1ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 57 ª LEGISLATURA
Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais
(Audiência Pública Ordinária (semipresencial))
Em 7 de Novembro de 2023 (Terça-Feira)
às 15 horas
Horário (Texto com redação final.)
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A SRA. PRESIDENTE (Célia Xakriabá. Bloco/PSOL - MG) - Declaro aberta a reunião de audiência pública desta Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais, destinada a debater o tema Tratamento de povos indígenas no contexto de encarceramento.
Ressalto que a presente audiência decorre da aprovação nesta Comissão do Requerimento nº 48, de 2023, de minha autoria, subscrito também pelo Deputado Airton Faleiro, do PT do Pará.
Eu gostaria de agradecer a presença de todos os membros desta Comissão, do colegiado, dos palestrantes e de todas e todos que nos assistem.
Eu gostaria ainda, na oportunidade, de agradecer pela última audiência que realizamos no Vale do Javari, organizada também por Lucas Marubo, região onde está a maior concentração de indígenas isolados no País. Na oportunidade, quero agradecer a nossa assessoria, que nos acompanhou nessa missão, Maria Helena, Thiago Yawanawá, parentíssimo Secretário Weibe Tapeba, Iago, Vinícius, Victor, do MPI, que está aqui também, e todos que nos acompanharam nessa importante missão.
Informo que este evento está sendo transmitido via Internet e que o vídeo pode ser acessado pela página da CPOVOS no site da Câmara dos Deputados e pelo canal da Câmara dos Deputados no Youtube.
Este é um tema muito caro para nós. Portanto, trouxemos pessoas que irão debatê-lo.
Convido agora para compor a Mesa a Daniele de Souza Osório, Defensora Pública da União em Mato Grosso do Sul, Coordenadora do Grupo de Trabalho de Povos Indígenas, que vai participar da audiência conosco.
Eu gostaria de convidar também para participar conosco a Sra. Aléssia Bertuleza Tuxá, Defensora Pública do Estado da Bahia e Coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Igualdade Étnica dos Povos Indígenas e Presidente da Comissão de Direito dos Povos Indígenas, nossa primeira Defensora do povo Tuxá.
Convido também o Sr. Caíque Ribeiro Galícia, assessor da Secretaria do Ministério dos Povos Indígenas, e a Sra. Viviane Balbuglio, representante do Instituto das Irmãs da Santa Cruz e do Conselho Indigenista Missionário — CIMI.
Participará da audiência de maneira virtual a Sra. Ana Lívia Fontes da Silva, Coordenadora Nacional de Assistência Social da Secretaria Nacional de Políticas Penais, do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Estarão também conosco o Sr. Andrey Cordeiro Ferreira, Vice-Coordenador do Comitê de Laudos Antropológicos da Associação Brasileira de Antropologia — ABA; e o Sr. Felipe Kamaroski, representante da Associação Brasileira de Antropologia — ABA.
Antes do início das exposições, eu peço atenção de todas e todos para as normas internas da Casa. Cada expositor terá o tempo até de 7 minutos para apresentação. Depois, as Deputados e os Deputados que queiram interpelar os expositores poderão se inscrever pelo nosso aplicativo Infoleg.
Esta é uma pauta muito cara para nós. Dados de 2021 revelam que Mato Grosso do Sul detinha 40,9% do total de pessoas indígenas aprisionadas em todo o Brasil, sendo que 79,1% dessas pessoas já se encontravam condenadas, e 19,6% foram classificadas como prisões provisórias.
Em relação à informação sobre povo que pertence ou etnia, em 2021 a pesquisa encerrou da seguinte forma sobre os povos mais encarcerados: povo guarani-kaiowá, 17,6%; povo macuxi, com 13,2%; indígenas do tronco guarani, com 10%; povo terena, 6,8%; e povo kaingang, com 5,7%.
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Com relação às mulheres indígenas em situação de encarceramento em 2021, ressalto que apenas em Mato Grosso do Sul estavam presas 22 mulheres, o equivalente a mais de 45% do total de mulheres indígenas presas em todo o Brasil.
Sem mais demora, passo agora a palavra para nossa parentíssima Aléssia Tuxá, Defensora Pública do Estado da Bahia.
A SRA. ALÉSSIA BERTULEZA TUXÁ - (Manifestação em língua indígena.)
Boa tarde, senhoras e senhores. Em primeiro lugar, eu gostaria de parabenizar a Deputada Célia Xakriabá pela iniciativa, pela convocação desta audiência pública, mas não só por isso, Deputada, mas pelo trabalho que a senhora vem fazendo. Sem sombra de dúvida, independente das várias pautas que a senhora traz aqui, a grande conquista, para além dos projetos de lei que virão, é justamente retirar o manto da invisibilidade sobre essas questões.
E o tema de hoje é especialmente delicado, é um tema especialmente caro para nós povos indígenas. E eu falo como indígena, falo como tuxá, mas falo também como defensora pública estadual, com atuação criminal no Estado da Bahia. Eu sou Presidenta da Comissão de Povos Indígenas da ANADEP — Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos do País. Nós estamos na linha de frente e vemos todos os dias esse encarceramento acontecer. E, mais do que isso, sentimos na pele todos os dias as consequências desse encarceramento. Precisamos tratar desses problemas, que precisam ser objeto da atividade legislativa desta Casa.
Hoje, quando nós falamos de povos indígenas no sistema penitenciário, no sistema penal, nós temos a Resolução nº 287, de 2019, do Conselho Nacional de Justiça, que é uma iniciativa muito boa, que traz uma previsão muito boa, que traz um procedimento muito interessante. A resolução prevê a figura do intérprete, prevê a necessidade de realização de laudo antropológico, prevê o direito à autodeterminação, prevê a possibilidade de se autodeclarar, prevê a participação da comunidade no processo. O Código de Processo Penal fala sobre a necessidade de se comunicar um familiar sobre a sua prisão, mas a resolução do CNJ vai um pouco além. Ela fala sobre a possibilidade de comunicação da prisão à comunidade, àquele povo.
Quando interpretarmos essa resolução do CNJ, juntamente com o nosso Estatuto do Índio, ainda vigente, a Lei nº 6.001, de 1973, que traz a figura do regime semiaberto, traz a figura da semiliberdade, traz a ideia de um regime especial, de possibilidade de cumprimento de pena, parece que temos no nosso País um sistema específico para receber, para tratar os povos indígenas encarcerados, mas a realidade não é essa.
A partir da minha experiência na Defensoria Pública, eu digo que não é somente porque nós não temos essas garantias asseguradas. É porque o sistema carcerário por si só já é uma máquina de violar direitos, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal como um estado de coisas inconstitucional. Quando nós falamos que quem ingressa nesse sistema é uma pessoa indígena, ele consegue superar os seus limites de crueldade. Não é só o não garantir direitos, não é só o não cumprir a lei de execução penal, não é só o não assegurar as garantias previstas na resolução do CNJ. É mais do que isso, é negar o nosso direito de ser quem somos.
Quando um indígena ingressa no sistema penitenciário, ele não vai só se submeter àquelas condições degradantes que só quem já visitou um presídio sabe quais são. Quando um indígena ingressa no sistema penal, desde a porta de entrada da delegacia — e eu posso falar, porque eu acompanho casos na Bahia de prisões de nossos parentes —, a situação é esta: às vezes, Deputada, já no inquérito, ele precisa retirar o cocar. E é difícil para um cacique que está naquele local injustamente, porque aquela prisão muitas vezes decorre da criminalização pela luta, pelo território, entender que ele tem que tirar aquele símbolo, que ele, uma liderança conhecida e consagrada pelo seu povo e que recebeu dos nossos ancestrais essa função, precisa tirar aquilo porque um policial não entende quem ele é.
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Eu falo aqui também, com muito orgulho, especialmente sobre os povos indígenas do Nordeste. Quando nós falamos sobre o Nordeste, nós precisamos falar sobre o manto da invisibilidade que recai sobre nossas lutas e lutos enquanto indígenas. No Nordeste, parece que isso pesa um pouco mais. Sabem por quê? Porque, quando se fala sobre os povos indígenas do Nordeste, considerando o nosso histórico processo de colonização, de invasão, que começa por lá, percebe-se que o que chamam romanticamente de miscigenação lá já existe há mais tempo. A consequência disso, tão romantizada, é que não se deve esperar encontrar em nossa cara a Tainá da Sessão da Tarde.
Isso gera outro problema. Nós ingressamos ali como indesejados, porque desde Nina Rodrigues, criminólogo que é referência e inclusive dá nome ao Instituto Médico Legal da Bahia, os indígenas e negros são rotulados como os delinquentes natos no sistema brasileiro. Quando nós falamos sobre os povos indígenas do Nordeste na realidade de hoje, nós estamos falando sobre pessoas que ingressam no sistema carcerário, mas que, desde a primeira abordagem, sofrem as consequências desse preconceito, desse racismo, dessa falta de conhecimento por parte das autoridades policiais, que se veem no direito de dizer quem é e quem não é indígena, que se veem no direito de dizer: "Eu não posso fazer constar no inquérito que você é indígena porque você não tem cara de indígena". Eles falam: "Como não tem um documento da FUNAI, isso não vai poder constar no inquérito".
