4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA 56 ª LEGISLATURA
Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher
(Audiência Pública Extraordinária (semipresencial))
Em 1 de Dezembro de 2022 (Quinta-Feira)
às 16 horas
Horário (Texto com redação final.)
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A SRA. PRESIDENTE (Erika Kokay. PT - DF) - Boa tarde a todas, todos e todes.
Declaro aberta a presente reunião de audiência pública, convocada para debatermos a aplicação, em escolas públicas do Brasil, do jogo Emancipação, que foi desenvolvido pela Profa. Dra. Valeska Zanello como forma de trabalhar questões de machismo e violência contra as mulheres, e também para apresentarmos o livro da autora, A prateleira do amor: sobre mulheres, homens e relações.
A audiência é resultado da aprovação do Requerimento nº 30, de 2022, de autoria minha — Deputada Erika Kokay — e da Deputada Tereza Nelma.
Inicialmente, eu gostaria de fazer a apresentação da nossa convidada e de chamá-la para compor a Mesa. A nossa Profa. Valeska Zanello é psicóloga, pós-doutora em Psicologia, professora e pesquisadora do Departamento de Psicologia da Universidade de Brasília.
Informo a todas as pessoas que nos assistem neste momento que esta audiência pública interativa está sendo transmitida pela Internet, no canal do Youtube da Câmara Federal.
Nossa convidada, que vai nos apresentar tanto o jogo quanto o livro, terá o prazo inicial de 20 minutos para as suas considerações — prazo extremamente flexível.
Agradecendo muito a sua disponibilidade para estar conosco, passo de pronto a palavra à Profa. Valeska Zanello.
A SRA. VALESKA ZANELLO - Boa tarde. Muito obrigada, Deputada Erika Kokay, por sempre abrir espaço para fazermos discussões tão importantes para o avanço da democracia e dos direitos das mulheres no combate à violência.
Vou contextualizar as questões que eu trago no livro A prateleira do amor, que é um livro de bolso desenvolvido a partir do meu livro Saúde mental, gênero e dispositivos, fruto de 13 anos de pesquisa e que eu desenvolvi no pós-doutorado. A ideia é furar a bolha, promover o letramento de gênero, que vou explicar o que é, e chegar a todas as mulheres. Depois vou falar um pouquinho do baralho.
(Segue-se exibição de imagens.)
As coordenadoras do baralho somos eu, Profa. Valeska Zanello, do Departamento de Psicologia Clínica da UnB, e a Profa. Lígia Feitosa, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina e especialista em jogos. Esta é a cara do baralho.
A primeira coisa em que precisamos pensar é o contexto da violência contra as mulheres no Brasil. Isso é chover no molhado, gente. Temos altos índices de violência. O Brasil é o nono país mais violento do mundo, e estamos entre os dez primeiros em quase todos os tipos de violência.
Uma coisa que chama atenção, principalmente nas pesquisas que venho realizando nos últimos 3 anos, 4 anos, é que, toda vez que temos um problema de saúde pública, como, por exemplo, a dengue, nós não cuidamos só das pessoas que foram picadas pelo inseto, mas também nos perguntamos sobre o vetor que transmite a dengue, o mosquito. E qual é a estratégia adotada? Combater o mosquito. No Brasil, ficamos muito focados no público-alvo da violência: mulheres vítimas de violência, mulheres trans, jovens negros assassinados... Precisamos nos perguntar sobre o vetor da violência, e esse vetor, em nosso País, são os homens. Quem mata mulheres são homens, quem mata homens são homens e quem mais se mata também são homens, ainda que mulheres tentem o suicídio, em muitos lugares, de quatro a dez vezes mais. Até na hora de escolher a forma de se matar, a masculinidade adoecida aparece, e os homens escolhem as formas mais letais. Ou seja, o cabra tem que ser macho.
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Outra coisa também importante no contexto é a necessidade de promoção não apenas do combate à violência — e aí eu já penso em quando a violência foi estabelecida —, com fortalecimento do Judiciário, avanços na aplicação da Lei Maria da Penha, grupos reflexivos, mas também da educação e letramento de gênero. Precisamos de prevenção, senão, daqui a 20 anos, a 30 anos, ainda vamos estar discutindo a violência contra as mulheres. A educação tem papel fundamental, o letramento de gênero principalmente. Vamos ver que esse letramento é aprender a nomear e a visibilizar certas situações que historicamente foram tão naturalizadas e que são tão comuns, que não são ressentidas como violentas, mas nem por isso deixam de ter efeitos, muitas vezes deletérios, na saúde mental e no bem-estar das pessoas.
