mártires, mas outros corações muito endurecidos. E a própria profecia não é só denúncia de atitudes pessoais, mas de um sistema que gera morte, de poderes que condenam as pessoas à exclusão. Poderíamos dizer que temos tido instituições endurecidas também. São 113 mil órfãos, mais de 700 mil mortes. É um número absurdamente alto de mortes, por uma combinação de incompetência, de desinteresse e de estratégico negacionismo científico.
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Agora, o negacionismo necessita também negar as evidências e, com isso, esconder as vítimas e esquecê-las. Recentemente, celebramos a Jornada Mundial dos Pobres, e o lema que o Papa Francisco nos deu foi: "Não desvie o olhar de mim". Para justificar a indiferença se faz necessário o cancelamento das vítimas. É tal que um estudo publicado recentemente na Revista Interdisciplinar do Pensamento Científico, que de fato trata do luto das crianças na pandemia de coronavírus, mostra, a partir de uma experiência específica no Espírito Santo, que existe uma falta de registro e de desconhecimento das políticas públicas sobre a quantidade de crianças e adolescentes que perderam os seus cuidadores na pandemia. Então, a perda de cuidado que as crianças sofrem é também negada e indocumentada.
Lembremos que essa perda de cuidado representa também uma perda de educação, o isolamento, a violência doméstica, os abusos que elas vêm sofrendo. Passa-se do negacionismo à negação da existência das pessoas e, com isso, ao apagamento da solidariedade, porque a solidariedade talvez seja uma das características que mais temos viva em nosso povo brasileiro. Só que é muito estranho o mecanismo da solidariedade, porque ele precisa de visibilidade, sobretudo nessa sociedade muito mediada pela comunicação.
Quando a situação é grave e algumas situações alcançam uma grande visibilidade, elas despertam uma grande solidariedade. Porém, ao inverso, quando as situações são escondidas, a solidariedade acaba ficando apagada. Por isso que a memória e a documentação, como disse também o Sr. Milton, antes de mim, é o primeiro antídoto à indiferença e à esclerocardia. É o primeiro passo de uma estratégia de resposta. A pandemia deixou um legado muito forte de solidariedade, de dignidade, mas também de isolamento, de fraturas sociais.
Eu vejo, para concluir, duas grandes perspectivas: uma é aquela das políticas públicas, e a outra é aquela do tecido social da solidariedade.
Sobre as políticas públicas, eu creio que as pessoas que estão aqui são muito mais experientes e conhecem muito mais que eu. Queria só comentar que também a Igreja acredita muito na incidência política por políticas públicas justas e também estamos, através da 6ª Semana Social Brasileira, construindo um projeto popular para o Brasil que queremos sobre o bem viver dos povos.
Sobre a solidariedade, destaco que, na encíclica Fratelli Tutti, que o Papa Francisco escreveu, a solidariedade é considerada o principal instrumento de transformação social, porque, gosto muito dessa definição, solidariedade é pensar e agir em termos de comunidade. É não pensar em nós mesmos como indivíduos. É uma determinação firme e perseverante de se comprometer para o bem comum. É a melhor estratégia para reparar as estruturas de pecado social. A Pastoral da Criança tem uma experiência desse tipo, que é a proposta da rede de família, com o programa Família Acolhedora, que também comporta uma parceria com o poder público.
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Então, eu creio que incentivar, coordenar e apoiar processos de solidariedade é uma política pública, e é uma política que o Estado pode gerar e alimentar desenvolvendo, de fato, uma forte cooperação com a sociedade civil.
Muito obrigado por este espaço. (Palmas.)
A SRA. PRESIDENTE (Luizianne Lins. Bloco/PT - CE) - Obrigada, Padre Dario Bossi, representando a CNBB, pela participação e pelas palavras.
Eu passo, então, a palavra para a nossa querida Marina de Pol Poniwas, Vice-Presidente do CONANDA.
A SRA. MARINA DE POL PONIWAS - Primeiro, gostaria de saudar a Mesa.
Obrigada, Deputada Luizianne Lins, pelo espaço, pelo convite, pela oportunidade de estarmos aqui debatendo esse assunto tão importante para nós.
Antes de iniciar minha fala, gostaria de fazer minha audiodescrição, para que todos possam me ver. Eu sou uma mulher branca, de cabelos castanhos com luzes loiras, estou vestindo um blazer preto e uma blusa amarela. Eu estou aqui hoje representando o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, pelo Conselho Federal de Psicologia.
Quero destacar que, para nós do CONANDA, este tema é fundamental e é justamente o tema da nossa Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, que vai acontecer agora, vai finalizar, na verdade, em abril de 2024. Já tivemos a etapa municipal, estamos concluindo as etapas estaduais e finalizaremos a etapa nacional agora, em abril de 2024.
O que nos preocupa e o que vem mobilizando o CONANDA em torno dessa agenda é o fato de que nós sabíamos, desde o início, no período pandêmico, que crianças e adolescentes não seriam vítimas diretas da letalidade da COVID-19, mas seriam vítimas das consequências da pandemia, porque, ao longo do período, fomos observando que a pandemia não se tratava apenas de uma questão biológica, mas também de uma questão social. Essa interação entre o biológico e o social traz um conceito que é novo para nós, e é importante nos apropriarmos dele, que é o conceito da sindemia.
Então nos debruçamos sobre esses impactos; impactos numa geração de crianças e adolescentes que vão sofrer consequências da pandemia e que sofreram no período da pandemia porque tiveram sua convivência familiar e comunitária limitada — não podiam visitar o pai ou a mãe ou os avós, outros membros da família, amigos e amigas, pessoas importantes. Mas também tivemos outras consequências no processo de ensino/aprendizagem dessas crianças e adolescentes. Enfim, há uma série de aspectos que faz com que nós do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente olhemos para isso e também olhemos para as questões de orfandade.
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Quando isso chega ao CONANDA, nossa preocupação é: "Nossa, mas este termo 'órfãos'? Já não superamos este termo 'órfãos'?" Não chamamos mais orfanato. E por que não chamamos? Não chamamos porque é um termo pejorativo. A criança e o adolescente vão carregar aquilo a vida inteira e podem ser caracterizados por isso. E nós precisamos evitar mais esse formato de violência contra crianças e adolescentes.
É por isso que vimos desenvolvendo o conceito de que se trata de crianças e adolescentes em situação de orfandade. E eles estão nessa situação por um crime de Estado, um crime do Estado brasileiro, que precisa agora, por conta disso, tomar uma série de providências no sentido da reparação dos danos provocados pela negligência, pela omissão, enfim, por tudo que foi feito naquele período.
A partir disso, então, o CONANDA começa a pensar e constitui um grupo de trabalho para que possa construir parâmetros e referências, para que não aconteça o que já vem acontecendo hoje: Estados e Municípios vêm funcionando de maneira desigual. Em alguns Estados e Municípios já existem legislações próprias, já existe algum tipo de pensionamento, já existe algum tipo de atenção psicossocial a essas crianças e adolescentes; em outros, não. Isso também vai provocando mais desigualdade social no Brasil. Precisamos que todas as crianças e todos os adolescentes que estão nessa situação sejam tratados de forma igual.
Para o CONANDA, a situação de orfandade é uma situação de desproteção social. Ela é uma questão jurídica, em que é necessário decidir as situações de guarda e tutela daquela criança; mas é também uma questão de ordem social. E, ao entender isso, nós precisamos tratar a orfandade não como um problema individual, como um problema daquela família, mas como um problema do Estado brasileiro.
O CONANDA vem, então, junto ao GT, desenvolvendo debates e reflexões com o objetivo de construir esses parâmetros e essas recomendações para que o sistema de garantia de direitos possa produzir atenções psicossociais para essas crianças e para esses adolescentes pelo SUS, pelo SUAS, dentro das escolas. Para isso, precisamos saber quem são essas crianças e esses adolescentes.
Como o Milton disse, precisamos entender onde eles estão; precisamos, especialmente, desenvolver processos de escuta, porque nos preocupamos com a saúde mental dessas crianças e adolescentes, que não tiveram a oportunidade de se despedir dos seus entes, dos seus cuidadores principais, dos seus genitores. Como Estado brasileiro, como reparação, precisamos pensar num pensionamento, mas também numa rede de atenção psicossocial para todas essas crianças e adolescentes.
Vou além, ao pensar que nós do CONANDA temos um grande desafio, que é desenvolver projetos, atenções, rede de cuidados; e temos que pensar também em outros formatos, como a guarda subsidiada, em alternativas de cuidado importantes. Muitas famílias receberam crianças e adolescentes em suas casas sem estarem preparadas para isso. Tiveram que, momentaneamente, receber essas crianças e adolescentes e precisam agora de uma atenção do Estado brasileiro para que possam cuidar — e cuidar bem — dessas crianças e desses adolescentes. Obrigada.
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A SRA. PRESIDENTE (Luizianne Lins. Bloco/PT - CE) - Quero destacar aqui na fala da Marina uma coisa interessante: essa questão da saúde mental.
Vou dividir um pouco com vocês que, quando Prefeita de Fortaleza, ao assumir o Governo, havia 3 Centros de Atenção Psicossocial. Nós ampliamos isso, abrimos mais 11 e os integramos a uma rede potente de saúde mental. Infelizmente, essa política foi muito desconstruída, mas organizamos e equipamos os CAPSs com o que havia de melhor. Havia a rede todinha para completar: o CAPSi, que é o CAPS Infantil; o CAPS AD, que é de álcool e drogas; e o CAPS geral. Fizemos, mais ou menos, uma espécie de cinturão sanitário em relação à questão, especificamente, citando como exemplo, a saúde mental, esse tipo de tratamento.