Eu peço licença para consultar os dados oficiais agora de junho de 2023 do SISDEPEN — Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional. De acordo com esses dados, há 1.226 pessoas indígenas no sistema penitenciário estadual. Isso pode parecer muita gente, mas não é. Sabem por que não é? Sabem aquela história de subnotificação de que nós falamos tanto na pandemia? Pois é, ela existe no sistema penitenciário, ela existe muito presentemente no sistema penitenciário.
Essa subnotificação, esses dados aquém da realidade trazem duas consequências. A primeira é que eles demonstram o preconceito e o racismo que nós sofremos em todas as esferas, inclusive no sistema penitenciário. A outra é que essa invisibilidade faz com que nós tenhamos chegado a esta data, sem que haja uma legislação específica tratando de povos indígenas no sistema penitenciário.
Existe a resolução do CNJ, mas é bom lembrar que resolução não é lei. Resolução na pirâmide kelseniana estaria como um ato infralegal, não tendo força vinculante. As chances de essa resolução sem força vinculante que trata de povos indígenas ser observada são muito menores.
Então nós precisamos, Deputada, falar sobre essa invisibilidade dos nossos povos indígenas no sistema prisional, falar sobre as condições do sistema prisional como um todo — porque há um estado de coisas inconstitucional reconhecido não só pelo STF mas também pelo próprio Sistema Interamericano de Direitos Humanos —, que quando se trata dos povos indígenas talvez consiga atingir o ápice da sua crueldade.
Esse espaço concebido como sendo romanticamente um espaço para fins de ressocialização, de aplicação da pena, passa a ser um espaço de crueldade, de punição, de castigo. Quando nós falamos sobre povos indígenas hoje, o nosso sistema penitenciário é uma manifestação da colonização e, principalmente, um dos principais instrumentos para tentar concretizar o ideal assimilacionista.
Obrigada. (Palmas.)
A SRA. PRESIDENTE (Célia Xakriabá. Bloco/PSOL - MG) - Muito obrigada, parentíssima Aléssia, do povo tuxá, Defensora Pública.
Compartilhamos uma Mesa ontem, quando falávamos da luta antirracista.
É importante falar sobre a criminalização de lideranças indígenas. Foi muito violento o que passamos com o Cacique Babau, que inclusive foi interpretado no julgamento do marco temporal no STF.
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Ele dizia que, quando tentaram matá-lo, inclusive não queriam matar só seu corpo. Já havia uma narrativa de criminalização, já estavam colocando drogas também no seu carro para tentar matar a sua história. E ele fala que era tão violento, porque tentavam não somente matá-lo, mas também tirá-lo e ausentá-lo, como parte da luta do nosso povo, criando uma narrativa.
Eu já gostaria de colocar aqui, como encaminhamento desta audiência do dia de hoje, o nosso mandato à disposição, juntamente com a senhora e os demais que compõem a Mesa, para pensar numa legislação específica do sistema prisional carcerário para as questões indígenas a partir de uma consulta pública inclusive. Eu já gostaria de tomar isso como encaminhamento.
Agora eu gostaria de ouvir a Dra. Daniele de Souza Osório, Defensora Pública da União, do Mato Grosso do Sul.
A SRA. DANIELE DE SOUZA OSÓRIO - Boa tarde a todos, a todas e a todes. É um prazer estar aqui ao lado de duas mulheres tão potentes! Sinto-me aluna dessa potência e dessa força que V.Exa., Deputada Célia Xakriabá, e também a minha querida colega, Aléssia, carregam nessa ancestralidade.
Eu quero dizer o quão é importante a representatividade para falar de um assunto que é tão duro e tão difícil. Quando eu ingressei na DPU, eu acreditava que o mais aterrorizante que eu poderia testemunhar seria uma retomada à beira de uma BR lá em Mato Grosso do Sul.
E qual foi a minha surpresa? Além daquilo, que já é muito triste, daquela total sonegação de direitos, existe um lugar escondido, um lugar que é pior do que aquilo, um lugar onde as pessoas são privadas de sua liberdade, um lugar onde elas ficam escondidas em calabouços, porque são verdadeiros calabouços.
Como disse a Aléssia, o sistema penitenciário brasileiro já foi reconhecidamente como um estado de coisas inconstitucional. Nós vivemos, no Brasil, em pleno século XXI, uma situação completamente aflitiva em termos de direitos humanos. E aqui, isso impacta sobremaneira os povos indígenas, sobretudo os povos indígenas que residem ou que são habitantes originários de Estados onde nós temos o maior número de conflitos fundiários.
Nada é à toa. Se nós pegarmos os índices de encarceramento de Mato Grosso do Sul, de onde eu sou proveniente, do sul da Bahia e de Roraima, Deputado Defensor Stélio Dener, nós vamos ver as etnias que são mais apreendidas, que são mais presas, que estão mais encarceradas no Brasil. Nós vamos ter lá guarani-kaiowá, kaingang e macuxi. O Rio Grande do Sul também tem um histórico de violência muito grande aos povos indígenas em relação ao agronegócio. Então, nada é à toa.
Os números são tão aterrorizantes que, se nós pegarmos apenas as condições de Mato Grosso do Sul — o Mato Grosso do Sul, hoje, é o Estado com a terceira maior população indígena do Brasil, só perde para o Amazonas e para a Bahia —, nós vamos ver que o Mato Grosso do Sul, mesmo ocupando esse terceiro lugar, é o Estado que mais encarcera.
Há alguma coisa errada. Um terço dos presos indígenas no Brasil está em celas sul-mato-grossenses. Isso é muito chocante! Desse um terço de presos, a grande imensa maioria é de guarani-kaiowá. Não à toa — e aqui, nós vamos olhar os relatórios que são produzidos para a Corte Interamericana e para o Sistema ONU de Direitos Humanos —, nós também temos uma arguição de descumprimento de preceito fundamental ajuizada pela APIB recentemente no Supremo Tribunal Federal, que coloca essa situação de violência, violência inclusive policial, imposta aos guarani-kaiowá.
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Além desse número maior de encarceramento de indígenas, quando comparado com povos não indígenas, com a população majoritária, vemos a seletividade da atuação policial. Nada é à toa.
Os guarani-kaiowá ocupam territórios não demarcados. O Mato Grosso do Sul concentra pequenas ilhas de reservas indígenas, fixadas ainda por uma política indigenista equivocada do início do século XX feita pelo Serviço de Proteção aos Índios — SPI. Ali essas famílias estão sujeitas a todas as sonegações de direito, saúde, educação, água potável — a Deputada sabe que lá falta água. Lá há um número alto de feminicídios e uso de entorpecentes, porque as comunidades do Cone Sul se localizam na fronteira com o Paraguai. Isso tudo acaba refletindo.
Embora a Resolução nº 287, de 2019, do Conselho Nacional de Justiça, seja, Dra. Aléssia, um importante passo para o reconhecimento de direitos e garantias, não há no Brasil, efetivamente, uma legislação.
Louvo a Deputada Célia Xakriabá por ter colocado seu gabinete hoje à disposição para que esse assunto seja debatido, porque é importante que isso seja feito no Brasil.
O que há é uma total desconsideração das diferenças culturais. Quando o indígena é abordado pela polícia, mesmo no seu território, mesmo na retomada, mesmo na reserva, mesmo na área demarcada, não há qualquer consideração sobre o idioma, a língua materna, os seus costumes e os seus hábitos. A resolução determina que se faça uma coisa simples: a presença de um tradutor. Gente, se eu vou entrevistar, por exemplo, uma pessoa oriunda do Paraguai, eu não preciso de um intérprete de espanhol? Isso é sonegado aos guarani-kaiowá em Mato Grosso do Sul.
Isso não é um achismo. Recentemente, foi feito — a Dra. Viviane, advogada do CIMI que está nesta Mesa, esteve conosco — um mutirão com a Defensoria do Estado de Mato Grosso do Sul, a Defensoria Pública da União, a Pastoral Carcerária e o CIMI para atendimento no maior presídio indígena do Brasil, que fica em Dourados e que conta hoje com mais de duas centenas de homens indígenas. Nós conseguimos entrevistar todos esses homens para tentar entender por que essas pessoas estão presas e se os direitos delas foram assegurados.
Ali nós tivemos a confirmação daquilo que já sabíamos: a imensa maioria não teve respeitado o direito a tradutor e a imensa maioria, quase a totalidade, não teve assegurada a perícia antropológica. Ali havia presos provisórios, mas a grande maioria era de condenados. Não houve uma análise antropológica, e, o mais estarrecedor, alguns não sabiam por que estavam presos.
Uma das coisas mais paradigmáticas não aconteceu comigo, mas aconteceu com uma das servidoras da Defensoria do Estado. Ela teve que explicar para um dos presos que ele estava condenado a uma pena de mais de duas décadas. Até então ele não havia entendido isso. Tivemos que usar os tradutores. Naquele momento ela me disse: "Doutora, eu vi a alma dele saindo do corpo no momento em que ele efetivamente entendeu o montante da condenação".