Outro ponto importante também é que a própria Lei Maria da Penha prevê a necessidade, nas escolas, de um projeto de combate ao machismo e à violência de gênero contra mulheres. Não se trata de a escola querer ou não. Isso está na lei. Temos esse espaço, que precisamos ocupar.
Por fim, a experiência no projeto Maria da Penha vai à Escola. Estou no projeto desde o seu início, em 2016, junto com o Dr. Ben-Hur, que era quem o coordenava. Esse projeto é maravilhoso. Quem não o conhece entre, por favor, no site do TJDFT, para ver que ele começou com a formação, primeiro, dos gestores, depois dos diretores e professores e agora está trabalhando com as crianças, em todas as escolas públicas do Distrito Federal.
E precisamos saber o que está por trás do jogo, qual é a teoria. Grande parte dessa teoria está no livro A prateleira do amor, o livro de bolso baseado naquele outro livro, grande, que eu escrevi. Primeiro, a violência contra mulheres tem múltiplos fatores, como os sociais e os econômicos, mas ela tem também fatores subjetivos. Eu venho da psicologia clínica e meu foco é saúde mental e gênero. Como se dá o processo de socialização? Uma coisa importante é destacar que gênero tem sido entendido sobretudo no sentido apontado pela Judith Butler, de performance. Ou seja, desde quando nascemos, sobretudo em sociedades sexistas, à pessoa lida como homem ou como mulher são demandadas performances. Temos ali o exemplo do menino que, se se mostra forte e valente, é aplaudido, mas, se chora, é punido, é vaiado, é mal visto. No caso da menininha, o contrário: se ela se mostra forte, bruta, ela vai ser vaiada; mas, na hora de tirar fotos, se ela for delicada e ligar para a beleza, vai ser incentivada.
Eu concordo parcialmente com essa definição. Realmente, gênero tem a ver com performance, mas aí vem a minha formação clínica e a minha área de pesquisa, a que já me dedico há quase 20 anos. Gênero não é só performance, gênero também é emoção, constituição de emocionalidades. Numa cultura, aprendemos não só a nos comportar de certa forma, mas também a sentir de certa forma e a suprimir outras formas de sentir. Um exemplo que eu gosto de dar para as mulheres é que nós, mulheres, no processo de mulherificação, somos amputadas do nosso ódio. O que nós vemos? Geralmente, quando as mulheres estão com raiva, elas choram; se acontece alguma coisa injusta ou alguém nos ofende, às vezes nem conseguimos responder, e só depois pensamos: "Puxa, eu devia ter falado aquilo". Choramos de raiva de não termos expressado a nossa raiva. Isso é importante. Muitas autoras inclusive vão dizer que o choro das mulheres é a expressão de um ódio impotente. Vemos isso nas mulheres vítimas de violência. O cara bateu, fez um monte de coisa, quase matou a mulher — tentativa de feminicídio —, e ela diz: "Eu vou tirar a medida protetiva, porque, coitado, ele vai ser prejudicado no trabalho". Se esse cara tivesse abandonado essa mulher, provavelmente ele não estaria nem aí. Os homens não têm problema nenhum com agressividade e violência. Ao contrário, eles aprendem a expressar muitas emoções através da agressividade. Essas aprendizagens se dão na cultura. Numa cultura sexista, portanto, faz muita diferença tornar-se homem e tornar-se mulher. Hoje em dia existe uma discussão grande, nos estudos de gênero, com pessoas dizendo: "Não podemos ser binários". A nossa cultura é binária. Isso não quer dizer que naturalmente sejamos binários, mas precisamos de conceitos binários — eu trabalho com binarismo estratégico — para nomear o funcionamento desse binarismo e suas consequências nas pessoas e na sociedade, exatamente para transformar isso. Outra coisa importante sobre as performances e as emoções. Bem, elas são aprendidas. Como? Através das tecnologias de gênero, que são produtos da cultura, como músicas, propagandas, desenhos, séries. Somos bombardeados o tempo inteiro por tecnologias de gênero que nos informam qual é o ideal de performance de emocionalidade, de acordo com a leitura feita sobre nós como homens ou mulheres.