Eu me impressionava muito, porque as pessoas tinham muitos sustos. Se da saúde física, muitas vezes, o sistema não dá conta, porque há uma demanda muito grande — felizmente temos o sistema de saúde SUS, um dos mais potentes do mundo —, imaginem da saúde psicológica, da saúde psíquica! Ela acaba sendo mais negligenciada ainda, porque não é visível, muitas vezes.
Uma coisa que vimos na pandemia foi realmente um adoecimento social muito grave, por várias coisas, principalmente pelas perdas, mas também pelo fato do isolamento. Nós que somos brasileiros somos muito da convivência e da socialização e tivemos que ficar reclusos. Isso impactou duramente muita gente.
Estou falando disso, porque, como nós estamos tratando aqui diretamente dessas situações de orfandade provocadas pela pandemia, numa escala gigantesca, tratamos também de uma assistência que passa pela questão da recuperação da saúde mental, para que as pessoas — as dores não vão passar — possam conviver da melhor forma possível com essas dores no futuro.
Então, fica aqui o apelo e fica aqui a própria experiência testemunhal de que é importante investir em saúde mental. Só para vocês terem uma ideia, pelo fato de termos criado essa rede e construído 11 CAPSs a mais, integrados aos existentes, com tudo o que tinham direito, com artistas, com psicoterapeutas, com psiquiatras, com assistentes sociais, com psicólogos, nós conseguimos reduzir as internações, por exemplo, por álcool e drogas, em 33% no sistema de saúde, nos hospitais principalmente.
Então, vale a pena. Às vezes não é visível, não é uma política pública que as pessoas que têm condição de pagar um psicólogo ou um psiquiatra veem, mas é fundamental para garantir uma sociedade que possa cada vez mais ser saudável, porque, infelizmente, vivemos numa sociedade que está muito doente, socialmente falando.
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Acho que é um bom começo entendermos que existe um lado nosso que é eminentemente psíquico — nós com nós, o que tem de nós para dentro, e não o que tem de nós para fora.
Só queria fazer este relato, porque a Marina colocou com muita propriedade a questão de como vamos conseguir ajudar, também na saúde mental, essas vítimas de orfandade que estão passando por este momento.
Passo a palavra ao Sr. Diego Bezerra Alves, Coordenador-Geral de Fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos, representando a Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Muito obrigada pela presença, Diego. Seja bem-vindo! A palavra é sua.
O SR. DIEGO BEZERRA ALVES - Obrigado, Deputada Luizianne Lins, pelo convite, em especial por ter organizado esta audiência, com convidados tão qualificados, para não corrermos o risco de cair no esquecimento, pois várias dessas crianças estão hoje sofrendo com uma situação que, como foi muito bem colocado, não deveria estar acontecendo. Não podemos nos esquecer disso, como estamos hoje fazendo nesta audiência, pensando em políticas públicas que respondam a uma conduta criminosa da pandemia neste País.
A pandemia de COVID-19 foi muito difícil para todas as pessoas, independentemente de ser no Brasil ou fora do Brasil. Foi uma coisa que pegou muita gente de surpresa. Tivemos de pesquisar e descobrir as respostas de como ela se transmitia de repente. Isso foi muito difícil para o mundo inteiro e causou impactos no mundo inteiro. Mas, se foi difícil para muitos, foi especialmente danosa e problemática para as crianças e adolescentes — isso foi bem colocado aqui —, pelas questões de sociabilização, e acho que, em especial, porque as crianças passaram muito tempo sem ir à escola.
A escola tem um papel essencial na vida das crianças. Inclusive, há crianças que se alimentam na escola, que aprendem a educação no âmbito da escola e que, muitas vezes, podem relatar também ali as violências que sofrem. As crianças do Brasil passaram mais de 2 anos sem ir à escola — o que, aliás, em uma boa parte desse tempo, era necessário mesmo, para que não tivéssemos mais mortes de crianças do que tivemos. Isso porque, inclusive, o Brasil bateu todos os recordes de mortes durante a pandemia: mais de 700 mil mortos, inclusive mais de 3 mil crianças e adolescentes mortos — crianças que, como Marina falou, eram menos suscetíveis ao vírus, mas, ainda assim, foram afetadas e tiveram suas vidas ceifadas por ações e omissões diretas de agentes do Estado brasileiro.
Acho que é muito importante nunca nos esquecermos disso, até porque a responsabilização criminal dessas pessoas ainda está pendente. Não dá para esquecermos, e a sociedade brasileira não vai fazer as pazes com seu passado, com este passado de conduta criminosa da pandemia, enquanto essas pessoas não forem responsabilizadas. Muitas pessoas que estavam à frente do Estado brasileiro naquela época têm de ser responsabilizadas, em especial o Presidente da República. (Palmas.)
É inaceitável que, até hoje, as ações criminais não tenham sido julgadas, ações contra um Presidente que matou milhares e milhares de pessoas, com ações e omissões reais, concretas, verificáveis, durante o seu mandato.
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Acho que uma das coisas de que precisamos para lidar com isso e para evitar que isso aconteça no futuro é responsabilizar as pessoas que levaram diretamente a esse quadro em que há crianças neste País que não têm pai, que não têm mãe, porque o Presidente agiu de determinada forma. É disso que precisamos nos lembrar, e é isso que o nosso Judiciário precisa processar e julgar, para responsabilizar o ex-Presidente da República e os demais agentes do Estado que levaram a essa situação de hoje haver crianças sem mãe, crianças sem pai, e também pais sem filhos, por algo que não precisava ter acontecido. Isso é muito claro e tem de ficar transparente para todos.
Nós nunca vamos poder nos esquecer de que muitas pessoas morreram sem necessidade, porque o Estado foi criminoso ao desacreditar as vacinas, ao demorar a comprar as vacinas, ao espalhar desinformação e ao negar a ciência que estava sendo produzida. Essas pessoas têm de ser responsabilizadas. Acho que esse é um pilar essencial que o Brasil precisa construir para superar essa situação e evitar que ela volte a acontecer.
Com base nesse pilar, precisamos criar políticas públicas e reconstruir outras. Essas crianças precisam de nós. Acho que está muito claro — a Marina e o Milton colocaram isso muito bem — que a orfandade é uma situação especial. Todas as crianças estão em uma situação peculiar de desenvolvimento em que necessitam de cuidados familiares, e essas, em especial, precisam mais ainda disso.
Pensando nisso, não é, Marina, propusemos no CONANDA que o grande tema da conferência que acontecerá em abril seja como superar e reparar essa situação deixada pela pandemia em relação aos direitos de crianças e adolescentes. Conselhos municipais e conselhos estaduais do Brasil inteiro vêm debatendo isso desde 2021, nesse processo da conferência, justamente porque ainda temos de construir soluções para essa situação.
Queria contribuir com a reflexão de que essas soluções precisam ser primeiramente localizadas no âmbito do sistema de garantia de direitos. Essas soluções não virão só de um órgão, só da assistência, só da saúde. Elas precisam ser pensadas e implementadas de forma complexa, no âmbito do nosso sistema. Isso significa que elas vão ser implementadas por diversos atores. E essas soluções e políticas públicas, ao contrário da causa desses problemas, precisam ter base em dados e em ciência.
Algo muito importante que o Milton trouxe foi a necessidade que temos de conhecer e registrar quais são as crianças que são órfãs e por que elas são órfãs. Toda vez que morre uma pessoa, precisamos colocar no registro de óbito se há alguma criança que dependia dela. Se não há, tudo bem, está lá anotado; se há, é preciso saber quem é a pessoa que será responsável por essa criança. Isso precisa avançar na nossa legislação de registros públicos. Acho que essa é uma das primeiras medidas que precisamos implementar, porque não há políticas públicas qualificadas sem dados reais e qualificados que as embasem. E esse é um requisito de implementação até relativamente simples. Isso pode ser direcionado aos cartórios. Essa medida vai impactar muito positivamente a vida de várias crianças.
Por fim, acho que, na concepção dessas políticas, é preciso consignar que não dá para realizá-las sem orçamento adequado. É muito feliz o momento em que fazemos esta audiência, porque é o momento em que a Câmara e o Congresso como um todo se preparam para votar o orçamento de 2024 e constroem as diretrizes orçamentárias e o orçamento em si para o País. E todas as políticas para a criança e o adolescente precisam ser fortalecidas. Elas precisam ser financiadas, precisam ter uma destinação e uma atenção maior, como prioridade absoluta, conforme inscrito na Constituição. Assim deve ser a abordagem do Estado em relação às crianças e no cuidado com o devido orçamento. Essa é uma área hoje muito deficitária nas políticas públicas. Os Estados precisam de atenção, os Municípios precisam de mais financiamento para as políticas para crianças em todos os seus órgãos, além, é claro, da questão da saúde.
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A Marina e a Deputada Luizianne já tocaram muito no assunto saúde. A saúde mental, em especial, adquiriu um caráter emergencial hoje em dia no Brasil. As situações de adoecimento mental levam a diversas outras. Isso já foi bastante abordado, mas queria, em nome da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, reforçar o nosso apoio a essas políticas e lembrar também a necessidade de acompanhamento dessas crianças e das famílias que as recebem, por meio dos serviços de assistência social, que devem estar ali monitorando essa situação, apoiando a criança e a família que estão numa nova situação, muitas vezes inesperada. Elas não foram preparadas para isso e precisam, sem dúvida nenhuma, de atenção especial, não só financeira, mas também de cuidados e de outros apoios que o Sistema Único de Assistência Social pode fornecer e pode ensejar.