Então, por uma questão de humanidade, Deputada, nós temos que olhar para essas pessoas.
Obrigada. (Palmas.)
A SRA. PRESIDENTE (Célia Xakriabá. Bloco/PSOL - MG) - Muito obrigada, Defensora Daniele.
O tema é tão importante que nós aprovamos duas audiências para o Mato Grosso do Sul. Como um dos encaminhamentos desta audiência de hoje — vamos estar lá no território, possivelmente na assembleia do povo guarani-kaiowá e na assembleia do povo terena —, eu gostaria que também pudéssemos desdobrar nossa presença para discutir esse tema tão importante e escutar as partes. Quando escutamos uma história tão dolorosa, nós começamos a entender que tem mais gente nessa mesma situação.
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Em Mato Grosso do Sul, há uma situação emblemática de violência. Os atropelos não são acidente. E a outra questão é que, por ser um caso emblemático de violência, a Ministra Cida também criou a primeira Casa da Mulher Indígena. Entendemos também a situação das encarceradas. Quando estão gestantes, há outro processo de violência. A senhora mesma falou que eles nem sabiam, porque a tradução ainda nem havia comunicado qual seria a pena.
Passo a palavra agora, de imediato, para nossa companheira do Conselho Indigenista Missionário, que também tem acompanhado essa pauta.
Tem a palavra a Viviane Balbuglio, representante do Instituto Irmãs da Santa Cruz e do Conselho Indigenista Missionário.
A SRA. VIVIANE BALBUGLIO - Obrigada, Deputada.
Em nome do Conselho Indigenista Missionário — CIMI, nós agradecemos muito o convite para estar aqui, poder falar na presença dos senhores e trazer um pouco da trajetória de atuação no campo da criminalização dos povos indígenas, para pensar o contexto do encarceramento em massa.
Então, nesse sentido, para acrescentar outros pontos às falas da Dra. Aléssia e da Dra. Daniele, um aspecto importante para entendermos um pouco do contexto do encarceramento de pessoas indígenas hoje e da criminalização é também pensar que ele está em conjunto com o fortalecimento das pautas anti-indígenas em todo o campo do Direito.
O campo do Direito Penal tem demonstrado uma renovação diária da tese de integracionismo, principalmente no âmbito do Poder Judiciário. Então, no dia a dia de trabalho, no acompanhamento de lideranças que são criminalizadas — e o CIMI tem, historicamente, acompanhado processos, por exemplo, como o que a Deputada trouxe, do Cacique Babau e de tantas outras lideranças —, nós vemos como a dinâmica da luta pela terra está entrelaçada com a criminalização e com as práticas de repressão e de ausência de políticas públicas nos territórios, por exemplo, acesso à saúde, educação, enfim. Esse é um ponto essencial para enfrentarmos o encarceramento de pessoas indígenas e dos povos hoje, porque isso não impacta só na pessoa que está encarcerada, mas também a família daquela pessoa, a comunidade.
Do ponto de vista do CIMI, nós temos trabalhado essa pauta tanto com as comunidades, mas também com as pessoas que vivem no contexto urbano. Isso se entrelaça muito com outras pautas que debatemos muito em outros lugares, que é o encarceramento da juventude negra. Muitas vezes, isso se mistura, por exemplo, com a identidade indígena, principalmente nas periferias das cidades.
Um ponto para termos em mente e pensarmos em encaminhamentos e políticas públicas é pensar que, quando estamos debatendo pautas como o marco temporal, o acesso ao território, o direito ao território ancestral, a criminalização tem sido utilizada também para impedir esse acesso a direitos. E o Poder Judiciário e outros campos do Executivo têm caminhado nesse sentido, utilizando esse mecanismo do Direito Penal para impedir o acesso a direitos. Então, hoje nós temos normativas como a Resolução nº 287, do CNJ, a Recomendação nº 18, do CNDH, e outras que, nos últimos anos, têm demonstrado um avanço na questão do acesso ao direito ao tratamento jurídico e penal de pessoas indígenas no Brasil. Mas ainda caminham muito pouco e são pouco permeadas nas instituições.
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Alguns dos dados que a Deputada trouxe no início, se eu não me engano, eles são tanto do Governo Federal, mas também de um levantamento que o CIMI tem feito há mais de 5 anos, junto com o Instituto das Irmãs da Santa Cruz, via Lei de Acesso à Informação. E nós vemos que, de início, quando pedíamos essas informações para os órgãos públicos, conforme temos pedido ano a ano, nós vemos mudança, por exemplo, em como a Secretaria de Administração Penitenciária passou a registrar, por exemplo, que pessoas indígenas estão presas. Há sistemas no Brasil hoje que não dão conta da identificação da etnia, muito menos do povo daquela etnia. Então, o problema da subnotificação também se deve a um histórico de uma carga discriminatória, que vem principalmente do histórico de colonização e da ditadura militar, em que as pessoas também não querem se identificar diante da polícia, diante de quem prende, mas também por conta da própria deficiência desses sistemas de informação, dos funcionários das delegacias, das Defensorias Públicas, do Ministério Público, de uma série de instituições que não têm tido acesso também à formação e, com isso, não entendem como no campo jurídico criminal ainda temos muito para caminhar.
A identificação é um primeiro passo, mas, por exemplo, pensar em dotação orçamentária que remunere intérpretes, que faça com que seja possível que especialistas que façam laudos antropológicos tenham acesso a honorários para qualificar o julgamento de um juiz ou, enfim, o dia a dia de uma pessoa na prisão. São medidas de política pública que são essenciais.
Nós temos visto que um processo criminal em que uma pessoa é identificada desde o início, em que ela tem acesso à intérprete, em que ela tem a possibilidade de um laudo antropológico para qualificar o julgamento, tem outro desfecho, muito diferente da realidade que a Dra. Daniele trouxe, que vimos acontecer no Mato Grosso do Sul. No Mato Grosso do Sul, uma das principais pessoas que eu conheci num mutirão, e que me chamou muito a atenção, foi um menino de mais ou menos uns 25 anos de idade. Eu perguntei o nome dele, e ele não conseguia falar o nome dele. E aí fomos entender que ele estava preso por conta de medida de segurança, ou seja, ele não tinha consciência do que aconteceu em relação à prisão dele. Não era para ele estar dentro de uma prisão, assim como nenhuma pessoa indígena deveria estar presa no Brasil, mas, no caso dele, ele deveria estar tendo acesso a um tratamento de saúde, de saúde mental, de entender o que o levou a estar ali. Ele não tinha condições de atestar a realidade do mutirão, daquela prisão, muito menos de responder às perguntas que nós fizemos. Isto chamou muito a atenção: entender a quantidade de pessoas que estão em sofrimento mental e que são indígenas e estão encarceradas num presídio comum, em pavilhões, no Mato Grosso do Sul.
Sob esse ponto de vista, para trazer outros elementos que agregam outras realidades, digo que, por exemplo, em 2017 aconteceu um massacre na penitenciária do COMPAJ, em Manaus. Mais de 60 pessoas morreram. Entre elas — o Ministério Público Federal fez uma investigação e identificou isto —, pelo menos cinco pessoas eram indígenas. E há uma ação civil pública em andamento desde 2017, que nunca teve desfecho na Justiça Federal do Amazonas, para responsabilizar o Estado e a empresa que era gestora do presídio — a Umannizzare, naquela época, porque hoje tem outra nomenclatura — pela morte dos indígenas. Eles estavam presos no seguro da unidade prisional, que costuma ser o lugar onde, diante de episódios de rebelião, as pessoas morrem primeiro. E eles estavam lá porque não havia o espaço segregado para pessoas indígenas. É uma realidade muito complexa pensar que, se a legislação brasileira prevê que medidas alternativas ou que a própria resolução de conflitos dos povos deveria ser respeitada, as pessoas estão sendo presas e expostas à letalidade prisional. Uma pesquisa recente do CNJ, que chama Letalidade prisional: uma questão de justiça e de saúde pública, mostra inclusive dados sobre morte interna e externa de pessoas indígenas no sistema prisional, tanto por conta de causas diretas, quanto de adoecimento. A pesquisa não é só sobre pessoas indígenas, mas este foi um dos recordes que foi possível acessar nela.
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Pensar em estratégias de desencarceramento implica pensar em que a polícia, em que a atuação do Judiciário, em que, por exemplo, a prerrogativa de Parlamentares de fazerem inspeções prisionais têm a ver com a luta pela terra e a luta pela política pública dos povos indígenas em todo o Brasil.
Para trazer uma síntese de algumas medidas que visualizamos como relevantes, devemos pensar que é necessário entender o encarceramento das pessoas indígenas e dos povos, como a Deputada trouxe no início, que mais são encarcerados a partir de uma perspectiva não desatrelada à vida em comunidade, à luta pela terra.