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Um exemplo que eu gosto de dar para as mulheres é o da história A bela e a fera, um script, um roteiro constantemente repetido. Todo mundo já ouviu a história da princesa que se casa com o sapo, ou a da bela e da fera, da menina linda que se casa com um monstro e, com muito esforço, transforma o monstro num príncipe encantado. Mas não vemos o contrário, um príncipe casado com a monstra, ou com a sapa. Isso não existe! Homem não se esforça. Quem tem que se esforçar para transformar o outro e manter a relação — é o que aprendemos — somos nós, mulheres. Não é à toa que mulheres persistem em relações abusivas. Isso também tem a ver com a pedagogia afetiva de que o sucesso da nossa mulheridade é não só arrumar uma relação, ser escolhida — vou falar disso já, já —, mas também manter-se escolhida e mudar o perebado, seja o perebado o que for, o Bruno goleiro, que é um feminicida, ou um cara que fez carreira no alcoolismo, ou um cara que nunca trabalha, que é totalmente dependente e que muitas vezes vai cometer violência patrimonial contra a mulher.
Dito isso, temos caminhos diferentes na cultura no tornar-se homem ou mulher. É aí que eu proponho a teoria dos dispositivos, que está sintetizada nesse livro de bolso. É importante dizer que elas são categorias analíticas. Para aplicá-las, precisamos conhecer a realidade da comunidade. Vamos ver interseccionalidades, como mulheres em situação de rua, mas os dispositivos estarão lá. Quando vamos trabalhar, por exemplo, com mulheres do Sertão, com mulheres camponesas, os dispositivos estarão lá. Porque essas tecnologias se propagam sobretudo pelas mídias, e hoje vivemos sobretudo no mundo da mídia.
Quais são os dispositivos para as mulheres? Os dispositivos amoroso e materno. Vou ser bem sucinta. O dispositivo mais importante, que cria maior vulnerabilidade para as mulheres, é o dispositivo amoroso. Dito de forma muito resumida, isso quer dizer que aprendemos uma forma de amar, no tornar-se mulher, que nos vulnerabiliza, uma forma de amar identitária. Essa é uma frase importante do meu livro: como, na nossa cultura, os homens aprendem a amar muitas coisas, e as mulheres aprendem a amar os homens? As relações heterossexuais já são profundamente assimétricas. Enquanto damos muito, recebemos muito pouco em troca. Os homens lucram com esse tipo de emocionalidade de amor que aprendemos no tornar-se mulher.
Qual é a base, ou a metáfora de base para isso? É que nós mulheres nos subjetivamos na prateleira do amor. Essa prateleira é mediada por um ideal estético, também historicamente construído, que é branco, loiro, magro e jovem. Quanto mais distante desse ideal, pior é o lugar na prateleira. A prateleira é racista. Não é à toa que, pelo IBGE, quem mais remanesce solteira no Brasil são as mulheres negras, porque também se constrói um preterimento afetivo em homens brancos e negros em relação a elas. Elas são dignas, entre aspas, de ser "comidas", mas não de ser assumidas. Junto com elas, mulheres gordas, mulheres velhas... E, quando eu digo "velhas", é preciso pensar nos brasis. Existem lugares no Brasil — eu recebo muitas mensagens nas redes sociais — onde com 33 anos a mulher já é velha, já não é casável: encalhou, ficou para titia. Mulheres indígenas, mulheres com deficiência... Qual é a chancela de sucesso de valor da mulheridade? Ser escolhida. Então, é mais ou menos isto: você pode ser a presidenta da República, mas, se você não tiver um homem, vão dizer: "Nossa, coitada, ela deve ter algum problema". Essa é a carteirinha que temos que apresentar para sermos bem-sucedidas. O dispositivo materno tem como base o que eu chamo de heterocentramento. Existem fortes pedagogias afetivas na nossa cultura que nos ensinam, no tornar-se mulher, a sempre priorizar os interesses, desejos e anseios dos outros, em detrimento dos nossos. O que aprendemos? Primeiro, o outro; segundo, o outro; terceiro, o outro; décimo, eu. E os homens? Os homens são marcados pelo egocentramento: primeiro, eu; segundo, eu; terceiro, eu; décimo, os outros. Vejam que, até na política, quando as mulheres têm algum cargo de destaque, ele geralmente está relacionado ao cuidado. Essa é a única coisa que nos permitem. Poder, dinheiro, infraestrutura, isso é barrado. Aqui, alguns exemplos retirados do livro A prateleira do amor. Este exemplo acho que é muito comum na vida das mulheres em geral. A menina está brincando de videogame com o irmão. A mãe chama: "Maria, vem ajudar a lavar a chuteira do seu irmão, porque ele tem jogo amanhã", ou "Maria, vem me ajudar a botar a mesa", ou "Maria, vem me ajudar a lavar a louça". E ela se pergunta: "Por que eu é que tenho que lavar a chuteira dele?", "Por que eu, nunca ele?" Quem nunca passou por isso?