Eram essas as contribuições que tinha sobre o tema. Eu acho que precisamos realmente levá-lo à frente e não deixar, mais uma vez, que as questões do Brasil o empurrem para debaixo do tapete. Achamos que a pandemia já passou, então vamos tocar a vida para frente e nos esquecermos do que aconteceu. Se fizermos isso, mais uma vez, essa situação acontecerá de novo no futuro, voltará para atormentar todos nós, em especial as crianças e os adolescentes.
É preciso que seja feita justiça. É preciso que se registrem na memória coletiva os crimes que foram cometidos no âmbito do Estado, que as pessoas sejam responsabilizadas, que os direitos sejam reparados e que as políticas públicas necessárias sejam construídas para cuidarmos dessas crianças. Essa é a nossa grande tarefa na Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, em abril do ano que vem. Para isso, contamos muito com o apoio do Congresso e da sociedade brasileira em geral.
Obrigado. (Palmas.)
A SRA. PRESIDENTE (Luizianne Lins. Bloco/PT - CE) - Muito obrigada, Diego Bezerra Alves, Coordenador-Geral de Fortalecimento do Sistema de Garantias de Direitos, representando a Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Passo a palavra para a Sra. Paola Falceta, Presidente e fundadora da Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da COVID-19 — AVICO Brasil.
A SRA. PAOLA FALCETA - Muito obrigada, Deputada Luizianne, pela oportunidade. Saúdo todos os presentes na sua pessoa.
Gostaria de iniciar a minha fala mencionando que eu sou uma órfã adulta. Perdi a minha mãe na pandemia. O que me imbuiu no desejo de fundar uma associação de proteção e defesa das vítimas e familiares de vítimas da COVID-19, em abril de 2021, além da minha perda, foi sobretudo, sentindo a dor dessa perda, imaginar como seria a vida de crianças e adolescentes no futuro.
16:07
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Eu sou assistente social, além de defensora de direitos humanos. Trabalhei com população de rua, inclusive com jovens adultos egressos do acolhimento institucional, abandonados pela política pública do Estado após os 18 anos e que tinham sérios transtornos, adoecimentos na questão de saúde mental, e acabavam parando na rua.
Tendo essa vivência, torna-se impossível não pensar nem priorizar os órfãos brasileiros. Não há como não fazer isso. Mais ainda porque eles são produto de uma política de morte provocada pelo Governo Federal na gestão da pandemia de COVID-19.
É importante frisar que, em quase 4 anos de pandemia — passaram-se 3 anos e 9 meses —, essa é a primeira vez que a nossa rede de entidades, coletivos e associações está reunida em audiência pública nesta Casa, falando sobre a orfandade. Há alguma coisa errada, não é? Só pode haver alguma coisa errada.
O tema da orfandade, seja a que decorre da violência do Estado nas periferias, seja a que decorre da violência doméstica, seja a que decorre da COVID-19, é invisível. Por quê? Porque crianças e adolescentes não se defendem. Elas não falam por si. Então, mais do que a obrigação constitucional que diz que os responsáveis pelas crianças e adolescentes brasileiros são a família, o Estado e a sociedade, nós temos uma obrigação moral de defender e amparar essas crianças, uma obrigação que é sobretudo do Estado brasileiro, agente que provocou a orfandade pela COVID-19.
Fala-se muito em números, dos cerca de 113 mil crianças e adolescentes que perderam pai, mãe ou os dois. Mas preciso levantar alguns dados aqui das crianças e dos adolescentes do território periférico, onde já não havia cuidado de pai e de mãe juntos, onde o cuidado era monoparental, principalmente pelas mães.
Em vários casos, não havia cuidado nem de mãe nem de pai, mas das avós, das tias, dos tios, dos irmãos. Essas crianças são completamente invisibilizadas. Ninguém sabe onde estão. Aliás, sabemos onde elas estão, mas não há registo oficial do Governo Federal apontando onde elas estão.
16:11
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Então, é fundamental a criação de um programa federal que faça os órgãos do Executivo, o Legislativo e o Judiciário trabalharem na defesa dos direitos humanos dessas crianças.
Eu agradeço pela oportunidade de fala. O meu tempo terminou. (Palmas.)
A SRA. PRESIDENTE (Luizianne Lins. Bloco/PT - CE) - Muito obrigada, Paola Falceta, Presidente e fundadora da Associação Nacional de Vítimas e Familiares de Vítimas da COVID-19 — AVICO Brasil.
Passo a palavra imediatamente à Profa. Ângela, conterrânea de longas lutas e de tantas e tantas vivências importantes na Universidade Federal do Ceará, instituição à qual eu sou ligada como professora do curso de comunicação social.
A Profa. Ângela, juntamente com professores e professoras, pesquisadores, militantes que estavam preocupados com isso, provocou esta discussão, proposta que nós rapidamente acolhemos com o requerimento que foi aprovado por esta Comissão.
A palavra está com a você, Ângela. Fique à vontade.
A SRA. ÂNGELA DE ALENCAR ARARIPE - Obrigada, Deputada Luizianne Lins. É um grande prazer reencontrá-la nesta condição.
Eu cumprimento a Mesa de trabalho. Vários de nós já nos conhecemos. Cumprimento quem está no plenário e quem está nos acompanhando pela TV Câmara e pelo Youtube.
Eu tenho um agradecimento muito grande pela acolhida que tive tanto no gabinete político da Deputada aqui no Ceará quanto no seu gabinete institucional e na assessoria da Câmara e pelo fato de a senhora de pronto ter acatado trazer à discussão este tema sensível. Agradeço a todos os que fazem a sua assessoria. Foi uma experiência muito legal.
Eu estou aqui como muitas pessoas e instituições: o NUCEPEC, a AOCA — Articulação em Apoio à Orfandade de Crianças e Adolescentes por COVID-19, a Ângela e todos os parceiros que estão conosco nesta luta que começou em julho de 2021, quando criamos a AOCA, diante dessa pauta que chamamos de "pauta do duplo desamparo", o desamparo que traz a orfandade de pai e de mãe, de um dos dois ou do principal cuidador e o desamparo por parte do Estado brasileiro.
Estamos aqui com o objetivo de juntar esforços para que essas crianças passem a ter o trato público que lhes é de direito, numa perspectiva prioritária.
Quero muito que o Governo Lula diga a que veio em relação a esta pauta. Estamos com 11 meses de governo. Então, é mais do que hora de sentirmos o comprometimento dele com esta pauta.
Costumamos dizer que esta pauta é para antes de anteontem. Esta é uma pauta política, porque depende de decisões de gestão, e técnica, porque é multidimensional e intersetorial.
Vimos neste momento que há várias orfandades. Nós hoje estamos concentrados numa delas, mas sabemos que são várias, como a Deputada Luizianne Lins colocou.
16:15
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Os impactos que nós já conseguimos observar na vida cotidiana de crianças nos chocam muito. Há uma elevação estúpida no acolhimento institucional, no trabalho infantil, na violência sexual e na violência doméstica, na presença dessas crianças nas ruas — não é, Paola? — e na insegurança alimentar, o que leva à fome.
Crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, sujeitos da história e sujeitos de histórias. É preciso nos lembrarmos sempre desse paradigma. Eles são sujeitos de sonhos, de projetos de vida, de desejos, com passado, presente e futuro. Pensar neles só como sujeitos do futuro é negar o presente deles.
Para nós, a orfandade é uma pauta política, técnica, humanitária, urgente, grave, delicada e complexa. Nesta pauta, vamos ver três dimensões. Primeiro, a ruptura de um vínculo de filiação, como nós dizemos. Isso traz, com certeza, sentimentos de desamparo, de luto, de tristeza. Há relatos dramáticos de situações de tentativas de suicídio, ansiedade, pânico, depressão, abandono escolar, como a Marina disse. E, ao não terem a representativa legal, isso dificulta o acesso a vários serviços. Quem já viu uma criança ir sozinha se vacinar? Quem já viu uma criança ir sozinha se matricular na escola? Portanto, eles ficam mais vulneráveis à violação de direitos.
Há também os impactos materiais, dos quais eu já falei. Muitas vezes, o cuidador principal ou quem quer que seja também é o provedor principal.
Acompanham-nos quatro perguntas desde julho de 2021: quem são? Quantos são? Como estão vivendo? Onde estão vivendo? Até hoje, pessoal, os dados disponíveis ou são desatualizados — pensar com dados até abril de 2021 deixa lacunas, e são uma estimativa —, ou são incompletos, ou são conflitantes entre eles. Falta-nos, então, essa escuta, Marina, como você disse. Falta a escuta das crianças, a escuta das famílias e a escuta dos profissionais, organização sociais e ONGs que estão na ponta em contato com o problema.
Diante disso, nós criamos essa articulação, que nós chamamos de rede de coletivos. Vocês não imaginam a diversidade desses coletivos. Nós temos tentado diálogo com as autoridades públicas dos três Poderes e nos três níveis de governo desde então. Até agora, nós não conseguimos que saia do papel a proposta de um plano de atendimento para essas crianças, cujo material foi encaminhado desde a CPI da COVID-19. Deputada, não sei se ainda tenho tempo para falar. Diga-me se tenho que, a partir disso, eu apresento o que nós já sistematizamos em relação ao que é preciso fazer na Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e na Secretaria Nacional de Cuidados e Família. Vamos lá. Quanto acabar o meu tempo, eu paro.