Eu sou de São Paulo, mas trabalhamos com a questão do encarceramento indígena no Brasil todo. Contudo, em São Paulo há um índice de prisões do povo pankararu, e o pankarau é do Nordeste. Por quê? Porque a migração do povo pankararu para o Sudeste é muito comum. Quando chegamos e vemos esses jovens presos, principalmente jovens, verificamos que eles não estão sendo identificados como indígenas, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
Vou concluir trazendo um pouco essa perspectiva de refletirmos mais sobre o que os povos indígenas e os métodos próprios de resolução de conflito, assim como os protocolos de consulta, podem trazer para pensarmos outros tipos de formas de lidar com polícia dentro da comunidade, com encarceramento. O que os ensinamentos ancestrais mesmo podem nos trazer, para repensarmos, entendermos como estruturas, por exemplo, do Reformatório Krenak, de outras perspectivas históricas da ditadura, impactam no fato de os povos indígenas estarem encarcerados hoje, dentro de um cenário de encarceramento em massa do Brasil — esta é uma realidade —, o que, além de subnotificado, é pouco debatido.
Este momento é muito relevante para, a partir daqui, também pensarmos em ações de políticas públicas, inclusive para reduzir... Eu afirmei que nenhuma pessoa indígena deveria estar encarcerada no Brasil, mas, se estão hoje, como podemos reduzir esses danos, do ponto de vista da execução penal, e cobrar os mecanismos de combate à tortura e, enfim, outros espaços para olhar para a população indígena? Como podemos pensar em estratégias de desencarceramento?
Obrigada. (Palmas.)
A SRA. PRESIDENTE (Célia Xakriabá. Bloco/PSOL - MG) - Muito obrigada, Viviane Balbuglio, representante do Instituto das Irmãs da Santa Cruz e Conselho Indigenista Missionário.
Primeiro, traz pontuações aqui importantíssimas. Muitas vezes, essa luta está atrelada à questão territorial.
Eu venho do Estado de Minas Gerais e poucas pessoas conhecem o Reformatório Krenak, que foi um campo de concentração indígena do Brasil inteiro, na época da ditadura militar. Os índios eram levados e torturados. Há casos, por exemplo, de com os de maxakali. O pai de Soli Maxakali acabou fazendo um filme agora. Ela foi encontrar o seu pai só agora, no Mato Grosso do Sul, porque ele era guarani-kaiowá. O povo maxakali, na década de 40, foi reduzido a quase 30 maxakalis. Eles tinham a língua queimada, e os maridos eram separados das companheiras, o que era uma forma de não terem mais filhos.
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Foi feito um estudo pela Comissão Nacional da Memória e da Verdade, somente pesquisado entre 10 povos indígenas — somente pesquisado entre 10 —, mas, se formos extrapolar, foram mais de 8 mil indígenas torturados na época da ditadura militar. Inclusive, nessa concentração do reformatório, colocavam os indígenas para torturar indígenas, a violência da violência.
A outra questão é que nos últimos 4 anos existia uma intenção também. Quando nós falamos dos casos subnotificados, existem dois problemas: um é a subnotificação, mas o que se pretendeu também, nos últimos 4 anos, era fazer um levantamento de indígena encarcerado no Brasil, mas para criminalizar, para dizer: "Está vendo essa população aqui? Elas cometem crimes". É algo muito perigoso para as questões indígenas. Quando acontece isso com determinada classe social ou de identidade, ninguém fala: "Determinado povo é criminoso". Agora, quando é indígena, se uma pessoa vai responder por uma atuação na Justiça, dizem: "Os povos indígenas cometeram esse crime". Então, é difícil usar esses dados como uma forma de criminalização.
Por isso, é importante trazer esses dados de maneira responsável, não para subnotificação, como diz a parentíssima Defensora, mas para que vejamos como tratamos caso por caso, sobretudo, como foi dito aqui, a letalidade, ora por mortes normais, ora por morte provocada.
Como nós temos aqui também uma presença ilustríssima — são muitas defensoras mulheres —, agradeço a presença de Firmiane Venâncio, Defensora-Geral do Estado da Bahia. A Bahia é um lugar onde precisamos discutir vários temas relacionados, sobretudo, a essa violência transversal.
Gostaria de passar a Presidência desta Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais ao Deputado Defensor Stélio Dener. É o primeiro Defensor a ter, até no nome de Deputado, o nome de defensor. É um defensor muito presente aqui na nossa Comissão. Fica o tempo inteiro aqui, de plantão. Eu gostaria de convidá-lo para presidir os trabalhos. Eu vou sair, peço licença, pois tenho uma reunião de bancada, mas eu vou intercalando a presença lá e aqui. É muito importante este tema. Vamos intercalar a participação on-line com a presencial.
Muito obrigada.
O SR. PRESIDENTE (Defensor Stélio Dener. Bloco/REPUBLICANOS - RR) - Boa tarde a todos. Cumprimento os quatro que ainda não ouvimos.
Eu quero, na oportunidade, agradecer a todos os presentes e à nossa Presidente Célia Xakriabá por me colocar aqui na Presidência. Sou o único Deputado que estou aqui, mas é uma honra poder estar no Congresso Nacional como Defensor Público. Entretanto, esta não é a única Comissão de que eu participo, Aléssia. Em virtude de nós sermos Defensores Públicos, nós precisamos ter muitas e muitas bandeiras, porque o Defensor Público e a Defensora Pública estão em todas as políticas públicas que envolvem as pessoas no Brasil todo. Então, a nossa responsabilidade é muito grande aqui. Nós estamos em muitas frentes de batalha aqui no Congresso Nacional e nos esforçamos muito para podermos pincelar com o coração verde os pontos necessários para a Defensoria Pública e para as pessoas do Brasil todo.
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Passo a palavra agora, então, ao Sr. Andrey Cordeiro.
Vou fazer isso porque há pessoas on-line, para mesclarmos um pouco e ouvirmos quem está on-line. Depois retornamos aos oradores que estão aqui presencialmente. Você é o único que está presente.
Então, vamos ouvir agora o Sr. Andrey Cordeiro Ferreira, Vice-Coordenador do Comitê de Laudos Antropológico da Associação Brasileira de Antropologia — ABA.
O SR. ANDREY CORDEIRO FERREIRA - Boa tarde.
Quero cumprimentar, na figura da Deputada Célia Xakriabá, todos os integrantes da Mesa, todas as autoridades presentes, os demais colegas e os representantes de organizações, movimentos e associações. Para mim, é uma grande satisfação e é uma grande honra.
Eu estou aqui falando em nome também do Comitê de Laudos, que é coordenado pelo Prof. Fabio Mura, da UFPB. Nossa associação, a ABA, é atualmente presidida pela Profa. Andréa Zhouri e é uma das associações científicas mais antigas do País. A ABA é muito atuante no sentido do combate à discriminação e da luta pela defesa dos direitos humanos universais e pela autodeterminação.
Eu vou tentar ser bem breve. Basicamente, vou fazer um relato aqui da atuação do nosso comitê e de como essa atuação gera uma agenda que é muito complexa e que está diretamente relacionada ao tema da criminalização e da formação de uma espécie de estado penal específico, que é o estado de exceção para os povos indígenas dentro do sistema penal.
A grande questão que eu gostaria de colocar é esta: o racismo é um problema estrutural. O racismo e a colonialidade é um problema estrutural de fundo, que dá sentido a todos esses problemas e unifica-os. Então, assim, há o racismo, que é extremamente ardiloso e extremamente complexo e apresenta-se, às vezes, sob formas sedutoras; às vezes, sob formas repressoras; às vezes, sob formas de naturalização e invisibilização.
Na atuação do Comité de Laudos, que dialoga diretamente com o Poder Judiciário, especialmente por meio da indicação de peritos, nós nos defrontamos, pelo menos, com cinco formas sistemáticas que aparecem em diferentes tipos de processos, em diferentes maneiras de manifestação desse racismo e dessa colonialidade.
Eu vou falar alguns que são meio óbvios. Então, não vou me dedicar tanto a eles. Existe um racismo global contra os direitos de autodeterminação, a negação do próprio direito dos povos indígenas e dos indígenas de maneira geral. Existe o racismo territorial, que é uma negação ao reconhecimento de qualquer tipo de direito ao exercício da autonomia territorial.
Existem, contudo, três outras modalidades que são extremamente importantes. Existe o racismo parental, que surge dos conflitos nas várias famílias, por meio de sistemas de adoção, de que nós acabamos tendo que tratar também. Existe um racismo na esfera penal, que é o que está sendo discutido hoje e que, eu acho, tem que ser relacionado ao contexto global de conflito e luta por direitos, realizado e protagonizado pelos próprios povos indígenas. Então, esse estado penal também é uma espécie de estado de exceção, como foi mencionado aqui. E se recrudesce num contexto em que os povos indígenas estão tentando lutar para defender ou para ampliar os seus direitos. Então, ele precisa ser contextualizado nesse cenário histórico de fundo. E existe outra forma de racismo, que é a invisibilização, sob a forma do assimilacionismo, sob a ideologia da miscigenação e de vários outros mecanismos.
Acho que se revelam dois desafios. Vou já começar também a amarrar as minhas considerações principais, a partir dessa experiência no Comitê de Laudos Antropológicos da ABA. Há um ativismo discriminatório, que pode estar dentro do Poder Judiciário, dentro das estruturas estatais e dentro da administração pública, mas também na sociedade civil.