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Sobre os homens, como eu disse, as masculinidades no Brasil estão profundamente adoecidas. Eu considero essa talvez uma das questões mais importantes para as políticas públicas, e elas são transversais. Por exemplo, na pandemia, Deputada Erika, quem mais resistiu a usar máscara foram os homens, porque o autocuidado fere o ideal de masculinidade. Então, a masculinidade afeta muitos outros setores.
A principal emocionalidade interpelada no tornar-se homem é a objetificação sexual, porque a principal tecnologia de gênero para os homens é hoje a pornografia. E a pornografia é muito ruim, não por algo moral — "Ah, é pecado!" —, nada disso. O problema da pornografia é o tipo de emocionalidade que ela incita, que é sobretudo a transformação do outro ou da outra — é claro que o principal grupo objetificado são as mulheres — em coisa ou pedaço de coisa. Na pornografia se estabelece uma relação hierárquica — isso é muito importante —, e é demandado dos homens que eles demonstrem a capacidade de objetificar sexualmente as mulheres para serem aceitos por outros homens. Exemplo: o pai vai buscar o filhinho na escola. A criança está no parquinho brincando na areia com a amiguinha. O pai pergunta: "Quem é essa?" "É a Mariazinha." "É a sua namoradinha?" Um menino de 3 anos, gente, não tem essa cabeça. Mas o menino já entende que, se ele disser "É", o pai vai responder: "Aê!" Assim, ele já estará pertencendo, se der a resposta certa, a uma casta superior em relação a esses seres inferiores que são as meninas e mulheres.
A objetificação sexual tem menos a ver com o objeto que é objetificado do que com o modo que é ensinado para os homens de se colocar no mundo e nas relações, um modo profundamente adoecido.
Outro ponto importante é que os homens aprendem que ser homem é não ser uma mulherzinha.
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Isso quer dizer que o pilar central da masculinidade — eu falo no singular, masculinidade hegemônica, mas nós temos masculinidades subalternas, que, ainda assim, se pautam pelos valores da masculinidade hegemônica — ocorre sobretudo no imperativo e no negativo: o que os homens aprendem é que ser homem é não ser uma mulherzinha.
Primeiro, por que "mulherzinha" é um xingamento? Já vemos aí uma misoginia. O pilar central é a homofobia, mas, dentro da homofobia, nós temos algo que estrutura, que é a misoginia. O homem gay é entendido como uma mulherzinha. Ou seja, o Brasil, gente, é um país profundamente misógino! Há muitas formas de expressar essa misoginia. A mais comum, que reconhecemos facilmente, é a misoginia direta, discursos de ódio contra a mulher, por exemplo, de grupos neonazistas. Mas existem formas maquiadas — a essas nós precisamos nos atentar, e nós contemplamos isso no jogo —, que não são vistas como misóginas. É aquele tipo de homem que diz assim, no Dia da Mulher: "Sou favorável ao Dia da Mulher, porque eu aaaaaamo mulher!". Isso não é amor, isso é misoginia e objetificação sexual. A expressão mais comum de misoginia no nosso País é a objetificação sexual, e nos confunde, porque não a entendemos como sendo misoginia.
Uma coisa importante é a conformação, é como se constrói essa masculinidade. É na "casa dos homens". Essa é uma metáfora de um autor que eu uso muito, que é o Daniel Welzer-Lang, e a ideia é a seguinte: imaginem uma casa onde, para atravessar de um cômodo para o outro, você é testado por homens mais velhos ou mais competentes em algumas coisas, mas não existe um cômodo final. Isso quer dizer que quem avalia as mulheres na prateleira do amor são os homens. Mesmo o mais "perebado" do "perebado" se acha no direito de nos avaliar. Então, aquele homem mais burro vem te dar um mansplaining sobre algo de que você entende. O cara mais feio... Eu posso dar exemplos? Ou não? É o Paulo Guedes falando da mulher do Macron, que ela é velha. E ele é o quê? Que ela é feia. E ele é lindo? É disso que nós estamos falando. É o Bolsonaro julgar a beleza de alguém. Faltou espelho na casa dele, não é? É disso que nós estamos falando. Então, é aquele homem que tem a barriga de chope e que diz na praia assim: "Nossa, olha ali a baleia!" Oi? É uma coisa comum na vida das mulheres. Estou errada? É comum, comum. Então, qualquer "perebado" se acha no direito de nos avaliar.