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Primeiro há o levantamento de que todo mundo já falou. É preciso sabermos que nenhuma área do Governo é capaz de ter todos esses dados. Precisamos dos registros de pessoas naturais no SUAS, no SUS e no sistema educacional. Nenhum deles cobre tudo.
Deputada Luizianne, você tem toda a razão. Os CAPS e os CRAS estão desatualizados. Um exemplo disso é Fortaleza, que deveria ter pelo menos 100 CRAS, mas tem 27. Fazer levantamento só com os CRAS é uma roubada. Precisamos de uma campanha ampla. Quem já viu uma autoridade fazer uma campanha grande para nos ajudar a localizar essas crianças através de agentes públicos?
Precisamos também de um marco legal nacional para definição de uma instância, e isso tem muito a ver com o que a Deputada Luizianne Lins disse. É preciso criar uma frente parlamentar. Temos que pressionar até isso sair. Vamos ter persistência.
Precisamos de previsão e execução orçamentária, auxílio financeiro para a maioria deles. O Consórcio Nordeste previu isso, mas alguns Estados não encamparam essa decisão até hoje, desde 2021, lamentavelmente.
Precisamos fortalecer as redes SUS, SUAS e de saúde mental.
Precisamos ampliar áreas que são ainda mais descobertas: educação infantil, principalmente berçários públicos, programas de acolhimento familiar e programas de cultura, esporte, lazer e profissionalização, que são direitos.
Por fim, precisamos da regulamentação da representatividade legal, guarda, tutela ou adoção.
Nós precisamos unir nossos esforços para evitar o comprometimento ainda maior dessa geração. E é o nosso comprometimento com a vida que poderá nos levar a outro patamar da história.
Muitíssimo obrigada, minha colega de UFC, companheira de tantas lutas. Vamos nos dar as mãos. Vamos ter os corações conectados e as mentes alertas para chegarmos lá.
Muito obrigada a todos, todas e todes.
A SRA. PRESIDENTE (Luizianne Lins. Bloco/PT - CE) - Muito obrigada, Profa. Ângela de Alencar Araripe, professora da Universidade Federal do Ceará, integrante do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança e representante da Articulação em Apoio à Orfandade de Crianças e Adolescentes por COVID-19.
A Profa. Ângela é uma defensora incondicional da vida, das parcerias, das interações e da psicologia, na Universidade Federal do Ceará.
Passo a palavra à última convidada, a Sra. Stella Maris Nogueira Pacheco, representante da Comissão Especial de Direitos da Criança e do Adolescente da OAB Ceará.
16:23
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A SRA. STELLA MARIS NOGUEIRA PACHECO - Bom boa tarde a todos e a todas.
Inicialmente, agradeço à Comissão de Direitos Humanos e à Deputada Luizianne Lins, nossa conterrânea do Ceará, o convite feito à Comissão Especial de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente da OAB do Estado do Ceará. Agradeço-lhes a possibilidade de estarmos aqui hoje, em meio a todas essas pessoas que pensam essa política em âmbito nacional, com compromisso e anseio de ver essa realidade ser melhorada.
Nós da Ordem dos Advogados do Brasil no Ceará adotamos como prioridade essa agenda protagonizada pela Articulação em Apoio à Orfandade de Crianças e Adolescentes por COVID-19. Aproveito para cumprimentar a Profa. Ângela Pinheiro, pessoa que nos inspira grandemente nessa agenda geral.
Desde o começo de 2022, nós nos debruçamos sobre essa questão, quando ainda não se mobilizavam políticas públicas efetivas para atendimento a essas demandas que surgiram após a COVID-19. Na época, nós produzimos uma nota técnica, em que inserimos a Ordem dos Advogados do Brasil numa agenda ampla para fortalecer a atuação integrada dos Poderes e órgãos dos sistemas de garantia de direitos para efetivar os princípios da proteção integral que a professora citou. Isso foi prioridade absoluta. Inserimos a OAB no contexto da reparação de danos materiais, sociais e emocionais a crianças e adolescentes órfãos da COVID-19, com ações especialmente voltadas ao atendimento psicossocial, que se coloca como uma das principais demandas nesse contexto, assim como, obviamente, ação voltadas às demandas reparatórias.
Lançamos essa nota técnica com alguns pilares e estamos no movimento de fazer o monitoramento e o trabalho de advocacy para conseguir implementá-las. Entre esses pilares, eu pontuaria a realização de campanhas informativas permanentes sobre a orfandade por COVID-19. Enquanto OAB, nós utilizamos especialmente a capilaridade dos órgãos do sistema de justiça — e aqui cito a advocacia, o Ministério Público e a Defensoria Pública do Estado do Ceará — para a realização de um mapeamento de todos os possíveis sujeitos sociais que estão nessa condição de orfandade.
Nós também reivindicamos a disponibilidade de uma escuta e um acolhimento específicos e dedicados a essas crianças, adolescentes e familiares, na elaboração de um protocolo de atendimento específico para a questão.
Reivindicamos constantemente também a ampliação de serviços socioassistenciais de educação e de saúde, pontuando especificamente a questão da saúde mental, que é uma demanda recorrente.
A ampliação e o fortalecimento de programas de acolhimento familiar, em todos os Municípios cearenses, são um pilar que também reivindicamos nessa nota técnica e que também está em processo de monitoramento como medida de proteção prevista na legislação que antecede o acolhimento institucional.
Houve também a inclusão de um auxílio financeiro para crianças e adolescentes em condição de orfandade por COVID-19, até que esses sujeitos de direito alcancem a maioridade civil.
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É nesse contexto que nos inserimos aqui no Ceará. A Profa. Ângela Pinheiro, a AOCA e as entidades que compõem a AOCA sabem que a OAB é parceira permanente dessa agenda. Nós nos colocamos à disposição para fortalecer essa campanha, inclusive em âmbito nacional, utilizando dessa estratégia de monitoramento desses pilares que esboçamos como prioritários para o acompanhamento dessa agenda de crianças e adolescentes órfãos em decorrência da COVID-19.
No mais, agradeço pela oportunidade de estar aqui com vocês. (Palmas.)
A SRA. PRESIDENTE (Luizianne Lins. Bloco/PT - CE) - Gostaria de saber se o Prof. Paulo quer fazer uso da palavra. (Pausa.)
Vamos agora ouvir a palavra do Deputado Prof. Paulo Fernando.
Em seguida, eu vou facultar a palavra para fazermos o encerramento e as proposições. Já estamos aqui com a lista de encaminhamentos, a partir dessa troca. A supereficiente assessoria da Comissão já está com uma série de relatos das falas e das proposições para daqui para frente irmos articulando, fazendo essas interações e essas redes a que nós estamos nos propondo aqui.
Tem a palavra o Deputado Prof. Paulo Fernando.
O SR. PROF. PAULO FERNANDO (Bloco/REPUBLICANOS - DF) - Sra. Presidente, primeiro, quero cumprimentar a Comissão de Direitos Humanos pela iniciativa de tratar de assunto de tamanha relevância.
Eu assisti atentamente a todos os pronunciamentos. Chamaram-me muito a atenção duas falas: a do Sr. Milton Santos, em que ele fala dos 12 mil, teoricamente, registros no cartório; a outra foi a da Sra. Paola, que falou em 113 mil. Isso me chamou muito a atenção. Acho que a nossa Comissão e V.Exa., principalmente, Presidente, poderiam acionar o Conselho Nacional de Justiça e também a ANOREG, a Associação dos Notários e Registradores do Brasil, para que pudéssemos apurar esses números.
Quero dizer também que essas narrativas de números, esses números ao vento, não dizem respeito apenas à questão da COVID-19. Nós temos pais e mães vitimados por suicídio, por acidentes, por doenças ou por mortes naturais.
Além disso, causam-me bastante estranheza esses números, porque, quando se acessa o Cadastro Nacional de Adoção, vê-se que existem lá 5 mil crianças e adolescentes disponíveis para serem adotados, com mais de 35 mil pretendentes para serem adotantes, de tal sorte que, se esses números realmente fossem reais, os números do Cadastro Nacional de Adoção, de 2 anos ou 3 anos para cá, estariam aumentando.
De duas, uma: ou os números não são verdadeiros, ou essas crianças estão — entre aspas — "no limbo", estão sendo acolhidas por parentes, tios, avós, etc., sem que tenham a questão legal resolvida.
Também falo para a Sra. Marina que essa questão do neologismo me chama muito a atenção, porque a palavra "órfão" vem do grego orphanos, que significa destituição, enquanto no latim é orphanus, ou seja, sem pai e sem mãe. Então, apenas trocar a palavra "órfãos" por "crianças em situação de orfandade", obviamente, não vai alterar nada.
Queria dizer para a Sra. Paola que a minha mãe também faleceu de COVID-19, apesar de ter tomado três vacinas, mas eu não me sinto órfão por causa disso, porque eu tive com ela, que faleceu aos 81 anos, convivência bastante amorosa. Essa é apenas uma situação natural da vida.
Obrigado.
A SRA. PRESIDENTE (Luizianne Lins. Bloco/PT - CE) - Obrigada, Deputado Prof. Paulo. Vamos buscar esses números, esses dados.
Agora, vou passar a palavra à Mesa para as considerações finais, tendo em vista que nós já estamos com a lista de encaminhamentos aqui. No fim, eu vou fazer um apanhado geral.