16:10
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Além de tudo (falha na transmissão) discriminatório, que é consciente, deliberada e intencional — e, por isso, tem que ser combatida por diferentes tipos de mecanismos de controle social —, existem também as formas cotidianas de discriminação, mais ou menos involuntárias, mais ou menos inconscientes. Isso exige uma agenda de trabalho socioeducativo profundo, exige medidas de ações jurídicas, de constituição jurídica (falha na transmissão).
O SR. PRESIDENTE (Defensor Stélio Dener. Bloco/REPUBLICANOS - RR) - Caiu a conexão? Voltou? (Pausa.)
Então, pode continuar, Andrey.
O SR. ANDREY CORDEIRO FERREIRA - Perdão, Deputado. A conexão está um pouco instável.
O SR. PRESIDENTE (Defensor Stélio Dener. Bloco/REPUBLICANOS - RR) - Pode continuar, Andrey.
O SR. ANDREY CORDEIRO FERREIRA - Só para eu me localizar, até onde vocês conseguiram me ouvir?
O SR. PRESIDENTE (Defensor Stélio Dener. Bloco/REPUBLICANOS - RR) - Foram os últimos 20 segundos só.
O SR. ANDREY CORDEIRO FERREIRA - Está bem (falha na transmissão).
O SR. PRESIDENTE (Defensor Stélio Dener. Bloco/REPUBLICANOS - RR) - Andrey, a nossa assessoria aqui está pedindo para você tirar a imagem e deixar só o seu áudio, para facilitar a conexão via Internet. (Pausa.)
Vamos prosseguir, então. Depois retornaremos com o Sr. Andrey. Concederemos 3 minutos para ele, pois era o tempo que restava.
Eu vou prosseguir e chamar o Caíque, que está presente. Talvez não seja um problema de Internet do Andrey, pode ser nosso aqui também.
Em virtude de a nossa Defensora Pública-Geral da Bahia estar presente e ser a Vice-Presidente do CONDEGE, que é justamente o Colégio de Defensores-Gerais do Brasil, em que estão os 27 Defensores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal, entre homens e mulheres, eu gostaria de pedir à Sra. Firmiane que nos pincelasse algumas coisas.
Esse foi um erro meu. Passou despercebida a convocação para esta audiência pública. Certamente, se eu tivesse visto antes, eu teria indicado um defensor público representante do CONDEGE e também teria sugerido a participação de um promotor de justiça e de um juiz de Direito voltado ao tema. Além de ouvirmos essas pessoas, eles teriam que nos ouvir também e ouvir todos vocês que estão aqui. Perdoem-me.
Nos 8 minutos após a fala do Caíque, se você quiser, enquanto nossa Vice-Presidente do CONDEGE aguarda, pode pincelar algumas coisas para falar, está bem?
O Sr. Caíque é assessor da Secretaria-Executiva do Ministério dos Povos Indígenas. Concedo a palavra a S.Sa.
O SR. CAÍQUE RIBEIRO GALÍCIA - Muito obrigado, Deputado Defensor Stélio Dener, em nome de quem cumprimento as pessoas aqui presentes, em especial a Dra. Daniele, a Dra. Aléssia e a Dra. Viviane.
Sou o Caíque, sou professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e agora estou atuando junto à Secretaria-Executiva do Ministério dos Povos Indígenas.
16:14
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Para mim, é uma alegria poder contribuir, de alguma forma, com essa reflexão, que vem me acompanhando, ao longo dessas pesquisas, da minha formação acadêmica. Eu sou, de origem, professor e pesquisador. Esse é o primeiro desafio de conseguir falar, em 7 minutos, de um tema tão complexo e em que eu estou envolvido há bastante tempo. Eu vou tentar usar um pouco dessa prerrogativa, pois os demais também passaram um pouquinho do tempo, depois do sinal.
Espero poder realmente contribuir com a reflexão, porque é um tema muito complexo, Deputado. A verdade é que, em todo tema que lida com Direito Criminal, normalmente a tendência é simplificar soluções simples, soluções que normalmente partem da norma, da reforma da norma. Quando pensamos no sistema de justiça criminal e povos indígenas, precisamos ter necessariamente pelo menos um contexto, a partir de três chaves de leitura. Eu acho que isso é fundamental, porque pensar o sistema de justiça requer necessariamente um aprofundamento nessa complexidade.
O que eu trago é o resultado de reflexões junto com os meus alunos e alunas, pesquisadores e pesquisadoras com que eu tive contato, indígenas. Um pouco antes de a sessão começar, eu estava ouvindo a Deputada Célia Xakriabá e me lembrei de que, depois de certo caminho acadêmico formal, nas universidades, eu tive, depois de um tempo, a minha melhor aula de Direito Penal, e ela aconteceu dentro de uma aldeia. Essa é uma amostra de que, quando pesquisadores e juristas estão abertos a entender a realidade não apenas a partir da norma, não apenas a partir da parte dogmática, mas também ir a campo e ouvir mais do que falar — a nossa tendência é sempre falar bastante —, esse é um movimento transformador.
Portanto, a primeira chave das três chaves de leitura que eu proponho apresentar aqui — e acho que é dessa reflexão que temos que partir —, é pensar em um novo conceito de justiça. A concepção de justiça que nós temos hoje, que é ensinada nas universidades, é uma concepção que parte de um modelo que foi construído a partir da experiência, da vivência europeia. Parece um detalhe simples, mas na verdade acaba se desenrolando em tantos outros detalhes, e, no fim das contas, é uma grande bola de neve. Talvez, se eu perguntar, a qualquer pessoa que esteja presente, qual é a imagem da justiça, eu tenho bastante segurança de que todos vão imaginar uma mulher segurando uma espada, com um livro na mão, e cega. Isso é utilizado, inclusive, para blindar parte do Judiciário dessa figura meio mítica do que é ser imparcial. Todo mundo se diz imparcial, como se a imparcialidade fosse algo de que se assinasse o termo de posse e, a partir de agora, há uma luz e você se torna imparcial. Na verdade, esse é um conceito ultrapassado, quando começamos a colocar esses elementos da antropologia ou da sociologia, para repensar quais são as práticas dentro do sistema de justiça.
Inclusive, Dra. Aléssia, relembro uma colega da Bahia, a Promotora Lívia Sant'Anna. Eu li um livro dela recente, de 2019, se não me engano. Mesmo depois de um tempo na carreira acadêmica pesquisando, esse livro mexeu muito comigo. Esse livro tem o título A justiça é uma mulher negra. Esse livro desconstrói muito do que é o ideal de justiça construída a partir da Europa, para pensarmos a partir das categorias na América Latina. Será que queremos uma Justiça cega, ou pelo menos formalmente cega? Sabemos que ela não é cega, que ela olha, que ela sabe quem ela está sentenciando. Vemos isso empiricamente nas sentenças criminais. Existem pesquisas já bastante consolidadas que dão conta, por exemplo, de que o fator gênero, raça e etnia é utilizado nas sentenças, normalmente para aumentar pena. Esse é o olhar, ou, melhor dizendo, a venda da Justiça que precisamos começar a tirar, para que a Justiça que desejamos olhe para os fenômenos. Mas isso por si só não a torna imparcial. A imparcialidade não vem do sujeito que está sentenciando, mas de toda uma proteção jurídica à qual normalmente o processo penal vai ter que se ajustar para impedir ou para tentar, como a Viviane comentou, reduzir os danos de uma Justiça que é principalmente etnocêntrica.
16:18
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Bom, essa seria a primeira chave de leitura, e certamente só sobre essa chave de leitura poderíamos falar muito tempo.
A segunda chave de leitura, se pensamos no tema encarceramento indígena, acho que é essencial porque conecta a formação do Estado brasileiro e essa burocracia do Brasil, que é formada principalmente num conhecimento muito dogmático, que é a responsabilidade penal. Eu uso como dois grandes parâmetros o Código Penal e o Código de Processo Penal, que são normas de 1940, então já começamos a suspeitar de que algo vai ser difícil de incorporar em 2023. A responsabilidade penal é historicamente vista como uma responsabilidade individual. É como a foto de um fato criminoso em que se vê apenas aquele fato e aquela pessoa descontextualizada de toda a coletividade a que ela pertence. Quando se trata dos povos indígenas, temos um grande problema, porque a responsabilidade penal, ou a responsabilidade de maneira geral, não é apenas individual, ela engloba toda uma comunidade. O sistema de Justiça, quando ele olha apenas para essa individualidade, ele gera outros danos dentro do sistema.
E a terceira chave de leitura é que precisamos repensar a formação dos juristas do Brasil. Esse é um tema mais do que urgente e que conecta as outras chaves de leitura, porque nós formamos pessoas. Eu sou professor. Temos que cumprir ementa, temos que respeitar certos padrões, mas a verdade é que temos um ensino dogmático, com pouca crítica, que forma pessoas burocráticas, talvez prontas para operar esse direito, mas sem consciência dos efeitos que elas vão gerar dentro do processo.