Mas quem avalia os homens são os próprios homens, na "casa dos homens". Isso é muito importante. Vejam, o que gere a "casa dos homens" é o silêncio cúmplice. Eu acho que vocês devem ter visto aquele documentário que saiu, O silêncio dos homens. Todo mundo gostou, mas eu não gostei, porque só falou do silêncio em relação ao que os homens perdem — homem não chora, homem... Gente, se homem se abraçar, se beijar e chorar não adianta, não ajuda, não melhora a violência contra a mulher! Tudo o que for para eles ganharem, para eles, está muito bom. O principal silêncio que mantém o sexismo no Brasil é o silêncio cúmplice!
Darei um exemplo. Houve um estupro coletivo na UnB. Não adianta o homem, o jovem vir falar: "Professora, eu não estuprei". Eu vou perguntar: "Mas você denunciou? Você fez alguma coisa para parar? Não? Você é cúmplice". Eu pesquisei, através de vários espiões, os grupos de WhatsApp masculinos no Brasil. Não adianta, se você estiver em um grupo onde o seu amigo compartilhou um nude de uma ex, você achar ridículo, mas ficar calado, porque você não quer treta com o brother. Você é cúmplice. Você sai para tomar um chope na sexta com o seu grande amigo de infância, que fez um sexo casual com uma moça que ele encontrou no Tinder, a menina engravidou, e ele nunca assumiu esse filho. Você o considera um canalha. Mas você já falou isso? Não? Você é cúmplice.
Então, nós precisamos dos homens combatendo o machismo, mas não no holofote, porque o homem adora um holofote, mas o holofote é lugar das mulheres, e temos mulheres de muitas interseccionalidades. Nós precisamos dos homens tretando com o coleguinha na "casa dos homens". Temos que trabalhar essas cumplicidades.
Por fim, eu queria destacar que a violência masculina, em geral, é uma violência virilista.
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A masculinidade se pauta sobretudo no dispositivo da eficácia, que, dito de uma forma muito sucinta, se baseia na ideia da virilidade sexual e laborativa. Ser um "verdadeiro" — entre aspas — homem no Brasil é ser um trabalhador provedor e um comedor sexual. E há a ideia de que comer muitas mulheres ou pegar mulheres bem localizadas na prateleira como um troféu é a chancela dessa masculinidade. E isso começa muito cedo. Nós temos cartas que também acabam contemplando essas questões, a partir da realidade dos adolescentes.
Aí vemos alguns exemplos. A moça está passando, sei lá, no ponto de ônibus, e os caras dizem: "Gostosa!"; "É uma puta!"; "Hahaha!". São coisas comuns, de que temos medo no nosso cotidiano e que independem da nossa vestimenta.
Outro exemplo é o do menino na escola que, pelo trejeito que faz ou por gostar de uma coisa que culturalmente é atribuída às mulheres, como poesia, é chamado de veadinho. Aí é homofobia, mas lembro que o fulcro disso é a misoginia. Então, ele está se aproximando de um grupo que é inferior, que somos nós, mulheres.
Por fim, uma coisa muito comum, também, na cultura do Brasil é quando a mulher liga e fala: "João, meu marido está com você?" E João responde assim: "Está, sim, mas a gente bebeu e ele chapou no sofá". E o amigo a está traindo com outra mulher. Isso é cumplicidade na "casa dos homens".
Então, por que um baralho, que é um jogo?
O baralho é muito dinâmico, é uma espécie de Imagem e Ação, com comandos muito diferentes. Se der tempo, eu vou ler umas cartinhas, como exemplo. Primeiro, é um recurso educativo, é um jogo colaborativo e não competitivo, e traz diálogos sobre situações do cotidiano que mascaram, porque naturalizam, as violências. É como esse exemplo que eu dei. Há uma carta em que os meninos estão dando nota para as meninas. É uma espécie de: "Quem é a mais bonita?"; "Quem é a mais gostosa?". Quem nunca passou por isso em escola, gente?