16:31
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Tem a palavra o Sr. Milton Alves Santos, que disporá de 5 minutos, mas poderá dizer o que for preciso. Eu sempre digo isso e fico aqui até a hora em que as pessoas pretenderem falar, porque eu acho que, quando a pessoa se compromete com uma audiência pública como esta, ela precisa realmente ser ouvida e expressar o que pensa, como o Deputado Prof. Paulo falou agora, expressando o que pensa. Eu inclusive o convido, porque sei que ele é sensível a essas questões, a buscarmos esses números para colaborarmos com a situação que está posta.
O SR. MILTON SANTOS - Eu agradeço novamente a iniciativa à Comissão e à Deputada. Agradeço também ao Deputado Prof. Paulo a reflexão, porque eu acho que ele deu a oportunidade de nós explorarmos a complexidade e certa especificidade da orfandade, tal como ela se manifesta a partir da pandemia.
Deputada, como nós da Coalizão Nacional Orfandade e Direitos temos respondido a esse conflito de números ou de abordagens para construir o fenômeno? Partimos da premissa de uma orfandade que está muito ligada à origem dessa palavra como alguém desprovido de pai e mãe. Essa não é definitivamente a característica da orfandade da COVID-19, porque ela não atingiu, em 99,9% dos dados disponíveis, pai e mãe ou as pessoas que ocupavam o lugar de cuidador principal. Existe uma complexidade que fala muito sobre como funcionam as famílias reais no Brasil, as famílias negras, as famílias populares, mas não só essas.
Por exemplo, há arranjos monoparentais, em que a mãe cuida do filho. Não preciso explicar essa parte, mas nenhuma pessoa consegue cuidar sozinha do filho no Brasil. Nenhuma! As que fazem isso é com muito sofrimento e com muito apoio das redes de parentalidade, de vizinhança, com a ajuda dos serviços públicos que operam no Brasil, e que operam bem, é bom dizer. Há muitos serviços públicos operando de maneira adequada, mesmo que em quantidade insuficiente, mal distribuídos, etc.
Essa mãe de família monoparental divide os cuidados da criança com a tia, ou com o vizinho, ou com a mãe idosa, ou com o pai idoso, ou com o tio. Então, quando a mãe veio a falecer, quase que naturalmente essa criança ficou com a família nuclear. Ou seja, até o momento — e não há nenhum dado que tenha contrariado essa constatação —, a orfandade de COVID-19 não desfez a família nuclear. Isso explica o fato de que não há acolhimento institucional. Na verdade, ele diminuiu, não aumentou. E por que não há acolhimento institucional? Porque não houve demanda de família substituta, nem de família acolhedora, nem de instituição de acolhimento. O que acabou acontecendo foi que essa criança ficou na rede da família nuclear.
Há outra situação de orfandade — e não sabemos exatamente qual é a maior —, a da família nuclear preservada, com pai e mãe, ou equivalente, nas diversidades dos arranjos familiares de gêneros que existem no Brasil. Essa criança ficou com aquele cuidador principal vivo, ou seja: o pai, mesmo separado da mãe há muito anos; a mãe, mesmo separada do pai há muitos anos; o avô, mesmo separado do neto há muitos anos, como se isso fosse natural. E, na maioria das vezes, essas situações são legais, regulares.
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Quando isso se torna irregular? Quando essa família, sobrecarregada por esse novo arranjo de cuidado... Já era difícil cuidar do jeito antigo. Agora, com menos um cuidador, infelizmente falecido pela COVID-19, é muito difícil sustentar esse cuidado sem suporte, sem acompanhamento, sem renda, sem luto, sem profilaxia do luto, sem apoio para essa situação de orfandade. E é aí que entra a nossa primeira proposta.
A Profa. Ângela trouxe muito bem a complexidade da situação. Na vida real, existe um adulto vivendo o luto, uma criança vivendo o luto e a orfandade simultaneamente e uma família se reorganizando em termos de parentalidade. Isso é muito complexo!
De um lado, ocorre a violação de direitos pelo rompimento abrupto de vínculos, sem nenhum aviso prévio, diferentemente da situação em que há uma doença crônica, por exemplo, e a pessoa sabe que algo vai acontecer ali. De outro lado, houve queda de renda, e há conflitos familiares de todo tipo. É essa a situação que configura a nova orfandade.
Eu queria chamar a atenção, antes de ir para a conclusão, para não abusar do tempo, para o fato de que a imagem que nós temos das famílias em orfandade precisa ser revista. Eu até coloquei isso na apresentação, mas não foi possível mostrar. Sugiro que ela seja utilizada.
Na imagem que nós juntamos não há nenhuma criança chorando, não há nenhuma criança sem o adulto perto dela, não há nenhuma família pedindo esmola na rua. O que há? Há uma família sobrecarregada.
A SRA. PRESIDENTE (Luizianne Lins. Bloco/PT - CE) - Milton, deixe-me sugerir uma coisa.
O SR. MILTON SANTOS - Claro!
A SRA. PRESIDENTE (Luizianne Lins. Bloco/PT - CE) - Desculpe-me a interrupção. Vamos tentar botar a imagem.
O SR. MILTON SANTOS - Se for possível, eu agradeço.
A SRA. PRESIDENTE (Luizianne Lins. Bloco/PT - CE) - "Botar" é bem cearense. (Risos.)
Gente, "botar" significa colocar. Vamos colocar a imagem. É que de vez em quando o "cearencês" se manifesta.
O SR. MILTON SANTOS - O nome do arquivo é Apresentação Coalizão Orfandade.
A SRA. PRESIDENTE (Luizianne Lins. Bloco/PT - CE) - Eu vou passar a palavra para o Diego e depois para a Marina. Enquanto isso, nós nos organizaremos, e em seguida você encerra com a apresentação.
O SR. MILTON SANTOS - Perfeito. Eu lhe agradeço, Deputada Luizianne Lins.
A SRA. PRESIDENTE (Luizianne Lins. Bloco/PT - CE) - Tem a palavra a Sra. Marina de Pol Poniwas.
A SRA. MARINA DE POL PONIWAS - Obrigada, Deputada. Mais uma vez eu gostaria de agradecer à Deputada Luizianne Lins por este momento tão importante para nós.
O CONANDA tem se preocupado bastante com este assunto, como eu disse na minha fala anterior. Eu gostaria também de agradecer ao Deputado Prof. Paulo pelas colocações.
Quero falar da nossa preocupação. O sofrimento e a morte são um tabu na nossa sociedade e não são bem vistos. Quando alguém está sofrendo, logo vem alguém dizendo assim: "Pare com isso. Pare com essa preguiça, com essa moleza. Segue em frente", como se não pudéssemos dedicar um tempo da nossa vida para viver aquilo, para superar a dor com todo o cuidado que se faz necessário. Imaginem se essa pessoa for reconhecida socialmente e caracterizada justamente por aquilo que lhe causa dor e sofrimento. É por isso que dizemos que o termo é pejorativo. É tão difícil falarmos sobre isso. Precisamos que essas vítimas falem por elas mesmas.
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Eu acho que temos que ter o objetivo de fazer um encaminhamento desta audiência pública para que essas vítimas falem por elas, para que possamos resgatar a memória, a verdade e fazer justiça social. Para que elas falem por si, não podemos caracterizá-las de forma pejorativa. Temos de contribuir para que elas possam superar essa dor, esse sofrimento, a fim de que possamos construir de fato a reparação social.
Por isso, o CONANDA vai avançar cada vez mais nisso. Podem contar com o CONANDA para recomendar a construção de uma política nacional de proteção à orfandade. Nós também precisamos avançar em regulações específicas, como a da plataforma de registros, como as questões de pensão e de apoio financeiro para essas famílias que ficaram sobrecarregadas.
Essas crianças e adolescentes não estão nas instituições de acolhimento. Elas foram acolhidas por seus familiares, por outros cuidadores que estão sobrecarregados hoje. Depois o Milton Santos vai mostrar a imagem para nos demonstrar isso.
Precisamos avançar em regulações para que esse sistema de garantia de direitos possa construir ações intersetoriais de atendimento e proteção a crianças e adolescentes em situação de orfandade.
Obrigada.
A SRA. PRESIDENTE (Luizianne Lins. Bloco/PT - CE) - Passo a palavra ao Diego Bezerra Alves. Depois, falará o Milton.
O SR. DIEGO BEZERRA ALVES - Obrigada, Deputada.
Agradeço a todos os que contribuíram com este debate com reflexões importantes.
De novo, eu quero reafirmar a importância de lembrarmos que essa orfandade não é um acidente. Não é igual a uma criança que ficou sem pai porque ele morreu num acidente de carro, porque a mãe teve uma doença, um câncer, e faleceu. A orfandade decorrente da COVID-19 é objeto de um crime do Estado. Essa é uma situação muito específica que eu acho que deve ser encarada dessa forma, para a responsabilização devida. Este é o primeiro registro.
Precisamos cobrar do sistema de justiça o rápido julgamento e a responsabilização daqueles crimes que foram vastamente documentados na CPI do Senado ocorrida no ano passado. É preciso que seja dado um encaminhamento legal e adequado a isso, para que o Brasil possa fazer as pazes com esse passado, com essa situação tão difícil por que passamos.
Por fim, eu acho que há um encaminhamento muito importante que eu queria ter abordado na minha fala inicial, mas precisamos retomá-lo: a importância da vacinação das crianças. Em decorrência da pandemia de COVID-19 e dessa conduta criminosa de que vastamente tratamos aqui, o Brasil tem baixíssimos índices de vacinação contra a COVID-19 e retrocedeu em vários aspectos na vacinação de crianças, tema no qual o Brasil sempre foi exemplar.