Com essa terceira chave de leitura, eu queria propor quase um encaminhamento, ou uma reflexão desta audiência, para além das normas já postas. A Resolução nº 287, de 2019, do CNJ; a Resolução nº 454, de 2022, do CNJ; o Estatuto do Índio; a Resolução nº 13, de 2021, do CNPCP, todas essas normas tratam dessa temática, mas a norma por si só já não vai mais dar conta, e nunca deu, provavelmente. Então, precisamos ter um movimento de reflorestar. Quem lida com o movimento indígena, quem está afeto ao movimento, ouve muito sobre reflorestar mentes. Acho que esta audiência pública deve ter a proposta de reflorestar mentes. A subnotificação, de que se falou tanto aqui, ela não é aleatória, ela é escolhida, e com subnotificação o que se gera é invisibilização. Assim não conseguimos construir política pública eficiente, não conseguimos olhar para o fenômeno, e mantemos a população indígena que está no cárcere na mesma lógica de sempre. Um fruto desta audiência talvez seja pensarmos mecanismos de reestruturação das três chaves: uma concepção de Justiça que leve em conta as peculiaridades da América Latina e dos povos indígenas; uma responsabilidade penal que esteja mais afeita às complexidades do século XXI; e uma formação jurídica que permita que as pessoas pensem nesses conceitos e de alguma forma os reproduzam na prática jurídica futura.
16:22
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Eu agradeço imensamente a oportunidade e também peço desculpas, porque estou com o tempo meio apertado aqui.
Estou à disposição.
Obrigado.
O SR. PRESIDENTE (Defensor Stélio Dener. Bloco/REPUBLICANOS - RR) - Ainda falta ouvirmos Ana Lívia, Felipe e Andrey, o restante do seu tempo.
Eu gostaria de provocar de novo a nossa Vice-Presidente do CONDEGE, a Dra. Firmiane, sobretudo porque eu ouvi em algumas justificativas até para esta audiência sobre nós defensores públicos não estarmos em todas as comarcas, nem em todos os presídios. Eu queria que a senhora, com a expertise e a experiência que tem no CONDEGE e na Bahia, onde agora está à frente da DPG, falasse um pouco para nós sobre a Defensoria Pública e sobre esse tema que é tão importante para nós defensores.
A SRA. FIRMIANE VENÂNCIO DE CARMO SOUZA - Boa tarde a todas e a todos.
Eu queria agradecer a oportunidade ao nosso querido irmão Deputado Defensor Stélio Dener.
Quero saudar as colegas defensoras públicas que compõem a Mesa, a querida Dra. Aléssia Tuxá, nossa parenta; a Dra. Daniele de Souza Osório; a Dra. Mônica Aragão, que também é defensora pública na Bahia; a Dra. Clarissa Verena, também defensora pública na Bahia, hoje afastada para estudos de mestrado; a Viviane, a quem assisti com muita atenção; e o Caíque, que igualmente assisti com muita atenção.
Nós temos um grande desafio na Defensoria Pública brasileira, que é fazer os nossos serviços chegarem a todos os rincões deste País. E falo não apenas das Defensorias Públicas Estaduais, porque acho que há um encontro de desafios sobretudo com a Defensoria Pública da União, que tem importância muito grandes na atuação em defesa dos povos originários e tradicionais e, assim como muitas Defensorias Públicas Estaduais, tem um contingente de membros ainda muito restrito.
Fizemos um intenso debate no ano de 2014 para que a discussão sobre a presença da Defensoria Pública fosse intensificada neste Parlamento. Tivemos a aprovação da Emenda Constitucional nº 80, de 2014, que determinou prazo de 8 anos para que todas as comarcas do Brasil tivessem a presença da Defensoria Pública. Não conseguimos atingir essa meta. Temos esse débito com a sociedade brasileira, com os povos originários, com os povos tradicionais. O Estado brasileiro tem o débito de não ter conseguido implementar a presença das Defensorias Públicas em todas as comarcas.
16:26
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Na Defensoria Pública do Estado da Bahia não é diferente. Nós vivenciamos ao longo dos últimos 9 anos, 10 anos, um esforço muito grande para estar presentes na maioria dos Municípios. Nós temos na Bahia 417 Municípios — a Bahia é um Estado de dimensões continentais — e temos 416 defensores públicos em atuação, para 583 cargos. Segundo dados do IPEA, nós precisaríamos ser mais de 800 para chegar a todas as populações, a todos os rincões do Estado da Bahia com um atendimento que gerasse dignidade e com a especialização que muitas dessas demandas que foram tratadas aqui hoje requerem. Felizmente, temos feito um trabalho muito sólido na seleção dos nossos quadros. Os dois últimos concursos da Defensoria Pública do Estado da Bahia — tenho a alegria de ter feito parte dessa construção — são hoje paradigmas para o Brasil, porque fazem uma seleção baseada no estudo da construção do Estado brasileiro. Acho que, de todos os concursos — as minhas colegas aqui podem confirmar —, é aquele que tem a vertente mais decolonial de todos os programas e provas de concurso de seleção. A nossa política de cotas é inclusive um espelho para o restante do Brasil. Também temos a primeira defensora pública indígena nos nossos quadros. E vejam como faz diferença, porque a Aléssia é uma voz que ecoa por todo o Brasil. Ela consegue falar por dentro da Defensoria Pública e também por dentro das comunidades indígenas. Hoje ela vive talvez um dos momentos mais especiais da sua vida, porque ela está dentro da institucionalidade, vivendo as limitações do sistema de Justiça, e ao mesmo tempo ela está lutando contra esses mecanismos que eu costumo dizer que são mecanismos de aniquilamento dos povos originários do Brasil. Há diversas formas de um Estado aniquilar os seus povos originários. A desterritorialização é uma delas, mas o encarceramento, o silenciamento da vida dessas pessoas também é um mecanismo de aniquilamento dos povos originários. Precisamos ter uma visão muito consistente para enxergar esses universos e esses desafios que temos pela frente e também para colocar a visão da Defensoria Pública dentro do processo.
A Defensoria Pública tem um lado quando se refere ao encarceramento. A Defensoria Pública é totalmente contra o superencarceramento, contra o encarceramento. Talvez seja das instituições do sistema de Justiça aquela que mais tem se posicionado ao longo dos últimos anos em defesa de políticas públicas que sejam desencarceradoras. Mas nós sabemos o quanto também sofremos de retaliações, muitas vezes incompreensões institucionais por conta disso. Somos uma instituição garantidora de direitos humanos, defensora de direitos humanos, e não poderíamos ter outra linha, outro norte que não fosse esse.
Quero agradecer a grande oportunidade de estar hoje nesta Comissão como representante do CONDEGE, podendo trazer uma visão que é também do colegiado. Nosso Presidente Oleno está a caminho de Brasília para fazer a defesa de uma pauta importante para a Defensoria Pública brasileira, e tenho certeza de que, se ele aqui estivesse, faria coro com esta nossa manifestação. A Defensoria Pública tem feito, sim, uma reflexão sobre temas extremamente importantes, mas nós precisamos conversar mais e ouvir mais as experiências dos povos originários. Nós precisamos, como instituição do sistema de Justiça, estar atentos e permeáveis a essas realidades, que muitas vezes só são observadas in loco, quando nos propomos a visitar os espaços, a conhecer as comunidades, para a partir daí entender como cada instituição pode cumprir o seu papel constitucional. Acho que a Defensoria Pública brasileira tem se proposto a isso. Fico muito feliz que a Defensoria Pública do meu Estado tenha uma defensora pública como a Aléssia e que conte com essa visão institucional de que precisamos estar próximos das pessoas, próximos das comunidades, para ouvir as demandas e, na medida do possível, fazer o tensionamento com os poderes públicos para viabilizar o acesso de povos originários, de pessoas negras, de todas as pessoas que precisam exercitar a sua liberdade, mas que são, infelizmente, cotidianamente alijadas desse processo histórico no Brasil.
16:30
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Agradeço mais uma vez a possibilidade de fazer esta fala e parabenizo-o novamente, Defensor Dener, pelo seu mandato e pelo trabalho em tantas frentes diferentes, com esse olhar não só para a Defensoria Pública, mas para direitos humanos. É extremamente importante consolidar neste Parlamento a presença de um defensor público, de um Parlamentar que tem uma visão diferenciada daquilo que a Defensoria Pública brasileira ainda pode fazer pelo nosso povo.
Muito obrigada. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Defensor Stélio Dener. Bloco/REPUBLICANOS - RR) - Eu sabia que seria boa essa fala, por isso a provoquei.
Já vou tirar um encaminhamento da sua fala, Firmiane, aproveitando que a Daniele está aqui, como representante da DPU. Eu gostaria que ficasse consignado um encaminhamento — vou falar também com a nossa Presidente Célia. Com todos esses dados que você levantou, nós não podemos aceitar, por exemplo, o retrocesso na Defensoria Pública em relação à possibilidade de caminharmos, ainda que a passos lentos, para uma assertiva mais próxima das pessoas, no Brasil todo. Estou falando das Defensorias dos Estados e da Defensoria da União.
A Defensoria da União está sofrendo hoje a possibilidade de um veto da Presidência da República sobre um projeto de lei de nossa relatoria aqui no Congresso Nacional. Se o veto acontecer, os defensores públicos da União estarão em menos comarcas do Poder Judiciário Federal, ou seja, darão muito menos do seu trabalho às pessoas e às próprias comunidades indígenas.
O encaminhamento que eu faço é para enviarmos um ofício ao Presidente da República e ao Ministro Flávio Dino, com pedido desta Comissão, desta audiência pública, para que não seja vetado o projeto de lei de autoria do Deputado Defensor Stélio Dener sobre a substituição dos defensores públicos que podem estar em outros ofícios, cumulando, porque a Defensoria Pública da União precisa avançar em muito mais comarcas do Poder Judiciário, sobretudo para atender os povos indígenas do nosso Brasil. Este é o encaminhamento que eu faço agora.
Passo a palavra para a Ana Lívia Fontes da Silva, Coordenadora Nacional de Assistência Social da Secretaria Nacional de Políticas Penais do Ministério da Justiça e Segurança Pública. A Ana também está on-line.
A SRA. ANA LÍVIA FONTES DA SILVA - Boa tarde a todas as pessoas.
Como já foi dito, eu estou Coordenadora de Assistência Social, Jurídica e Religiosa. Na verdade, a Coordenação de Assistência Social abarca todas essas assistências. Mas eu vim falar especificamente de um tema que é afeto à Coordenação de Atenção às Mulheres e Grupos Vulneráveis da Secretaria Nacional de Políticas Penais, o antigo Departamento Penitenciário Nacional.
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A Secretaria Nacional de Políticas Penais fomenta políticas públicas voltadas para os Estados e proporciona apoio técnico e financeiro às unidades federativas, considerando também a autonomia de cada Estado a partir do pacto federativo.
No que concerne às pessoas indígenas no contexto de privação de liberdade, a Coordenação de Atenção às Mulheres e aos Grupos Vulneráveis trabalha nessa perspectiva de garantia de direitos, de fomento de políticas públicas e de criação de políticas públicas para essa população.
Eu preparei uma apresentação, mas, considerando que nenhum dos participantes apresentou eslaides, vou tentar fazer um breve resumo do que entendo que é importante falar neste momento.
Como já foi dito anteriormente, a Secretaria Nacional de Políticas Penais também organiza um sistema de informações penitenciárias. Nesse sistema de informações, nós coletamos dados voltados para as pessoas indígenas no contexto de privação de liberdade.
Atualmente, nós temos 1.226 pessoas indígenas nesse contexto de privação de liberdade: 1.147 homens e 79 mulheres. Nós atuamos para tentar amenizar as consequências da invisibilidade do cárcere, porque sabemos que o cárcere é um espaço de muita invisibilidade. Quando se trata de alguns grupos, essa invisibilidade é potencializada. É o caso das pessoas indígenas, das pessoas com deficiência, da população LGBT. Nós temos tentado dialogar com os Estados, para além da questão do repasse de recursos, no sentido de garantir que cada Estado apresente propostas de políticas públicas que garantam o efetivo cumprimento da pena a partir do cumprimento também da dignidade da pessoa humana.
Com relação à pessoa indígena, nós criamos uma nota técnica no ano de 2019. Na verdade, desde quando ingressei nessa Secretaria — eu também sou policial penal —, eu venho tentando dialogar com os Estados, no sentido de demonstrar a importância de trabalharmos os grupos vulneráveis no contexto da execução penal, principalmente identificando essa população. Eu já tive a oportunidade de dialogar com algumas pessoas que falaram aqui hoje, inclusive com a Viviane. Em alguns desses momentos, nós falamos sobre a coleta de dados e sobre a subnotificação que ainda enfrentamos, no âmbito do sistema prisional, em relação às pessoas indígenas privadas de liberdade.
Para que tenham uma ideia, quando nós coletamos esses dados, alguns Estados informam não haver pessoas indígenas custodiadas. No entanto, nós estamos sempre fazendo contato com as Defensorias Públicas e, nesses momentos, conseguimos identificar que, em que pese essas pessoas não terem sido identificadas no sistema prisional, a Defensoria Pública consegue identificar e trabalhar as suas especificidades, a partir da garantia dos direitos dessa população.
Nós entendemos que cada Estado tem as suas condições de estrutura física e de recursos humanos, mas temos tentado, a partir dos repasses do Fundo Penitenciário Nacional, trazer essa importância. Hoje, nós não temos uma porcentagem mínima de aplicação desse recurso nas políticas públicas voltadas para esses grupos vulneráveis. Isso também está sendo um desafio para nós. Está sendo muito importante esse trabalho. Nós entendemos que precisamos direcionar recursos para atender as especificidades dessa população.
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Acima de tudo, eu acho que nós precisamos trabalhar não só a rede de atendimento em relação aos povos indígenas nesse contexto de privação de liberdade, mas também a rede de atendimento de uma forma geral, porque o sistema prisional por si só, sozinho, jamais vai conseguir atender o seu objetivo principal, que é a reintegração social. Ainda temos que melhorar muito para, de fato, falarmos em reintegração social, em ressocialização.
É importante trazermos a responsabilidade não apenas para o sistema prisional, mas também para todas as outras políticas públicas, para todos os outros Ministérios. Por isso, faço aqui o meu convite para que venham conhecer a Secretaria Nacional de Políticas Penais, a fim de que possamos pensar em estratégias de enfrentamento das vulnerabilidades, que são potencializadas no âmbito do sistema prisional.
Eu me coloco à disposição, em nome da Secretaria Nacional de Políticas Penais, para essa discussão, não só neste momento, mas também num momento futuro. Entendo que, a partir do fortalecimento da rede de atendimento, podemos encontrar estratégias que, de fato, podem ser aplicadas, já que o sistema prisional sozinho não vai conseguir esse feito.
Muito obrigada pela atenção.
O SR. PRESIDENTE (Defensor Stélio Dener. Bloco/REPUBLICANOS - RR) - Obrigado, Ana Lívia.
Eu gostaria de mencionar outro tópico sobre o assunto, especialmente em relação a esse emaranhado de leis que nós temos no processo penal e no penal, entrelaçando decisões e termos administrativos utilizados no CNJ e no CNMP, em relação ao sistema prisional e, especificamente, aos povos indígenas.
Eu trago um exemplo do nosso Estado, onde um juiz, interpretando o Código de Processo Penal, teve a coragem de fazer um júri totalmente indígena no Município de Uiramutã. Por que não nos debruçamos sobre as práticas exitosas que ocorreram no Brasil todo e pincelamos proposições aqui no Congresso Nacional? Eu falo isso por ser Defensor Público do júri, com mais de 400 júris em muitos Municípios do meu Estado, onde a predominância é indígena. Eu me refiro a homicídios de índio contra índio, de índio contra branco. Por que não pensamos nessa possibilidade? A lei traz essa possibilidade quando diz que quem deve julgar é a sociedade, mas a sociedade são os seus pares. Como podemos botar uma pessoa que está na sede do Município e que nunca teve sequer contato com a comunidade para julgar alguém que vive distante, em outra realidade? Eu trago esse exemplo apenas para refletirmos.
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Eu me coloco à disposição. Aléssia, Daniele, demais presentes, o meu gabinete está à disposição. O Rafael Lucena e a Brenda, do meu gabinete, sabem que estamos à disposição, porque a matéria é realmente muito importante. Nós podemos tirar proveito desse debate para fazermos grandes reflexões, apontamentos e propostas, para nos debruçarmos sobre o tema no Congresso Nacional.
Passo a palavra ao Felipe Kamaroski, representante da Associação Brasileira de Antropologia — ABA, que também está on-line.
Em seguida, antes de encerrarmos, devolverei a palavra ao Andrey.
O SR. FELIPE KAMAROSKI - Boa tarde a todas as pessoas.
Antes de mais nada, eu gostaria de agradecer à Deputada Célia Xakriabá, à Deputada Sâmia Bomfim e à Deputada Carol Dartora, que me receberam quando, representando a ABA, eu fui a Brasília para tratar desse assunto e levar algumas denúncias específicas em relação ao encarceramento de pessoas indígenas aqui no contexto do Paraná.
Eu sou antropólogo, etnólogo, pesquisador e, atualmente, estou responsável pela Pasta relacionada aos povos indígenas no Governo do Estado do Paraná, que é a Secretaria de Estado da Mulher, Igualdade Racial e Pessoa Idosa.
Como pesquisador, eu tenho me dedicado ao tema do encarceramento de pessoas indígenas faz alguns anos. Nesse contexto, eu tenho produzido laudos antropológicos em casos de indígenas acusados. Quando eu comecei a pesquisar sobre o assunto, o meu interesse se deu por conta do desaparecimento de pessoas. É muito esquisito dizer que o Estado sequestra pessoas, mas chega muito próximo da descrição de um sequestro.