Neste Governo, a maioria dos índices de vacinação já foram retomados, mas em relação à COVID-19 ainda seguem baixos. Acho que precisamos voltar a convencer as pessoas de que as vacinas são seguras, de que os pais podem levar os filhos para se vacinar. Nós ainda seguimos com muitas crianças desprotegidas, em nome da ignorância que foi disseminada neste País, durante o último Governo.
Por fim, acho que o Deputado levantou de forma muito interessante a questão da fila de adoção.
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Esta é uma reflexão que precisamos fazer, porque a adoção muitas vezes é encarada como uma solução imediata para a criança que está sem pais. Na verdade, a adoção é a última alternativa para solucionar a questão do acolhimento familiar. A adoção só pode ser feita se for o melhor interesse da criança. Não é uma simples relação: perdeu o pai, foi para a fila da adoção, o primeiro que está na fila vai adotar e pronto. A adoção é um processo complexo, ocorre como última alternativa, de acordo com o ECA, para as crianças e os adolescentes. Existem outros caminhos. Lembremos que a adoção tem que privilegiar o interesse da criança e não do adotante. Muitas vezes isso é esquecido nesses debates, e é sempre bom lembrarmos.
Eu peço licença para sair, porque já tenho outra agenda.
Obrigado, Deputada Luizianne Lins. (Palmas.)
A SRA. PRESIDENTE (Luizianne Lins. Bloco/PT - CE) - O.k. Muito obrigada ao Diego pela presença.
Sr. Milton Santos, pode retomar a sua fala para finalizá-la.
O SR. MILTON SANTOS - Concordamos com tudo que o Diego disse.
(Segue-se exibição de imagens.)
Essas são imagens de domínio público, não foram produzidas pela coalizão. São imagens de matérias jornalísticas e de postagem em redes públicas de redes sociais. Eu chamo a atenção para duas imagens.
A primeira imagem, da direita para a esquerda, é um pai, homem de 24 anos, com um filho de 4 anos. É um ator superconhecido da TV Globo que perdeu a esposa por uma doença raríssima, inesperada. Ele começou a fazer postagens nas redes sociais de como é difícil se dar conta de que a parentalidade tem que ser feita por, pelo menos, duas pessoas e como ele estava se reorganizando, como pai, para dar conta das demandas de cuidado com esse filho. Trata-se de um sujeito sem problemas financeiros, sem problemas territoriais, relativamente organizado, com rede de apoio, mas vivendo esse desafio da orfandade.
A orfandade citada acima não é de COVID, mas as demais são. Trata-se de situações reais espalhadas pelo Brasil.
O que vocês veem? Mulheres, na maioria das vezes, cuidando de crianças. Às vezes, vocês veem o filho com a mãe, ou seja, a avó das crianças dividindo esses cuidados. A imagem não é de tristeza. É óbvio que aqui há o luto em andamento, mas é uma imagem de desamparo e de sobrecarga.
Concordamos muito com o que a Marina acabou de dizer: poder avançar daquele modelo de orfandade, do abandono, de não ter nem pais nem mães, que era a ideia do desamparo absoluto, para uma ideia de que, na verdade, existe uma dificuldade na parentalidade, uma sobrecarga, e, claro, uma situação de sofrimento, que, de maneira brilhante, disse a Deputada Luizianne Lins, deve ser vivida como sofrimento. Viver o sofrimento é um direito. O que não pode é se tornar uma doença, uma patologia e uma agudização da vulnerabilidade.
Eu queria terminar de fato, lendo um post de WhatsApp de uma das nossas redes.
16:47
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Vou lê-lo rapidamente.
A gente entrevistou 12 famílias de várias partes do Brasil e de diferentes classes sociais. O que a gente mais sente nessa fase é a exaustão. São famílias muito cansadas, tendo que se redobrar para dar atenção afetiva e financeira para essas crianças que ficaram sem um dos pais. É muito comum ouvir que as crianças e adolescentes se tornaram pessoas fechadas e introspectivas depois desse evento. E a questão do luto também aparece como um processo que foi mal vivido. Com a exaustão, aparecem muitas frases relacionadas à culpa dos cuidadores, de achar que estão sendo pais e mães, tios, avós, parentes insuficientes para o cuidado com aquelas crianças. Muitas delas não querem — crianças e os seus cuidadores — que suas histórias sejam esquecidas. E ainda esperam por algum tipo de justiça.
Espero que não deixemos essas famílias e essas crianças a ver navios.
Obrigado, Deputada. (Palmas.)
A SRA. PRESIDENTE (Luizianne Lins. Bloco/PT - CE) - Passarei a palavra aos nossos convidados.
Há uma pessoa inscrita, mas vamos adiantando.
Então, passo a palavra agora à Sra. Paola Falceta, Presidente Fundadora da Associação Nacional de Vítimas e Familiares de Vítimas da COVID-19 —AVICO, para fazer suas considerações.
A SRA. PAOLA FALCETA - Obrigada, Deputada.
Respondo às dúvidas em relação a alguns dados informados sobre as 113 mil crianças e adolescentes órfãos. Isso se refere a um estudo publicado em 2021 na The Lancet, uma das mais consideradas revistas científicas do mundo, em que foram estudados 21 países, e o Brasil, em orfandade, é o quarto. Eles têm uma metodologia, obviamente, científica, são especialistas. Eu não vou nem me estender aqui. Quem quiser pode dar um Google, pois é de facílimo acesso.
A estimativa é que no Brasil morreram 25 mil mães — estou arredondando — e 87 mil pais. O próprio estudo, em nenhum momento, refere que morreu mãe e pai em conjunto; inclusive, fala sobre as subnotificações. Neste estudo de mães e pais não constam aquelas mães que já moravam sozinhas, já eram monoparentais, não constam avós, não constam tios.
A minha referência a esses 113 mil... É importante ressaltar que este estudo vai do final de 2020 a abril de 2021, que não foi o ápice da mortalidade de COVID-19 no País. Nesta época, os idosos estavam sendo vacinados.
16:51
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Portanto, muita gente morreu, até o final de 2021, por necropolítica de Estado, por falta de vacina. É importante ressaltar, se alguns não sabem aqui, que a AVICO tem, em parceria com o Ministério Público Federal, uma ação civil pública coletiva responsabilizando a União pela reparação pecuniária aos enlutados, familiares de vítimas e sobreviventes da COVID por essa falta de vacina, quando ela já havia no mundo. Não é achismo, não são números ao vento; são números facilmente pesquisados no Google.
Trago outro dado interessante. A Lei nº 6.015, de 1973, que regula as certidões de óbito no País, obriga que seja registrado na certidão de óbito do falecido ou falecida se deixou filhos menores de 18 anos, e as idades. Portanto, temos base de onde tirar. Se o Governo Federal e o Legislativo quiserem, nós temos de onde tirar números.
Por fim, falo sobre ser órfão, o significado de ser órfão. Ainda que concorde com a colega que falou sobre o termo ser pejorativo, não temos um termo melhor ainda para usar. O conceito de órfão não vem de um sentimento de ser órfão ou não, com 50 anos, com 80 anos, com 12 anos; ele vem de um conceito que diz do filho que perdeu o pai e a mãe. Costumamos falar que o órfão é a criança e o adolescente, mas qualquer órfão de pai e mãe é órfão. Sobre me sentir órfã em relação à minha mãe, eu tenho o meu luto perfeitamente elaborado nestes 3 anos de militância nacional neste País, com vários outros coletivos, entidades e companheiros. E posso afirmar para vocês que, se a minha mãe tivesse morrido de qualquer outra coisa que não de crime do Estado brasileiro e eu não tivesse assistido à morte da minha mãe no dia 2 de março de 2021, quando já existia vacina, e ela, uma idosa de 81 anos, não pôde ser vacinada com nenhuma dose, diferentemente de muitas outras pessoas... Eu vi, presenciei durante 45 dias a internação da minha mãe, que nada tinha, por COVID, e ela se infectou por COVID em um hospital público e morreu sufocada, sem a oportunidade de uma vaga de UTI, de oxigênio, porque o Estado brasileiro não tinha se preparado para tal. Então, se esse tipo de morte, que não é um acidente, que não é um acaso e que é provocado pelo Estado, quando deixa de fazer a sua obrigação constitucional, se essa morte é traumatizante para um adulto, quem dirá o que ela será para uma criança e um adolescente!
16:55
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Finalizo a minha devolução dos dados com esses três pontos e agradeço a oportunidade de fala. (Palmas.)
A SRA. PRESIDENTE (Luizianne Lins. Bloco/PT - CE) - Obrigada, Sra. Paola Falceta.
Nós nos juntamos nessa solidariedade, nessa dor. É importante que você esteja transformando essa dor em luta e em militância, também pensando nos que aqui ficaram dessa tragédia mundial que nós vivenciamos.
Passo a palavra agora à Sra. Ângela de Alencar Araripe, professora da Universidade Federal do Ceará, integrante do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança e da Articulação em Apoio à Orfandade de Crianças e Adolescentes pela COVID-19.
A SRA. ÂNGELA DE ALENCAR ARARIPE - Eu vou comentar algumas coisas que saíram.
Ao fazermos o levantamento e localizarmos essas crianças, esses adolescentes, nós precisamos simultaneamente ter para onde encaminhá-los. A rede precisa estar fortalecida. Então, eu pretendo voltar o contato com a Secretaria Nacional. Nós tivemos esse contato inclusive com o Diego, quando era Presidente do CONANDA.