No começo de 2020, eu fui contatado por uma família de Rio das Cobras, que é uma terra indígena aqui no Paraná, para procurar um parente que havia desaparecido já fazia alguns anos. A última informação que eles tinham era que ele tinha ido vender artesanato numa cidade próxima da demarcação do território, da linha final do território, e desapareceu. Nesse contexto, eu comecei a procurá-lo. Eu liguei no IML, liguei no DEPEN. Foi no DEPEN que eu finalmente encontrei essa pessoa.
Eu comecei a puxar esse caso e descobri que existia um certo padrão nesses casos de desaparecimento de indígenas: eles entram no sistema de Justiça criminal e desaparecem.
Eu vou compartilhar a minha tela.
(Segue-se exibição de imagens.)
Este é o processo dessa pessoa que eu encontrei, que puxou todo esse movimento de pesquisa dentro da minha vida acadêmica e me inseriu nesse assunto.
Na parte de cima da imagem, no processo de execução penal dessa pessoa, V.Exas. podem ver que aparece, num primeiro momento, a informação da cútis designada como indígena. Isso é algo muito esquisito, porque a cútis é literalmente a parte mais externa da cor da pele, mas aí está aparecendo como uma questão de identidade. Mais à frente, no mesmo processo, isso muda, e aquela pessoa vira parda. Isso é um padrão nos processos que eu tenho encontrado aqui no Estado do Paraná, principalmente no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Na maioria desses casos, ainda que o contexto de desterritorialização seja inerente ao processo de criminalização dessas pessoas, eles acabam caindo na Justiça Estadual, não na Justiça Federal.
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Na Justiça Estadual, nós vemos um apagamento por completo da pessoa. Ela desaparece do sistema. Nesse caso específico, assim como em outros quatro casos que eu acompanhei como antropólogo designado para fazer o laudo antropológico, houve algo em comum: essas pessoas não tinham mais contato com a família por motivos linguísticos. Elas não conseguiam procurar a família. No momento da produção do laudo antropológico, quando fui a campo para contatar a família e explicar o que havia acontecido com essas pessoas, houve uma surpresa e, em um segundo momento, uma sensação de desespero, porque a maioria das famílias que eu encontrei não tinha acesso a documentos, à produção de documentos. Então, houve toda uma jornada para produzir os documentos dessas pessoas.
Aqui no Paraná, entre os kaingangs, principalmente em Rio das Cobras, existe o hábito de tatuar no antebraço o que seria o nome de registro, para poder assinar documentos, porque o nome usual é o nome indígena, que acaba sendo usado dentro da terra indígena pelo contexto da sociabilidade. Então, no momento em que foi privada de liberdade, essa pessoa desapareceu do sistema por completo.
Esse não foi o único caso que eu encontrei no Brasil. Eu tive contato com alguns casos em São Paulo. Além disso, têm chegado à ABA muitos pedidos de produção de laudo antropológico em que se repetem essas características de pessoas que desaparecem dentro do sistema por motivos linguísticos. A família não tem acesso à pessoa, não sabe onde ela está. Todo o processo de apagamento gira em torno da identidade da pessoa, que não consegue ser reconhecida perante o sistema de Justiça criminal.
Isso vai acabar desembocando na problemática dos dados, que aqui já foi mencionada amplamente pela Mesa. Os dados oficiais que nós temos hoje — ainda que haja muito esforço das pessoas que estão no Ministério da Justiça para produzi-los — não são confiáveis.
Quero lembrar que o Ministério da Justiça, no ano de 2020, produziu a Nota Técnica nº 77, para fazer um levantamento do número de pessoas indígenas encarceradas, das etnias e dos Estados onde essas pessoas estão encarceradas. No Paraná, que foi o contexto que analisei na minha pesquisa acadêmica, constava zero pessoa encarcerada. Então, não teríamos nenhum indígena sofrendo esse processo, mas a verdade é que eu encontrei diversos casos. Isso, mais para a frente, vai gerar um dossiê, que fui convidado a escrever pela Frente pelo Desencarceramento.
Nós apresentamos para o Subcomitê de Prevenção à Tortura da ONU todos esses dados dos casos mencionados. Isso virou uma audiência pública aqui no Paraná para averiguar esses casos. Na ocasião da audiência pública, ficou muito claro que o sistema de Justiça criminal não tem meios para definir e para trabalhar com populações indígenas. Não há pessoal que faça produção de laudo antropológico, não há intérprete, não existe previsão de contratação desses profissionais para o quadro funcional. O que temos é um apagamento geral dessas pessoas, sem a possibilidade de que isso mude num futuro próximo.
Esse "pardismo", ou seja, essa mudança de pessoa indígena para pessoa parda, acabou aparecendo como um padrão em diversos casos também em situações de conflito territorial e de fronteira, principalmente.
No começo deste ano, eu tive a possibilidade de ir a Foz do Iguaçu entrevistar alguns indígenas que estavam em situação de privação de liberdade. Eu encontrei um indígena da etnia nivaclé, do Chaco paraguaio, que andou mais de 600 quilômetros, sofreu violência aqui no Paraná e acabou ficando numa unidade de internação em Foz do Iguaçu, onde não havia intérprete de espanhol. Ele não tinha o domínio do espanhol, muito menos do português. Ele falava mais a língua dos nivaclés. Então, nós tivemos que fazer um esforço para entrar em contato com os responsáveis do DEPEN e para entrar em contato também com a Embaixada do Paraguai. Houve um esforço estatal muito grande para conseguir conversar com aquela pessoa o mínimo que era preciso para saber o contexto social do qual ela saiu.
16:50
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É importante frisar que, como esses casos acontecem muito na Justiça Estadual, não na Justiça Federal, não entram nos dados oficiais. Os dados do DEPEN que nós temos hoje são defasados por esse motivo. Como eles ficam na Justiça Estadual, que analisa, em sua imensa maioria, casos de retomada de território ou de violência, nós não temos um panorama de como acontece essa subnotificação.
Eu acho que, como pesquisador, isso trata mais da forma de conceber o mundo do que propriamente das formas de existir dentro do sistema de Justiça. Isso acaba resvalando também na noção de que o Judiciário, hoje, detém o que seria esse monismo, essa forma de conduzir e produzir razão, como se fosse o único detentor do conceito de justiça. Em Cortes Superiores, eu tenho presenciado casos assim. Ministros do STJ têm defendido teses assimilacionistas frente a casos de violência contra populações kaingangs no Rio Grande do Sul. Isso é muito problemático, porque se trata não só dessas Cortes no âmbito estadual, mas também das Cortes mais altas, no âmbito federal.
Outra questão que tem aparecido nesses casos — 7 minutos é muito pouco tempo para falar. Eu tenho anos de pesquisas nesse tema. É frustrante o tempo, mas enfim — diz respeito aos intérpretes.
Os intérpretes estão inseridos num meio burocrático. Por exemplo, no Tribunal de Justiça do Paraná, você precisa de um documento que comprove que você é fluente naquela língua. No caso dos kaingangs, por exemplo, trata-se de uma língua materna, que é falada só na comunidade. Portanto, não existe um documento burocrático para comprovar para um tribunal ou para uma instância da Justiça que você fala e tem o domínio daquela língua. Então, existe toda uma dificuldade nesses sistemas de informação e nesses bancos de dados de profissionais no Brasil para conceber as diferentes formas de viver e conceber a Justiça.
Por fim, eu gostaria de mencionar que, na Associação Brasileira de Antropologia, nós estamos abarrotados de casos com pedidos de produção de laudo antropológico. Esses casos, geralmente, têm contextos de violência mais extremos. Só que é importante frisar que eles não estão restritos a esses casos mais famosos. Para pegarmos os dados de pessoas encarceradas, nós teríamos que fazer um trabalho no âmbito estadual, ou seja, teríamos que ir a todos os Estados e, nas unidades prisionais, entrevistar essas pessoas; teríamos que ir às comunidades para tentar recolher o número de parentes que estariam encarcerados. É um trabalho gigante, é um trabalho colossal, mas é um trabalho que precisa ser feito, porque hoje nós temos um problema muito sério de dados. Como nós vamos pensar políticas públicas se não conseguimos dimensionar o tamanho do problema como gestores, defensores e proativos no movimento?
Eu vou encerrar a minha fala aqui. Acho que eu excedi o tempo.
Agradeço o espaço novamente. Fico à disposição.
O SR. PRESIDENTE (Defensor Stélio Dener. Bloco/REPUBLICANOS - RR) - Eu acredito que o Andrey voltou.
Eu retorno a palavra ao Andrey.
(Pausa prolongada.)
16:54
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O SR. PRESIDENTE (Defensor Stélio Dener. Bloco/REPUBLICANOS - RR) - Agradecemos a presença de todos, de todas e também dos participantes on-line.
Nada mais havendo a tratar, declaro encerrada a presente reunião, antes convocando reunião deliberativa extraordinária para amanhã, dia 8 de novembro de 2023, às 14 horas, no Plenário 16, destinada exclusivamente a debater e votar sugestões de emendas orçamentárias ao Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias 2024 — PL nº 4, de 2023.
Obrigado às meninas e a todos que estavam aqui.
Encerro dizendo que avançaremos em todos os apontamentos e deliberações, nesta Comissão, juntamente com a nossa Presidente.
Obrigado.
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