Vou dizer para vocês um dado histórico muito importante para nós da AOCA e dos coletivos.
Nós levamos uma contribuição feita a muitas mãos — eu levei, em mãos, eu fui a Brasília para o Gabinete de Transição, entreguei para a assessoria da Deputada Maria do Rosário, então Coordenadora do Grupo de Direitos Humanos, e entreguei aqui, no Estado do Ceará, ao Senador Wellington Dias, já como Ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, as contribuições que nós temos construído a muitas mãos. Sabemos muito pouco ainda. Mas quanto mais nós debatermos, mais importante será. E sábado nós fizemos essa entrega, quatro integrantes da AOCA, à equipe do Ministério dos Direitos Humanos que estava aqui no Ceará para outras pautas.
E aí eu quero dizer algo que me parece fundamental, que nós estamos vivenciando aqui, também de forma histórica: a orfandade ser reconhecida como uma pauta afeita a direitos humanos. Se nós já tínhamos conseguido fazer audiências públicas na Câmara Municipal de Fortaleza e na Assembleia, nesse âmbito, nós agora estamos fazendo aqui. E eu tenho certeza, pelo que nós conhecemos da Deputada Luizianne Lins, do nosso Estado, de que, quando ela decide tomar para si algo para fazer acontecer, ela de fato se compromete. Então, eu acho que isso será muito bom.
Outro aspecto que está também submerso aqui e que eu queria trazer — eu nem vou entrar no debate sobre se o termo "órfão" é o mais adequado ou não — é que eu tenho recebido — nós temos buscado estar nos territórios e ouvir — histórias de orfandade. E não é muito incomum ouvir coisas como esta: "Eu não queria criar essa menina, mas minha filha morreu. Eu não consigo nem lidar com o luto da minha filha — que morreu de COVID —, porque eu tenho que cuidar dela". No caso, uma avó.
16:59
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Eu não vou entrar nos vários casos, mas há um segundo: o pai já tinha morrido, a mãe morreu de COVID, ficam um adolescente e três crianças pequenas na condição de orfandade. O adolescente, então, com 15 anos, começa a cuidar dos seus irmãos, tem o apoio de um grupo comunitário. E, por conta de ter recebido um desses apartamentos populares, eles se mudam e deixam de ter esse apoio. De repente, tem-se a notícia de que ele está roubando, e alguém vai conversar com ele. Aí, ele diz: "Onde é que eu vou conseguir dinheiro para sustentar a minha família?" Isso é para dizer do desamparo estatal. Nesse sentido, se nós dispusermos de berçários públicos, se nós dispusermos de famílias acolhedoras devidamente acompanhadas, é muito mais fácil que essa criança fique em condição de convivência familiar e comunitária, com os seus direitos respeitados.
Aí eu termino com um alerta. A Paola falou da necropolítica. Há uma dimensão da necropolítica que nos lembra. O esquecimento é uma forma de, enfim, exercer a necropolítica — faltou aqui uma palavra. E nós não podemos nos esquecer dessas crianças, senão, nós seremos cúmplices disso.
Então eu espero que nós consigamos e eu espero que saia daqui uma articulação entre articulações, que nós possamos cobrar e que o Governo defina qual é a instância que vai cuidar disso, qual é o Ministério e, dentro do Ministério, qual é a instância. E que aí nós possamos nos articular, Poder Legislativo, Poder Judiciário e o poder da sociedade civil, das forças sociais.
Termino ressaltando uma das nossas parcerias muito legais, com a Defensoria Pública do Estado do Ceará, em que nós já fizemos o mutirão para a regulamentação de guarda. E agora lançamos, muito recentemente, uma campanha chamada Abraçar, incentivando que nós, sociedade civil, ao sabermos de situações ou condições de orfandade — porque ela é permanente —, possamos buscar os órgãos públicos. Então, quem se interessar por isso siga-nos no Instagram: @aoca.ce. Acho que dá um superexemplo.
Que nós possamos sair daqui potencializando a força que está vindo desta belíssima audiência pública.
Obrigada. Vamos lá! (Palmas.)
A SRA. PRESIDENTE (Luizianne Lins. Bloco/PT - CE) - Vou pedir um pouquinho de paciência. Nós estamos finalizando, mas temos duas inscrições vindas do Plenário desta audiência pública.
17:03
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Temos aqui a Sra. Nirce Ferreira, que também é membro da Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da COVID-19 — AVICO, que vai fazer o uso da palavra por 3 minutos.
Em seguida, fará o uso da palavra a Sra. Isabel Gomes, que é Coordenadora, no Distrito Federal, da Associação Nacional em Apoio e Defesa dos Direitos das Vítimas da COVID-19 — Vida e Justiça.
Sra. Nirce, pode fazer o uso da palavra.
A SRA. NIRCE FERREIRA - Boa tarde a todos.
Eu cumprimento a Mesa e os presentes.
Vou falar bem rapidinho.
Eu sou Nirce. Tenho 71 anos de idade. Estive como professora voluntária da Universidade de Brasília durante 10 anos dentro do sistema socioeducativo, e, aos 63 anos de idade, resolvi enfrentar o bicho-papão da seleção para doutorado, porque eu tive bastantes dados com o trabalho que nós fazíamos lá no sistema socioeducativo.
Para ser bem sucinta, nós percebemos que a maioria absoluta dos jovens que hoje habitam o sistema socioeducativo, cumpre medidas socioeducativas, em geral, tem uma deficiência enorme de pai e mãe cuidar; em geral, quem cuida são os avós. O que me trouxe aqui foi justamente isso. Eu fiquei pensando: se a COVID matou, acabou com tantos idosos, como é que estão hoje, quem são, onde estão, qual é a condição em que esses meninos, adolescentes e crianças que cumprem medidas socioeducativas estão sobrevivendo, porque os seus cuidadores foram embora, os seus incentivadores? Eu não concordo com a palavra "ressocialização", porque aqueles, na maioria das vezes, não foram nem nunca estiveram socializados. O nosso trabalho dentro do sistema socioeducativo foi justamente esse de formar professores para que nas escolas esses meninos pudessem ter essa socialização.
Então, a minha grande preocupação hoje é que esse número de adolescentes que cumprem medidas socioeducativas seja também engajado nessa busca, em toda essa pesquisa que se vai fazer para levantar esses dados de adolescentes em situação de orfandade.
Eu sou enlutada. Perdi o grande amor da minha vida. Foram 40 anos de casados. Tenho nove órfãos dentro da minha casa até hoje. Faz 2 anos e 8 meses que o meu esposo se foi. Eu também fiquei órfã dele — concordo com a Paola —, porque choro isso até hoje. É por isso que eu estou aqui. Estou aqui preocupada com os adolescentes que cumprem medidas socioeducativas, para que eles sejam também alinhados a esse grupo, que vai ser beneficiado com o nosso resultado daqui hoje. (Palmas.)
A SRA. PRESIDENTE (Luizianne Lins. Bloco/PT - CE) - Stella, nós não nos esquecemos de você, não, viu? É porque você vai encerrar, está certo? Nós temos duas pessoas aqui no plenário que estão inscritas. Logo em seguida, passaremos a palavra para você finalizar.
Agora, com a palavra a Sra. Isabel Gomes, Coordenadora, no Distrito Federal, da Associação Vida e Justiça pelas Vítimas da COVID.
A SRA. ISABEL GOMES - Eu estava aqui pensando como eu iria começar, mas primeiro, claro, tenho que agradecer demais à Deputada por dar este espaço a um público que tem sido esquecido, que são as vítimas da COVID. Enquanto eu pensava no que eu ia falar, pensei em palavras que a Nirce acaba de falar. Eu conheci a Nirce 1 hora atrás.
Eu também sou viúva da COVID. Foram 37 anos de casada. Lá em casa, foram cinco órfãos. Eu, como a Nirce, também me sinto órfã. Meu marido era um grande líder dentro da Caixa, tinha mais de 15 mil seguidores, e é comum eu ouvir pessoas dizendo que ficaram órfãs dele, pela assistência que ele dava às pessoas, pelo cuidado que ele tinha, enfim.
17:07
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Eu realmente fui atrás de cuidar disso, porque os órfãos da minha casa são três maiores, que são as nossas filhas, e dois filhos da empregada, que nós criamos, que ainda eram menores e apegadíssimos ao avô. Embora a nossa condição financeira não tenha nos levado a uma perda significativa de condição econômica, emocionalmente, é o que a Marina falou: ninguém entende o luto, todo mundo acha que ficamos enlutados tempo demais.
Eu penso que é uma insensibilidade social muito grande não reconhecer isso. O meu marido morreu em 2 horas. Ele tinha apenas 63 anos. Ele era forte feito um touro. Ele caminhava 10 mil passos por dia, religiosamente cronometrados, e faltava 1 mês para chegar a vacina para ele. No dia em que fez 1 mês, ele se foi. Veio a vacina para mim, que tinha a mesma idade que ele. Então, ele realmente foi vítima do Estado, porque ele não tinha nenhuma razão, nada, nenhum fator de risco, exceto a idade, que não era tanto, apenas 63 anos.
Agora eu fico até com vergonha de sentir dor no meu caso, quando eu ouço os casos que o Milton conta, dessas crianças abandonadas. E o Deputado me alertou para algo em que eu não tinha pensado ainda. Na verdade, esse abandono é maior do que pensamos, porque essas pessoas, essas crianças, esses jovens não estão sequer cadastrados em lugar nenhum. Veja o que o Deputado falou aí: como houve mortes, se não houve um aumento de registro, eles são tão abandonados que não estão nem rastreados ainda. Então, é um negócio assustador, e não tínhamos nem pensado nisso. Então, minimamente, o Estado tem que, pelo menos, fazer a triagem disso, dizer quem são essas crianças abandonadas.
Eu acho importantíssimo nós continuarmos com este debate e de forma nenhuma nos esquecermos, porque é como eu digo: não foram 700 mil mortes, foram 700 mil vidas. Eram pessoas que estavam vivas entre nós.
O Deputado lembrou bem que ele também ficou órfão. Eu, como a Nirce, me sinto órfã. Nós nos sentimos órfãs do marido. E estamos falando só dos órfãos menores de idade. Agora, imagine o tanto de órfãos que, assim como Deputado, perderam os seus pais, que não estão precisando de auxílio financeiro, mas que precisam minimamente que o Estado reconheça essa desídia que foi cometida ao deixar essas pessoas morrerem, assim, sem nenhum cuidado, porque, no mínimo, demorou muito a chegar. No caso do meu marido, se ele tivesse vivido mais 40 dias, talvez ele tivesse tomado a vacina e não tivesse morrido.
Eu não posso falar mais.
Muito obrigada.
Eu realmente não tenho como lhe agradecer, Deputada. Eu gostaria de lhe dar um grande abraço, porque todos vocês que pensam em nós fazem muita diferença, muita diferença mesmo. Muito obrigada.
17:11
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(Palmas.)
A SRA. PRESIDENTE (Luizianne Lins. Bloco/PT - CE) - Obrigada, Sra. Isabel Gomes, que é Coordenadora no Distrito Federal da Associação Vida e Justiça pelas Vítimas da COVID, e Sra. Nirce Ferreira, que é da Associação Nacional de Vítimas e Familiares de Vítimas da COVID-19, que também deu seu depoimento.
E nós vamos encerrar com a fala da Stella.
Antes, eu vou só colocar algumas questões, e vamos ver se terá algum acréscimo.
Primeiro, o que nós percebemos aqui como encaminhamento é a necessidade de identificação imediata das pessoas: quantos são, onde estão e quem são as crianças e adolescentes em situação de orfandade.
Tivemos aqui a colaboração do Padre Dario, que colocou a questão da identificação para que uma rede de políticas públicas e benefícios socioassistenciais possa chegar depois da identificação; da Marina de Pol Poniwas, que destacou o grupo de trabalho que o CONANDA fez para desenvolver parâmetros, referências e recomendações para oferecimento às crianças e adolescentes em situação de orfandade, que estão em situação de desproteção social.
Sobre esse GT, Marina, nós vamos acompanhá-lo um pouco, para pegar as informações em que o grupo de trabalho deve avançar.
Tivemos a participação do Diego Alves, que colocou a questão de o Estado não promover a imediata compra da vacina; da Paola Falceta, que falou da importância de o Governo Federal criar um programa para a defesa dos órfãos da COVID-19; e da Stella, que vai já falar conosco de novo, que disse que a OAB Ceará expediu uma nota técnica pontuando a necessidade de que as políticas públicas destinadas à orfandade da COVID-19 estejam alinhadas aos princípios constitucionais de proteção integral e de prioridade absoluta, com a realização de campanhas informativas sobre o tema e a atuação integrada entre cartórios e sistema de justiça, visando ao atendimento das demandas judiciais e extrajudiciais relativas à regularização da guarda e poder familiar.
A nossa querida Ângela Pinheiro, professora da UFC, ressaltou a importância dos serviços de assistência, de educação, de saúde, de saúde mental, a implementação de berçários públicos, entre outros, que possam vir a atender à orfandade da COVID-19.
O Deputado Paulo Fernando destacou sua experiência e sua vivência pessoal em relação à sua mãe, que, mesmo vacinada, faleceu em decorrência da COVID-19 e sugere que a Comissão — faremos isso juntos, Deputado — acione o Conselho Nacional de Justiça e a Associação dos Notários e Registradores para informar os números de mortes em decorrência da COVID-19 e, consequentemente, a localização também, imagino, das crianças e adolescentes vítimas da orfandade.
Agora nós vamos ter o encerramento, seria mais ou menos isso.
Eu quero sugerir aqui, como um desdobramento imediato desta audiência, a solicitação de uma audiência com o Ministro do Desenvolvimento Social, que eu acho que é o Ministério que está mais atento a essas questões do desamparo social, juntamente com outros Ministérios, como o Ministério dos Direitos Humanos também, para discutir de forma concreta com o Executivo a criação de um programa. Destaco, inclusive, a fala que foi feita por outros, mas também pelo Deputado Prof. Paulo Fernando, de que, na verdade, existem mortes em decorrência de outros problemas cuja responsabilização muitas vezes se encontra no Estado — Estado no sentido lato sensu, de forma geral —, para proteger a vida em função de outras questões.
17:15
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Acho que é um primeiro momento para aprofundarmos e somarmos esforços.
Tivemos a visão do CONANDA, da academia, da sociedade civil, da OAB, através da Stella, da Paola também, que fundou a AVICO, em função da sua dor e da sua experiência pessoal, e está transformando isso numa coisa importante para a sociedade brasileira.
Parabéns a todos que estão envolvidos nessa luta.
Eu vi o seu gatinho, Paola, também tenho um, parecido com o seu, inclusive. O Deputado Prof. Paulo Fernando também é criador de gatos. Fiquei com saudade dos meus, que estão no Ceará. Os meus são cearenses.
Vou passar a palavra a você, que a está solicitando. Peço que se apresente e informe a instituição de que faz parte. Em seguida, passarei a palavra para a Stella.
O SR. GUSTAVO CAMARGO - Boa tarde a todos e todas. Eu me chamo Gustavo Camargo, sou conselheiro tutelar, atuo em Planaltina, região periférica do Distrito Federal. Também sou Presidente da Associação de Conselheiros Tutelares do Distrito Federal e represento o DF no Fórum Colegiado Nacional de Conselheiros Tutelares.
Observando os encaminhamentos, eu queria sugerir mais um: a alteração do Sistema de Informação para a Infância e Adolescência — SIPIA-CT, para fazer acrescer dentro desse sistema a possibilidade de informação pela rede de proteção ao conselho sobre a orfandade, sob a ótica da quebra da convivência familiar.
Para além disso, acho que todo mundo expôs muito bem sobre a questão da orfandade, não somente em decorrência da pandemia, mas também do ponto de vista de utilizarmos o momento que vivenciamos de pandemia para conseguirmos ampliar essa questão para outros horizontes.
Era só isso.
Obrigado.
A SRA. PRESIDENTE (Luizianne Lins. Bloco/PT - CE) - Muito bem. Obrigada pela colaboração. Está anotadíssimo como encaminhamento para darmos desdobramento aqui.
Vamos concluir agora com a fala da Stella, por 5 minutos, da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Ceará, que está colaborando conosco neste debate, inclusive relatando a iniciativa tomada pela Ordem dos Advogados.
A SRA. STELLA MARIS NOGUEIRA PACHECO - Bom, só quero reafirmar o compromisso da Comissão Especial de Infância da OAB no Ceará com a pauta da orfandade e com o monitoramento dos pilares construídos nessa experiência local que tivemos aqui no Ceará, junto com a AOCA, assumindo a importância que este tema requer. Ele continua atual, mesmo 4 anos após o início da pandemia.
Quero elencar especialmente a necessidade urgente de produção de dados públicos. Nós nos baseamos muito nesse estudo da The Lancet, mas há necessidade urgente de produção de dados públicos sobre a orfandade da COVID–19 no País; de atenção especial à regularização da situação jurídica desses órfãos e à construção qualificada de uma política reparatória de danos materiais, reparação financeira e psicológica a essas crianças e adolescentes, órfãos da COVID–19, com ações especialmente voltadas a esse atendimento psicossocial, que vimos reivindicando desde o início.
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Com esse compromisso, a OAB-CE atua de forma integrada com os poderes e órgãos do Sistema de Garantia dos Direitos para efetivar esses princípios constitucionais que sempre elencamos e defendemos quando trabalhamos essa questão.
Nesse processo, temos tido uma experiência exitosa, no âmbito do sistema de justiça, por meio de conversas bilaterais com o Ministério Público, com a própria advocacia e o Judiciário, de tentar fazer esse mapeamento em paralelo ao mapeamento que já deveria estar em curso há bastante tempo pela política socioassistencial.
No mais, nós nos colocamos à disposição para construir a defesa dessas políticas para essas crianças e adolescentes em âmbito nacional.
Obrigada, Deputada Luizianne Lins. (Palmas.)
A SRA. PRESIDENTE (Luizianne Lins. Bloco/PT - CE) - Muito obrigada, Stella. Acho que é um bom começo para sistematizarmos os trabalhos.
Quero muito agradecer por sua presença e colaboração, Marina, representante do CONANDA. Leve nosso abraço a todos que fazem o CONANDA.
Antes de encerrar a presente reunião, convoco as senhoras e os senhores membros desta Comissão para a audiência pública a ser realizada amanhã, dia 23 de novembro, às 9 horas, no Plenário 9, com o tema Construção de um pacto republicano pela redução dos homicídios dos jovens negros no Brasil. O evento atende ao Requerimento nº 57, de 2023, de autoria da Deputada Benedita da Silva e do Deputado Paulão.
Está encerrada a presente reunião.
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