Além disso, ele promove o letramento de gênero. O que é esse letramento? O letramento de gênero é, primeiro, desnaturalizar, visibilizar essa violência, ou seja, isso que parece comum e que, enfim, é aceitável, deve ser inaceitável, porque é uma violência contra determinado grupo. E nós temos que pensar na violência e no feminicídio como um iceberg. O feminicídio não surge do além, surge de uma violência que chancela essas microviolências e as invisibiliza. É também nomear. Uma das cartas, por exemplo, é essa, em que a menina está lá com o namorado, e o namorado, em um ataque de ciúmes, quebra o celular. O nome disso é violência patrimonial. Está, inclusive, na Lei Maria da Penha. Então, o objetivo do baralho é também ajudar a visibilizar e dar nome.
Através desse baralho, é possível também compartilhar experiências e politizar o sofrimento. O que isso quer dizer? É quando eu estou em um grupo e conto uma experiência, a Erika conta, a Maju conta, e nós começamos a falar: "Ué, gente, mas nós namoramos a mesma pessoa? Não é possível!". Começamos a perceber que não tem a ver com a biografia da Valeska, da Maju; tem a ver com algo que é estrutural. Isso é muito importante, e é libertador. Então, politizar o sofrimento quer dizer que percebemos que não é uma coisa só biográfica, individualizada, e que nós podemos reagir e combater isso de uma forma mais coletiva.
Bom, como foi o processo de confecção do jogo? Eu fiz a eleição das temáticas, a partir dos dispositivos — eu já trabalho há 20 anos com o tema da violência contra as mulheres —, para podermos exatamente, através dessas situações, apertar e mexer com esses gatilhos. Depois nós criamos as cenas e as questões. No final, vou apresentar o meu grupo e o nome de todo mundo. Enviamos, então, esse material para o grupo da Profa. Lígia. Ela aplicou em cinco escolas de Estados diferentes. Foi tudo on-line, porque foi feito durante o período da pandemia. Portanto, não é só um jogo lúdico, mas um jogo que é validado.
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É importante ler a cartilha antes de aplicá-lo, porque está tudo explicado, e as cartas não são aleatórias. Se não atingíssemos com cada carta o que visávamos, nós a corrigíamos, mudávamos o tema, ou seja, pensávamos que a estratégia não tinha sido boa, que determinada situação tínhamos que melhorar, e aí reaplicávamos. Isso aconteceu mais de uma vez. No final, fizemos a escrita da cartilha. Esse foi um trabalho feito com bastante dedicação, durante 2 anos e meio.
Aí temos a cara do jogo. Esse é o design. Fizemos dois designs. Esse é o design comercial, de grande circulação, e fizemos um específico para as parcerias com as escolas públicas, com os TJs, para podermos levá-lo para toda a rede pública do Brasil, se conseguirmos.
Temos aí alguns exemplos de cartas. O baralho é composto por quatro fatores. O primeiro é "raízes culturais do machismo", que são cartas que vão mostrar essas tecnologias de gênero. Só que, gente, não é teórico, é através de exemplos do cotidiano. A ideia mesmo é Paulo Freire, é você sair da realidade dos adolescentes para pensar, refletir e transformar essa realidade. Os outros fatores são: "mulheres e dispositivo amoroso e materno", "homens e dispositivo da eficácia" e "violência contra mulheres".
O jogo pode ser jogado por 2 até 15 pessoas, em geral de 15 a 20 anos — então, é voltado para os jovens, mas pode ser adaptado. Muita gente tem usado o jogo, por exemplo, no atendimento a mulheres vítimas de violência, com grupos de mulheres, porque é isto: é uma situação da adolescência, mas continua existindo até hoje. Por que as mulheres, por exemplo, de 30 anos me dizem: "Eu saio com as minhas amigas, sempre chega algum homem que nunca chega em mim. Minha autoestima vai lá para baixo". Porque isso tem a ver com a terceirização da autoestima no dispositivo amoroso. Então, dá para atualizar e dá para jogar com mulheres e homens mais velhos.
O tempo, se se joga o baralho todo, é de 60 a 120 minutos. Além daqueles quatro eixos, temos as cartas "saiba mais". O que é essa carta "saiba mais"? Vamos supor que tenho lá uma carta do rapaz que é superadorado na escola porque fica com as meninas mais bonitas. A pergunta é: "O que vocês acham disso? Por que isso acontece?" Um dos comandos é: "dividam a turma e discutam". Às vezes o comando é: "encene", "dê outra solução para essa situação". E aí nessa carta tem uma carta "saiba mais", na qual eu falo sobre a questão do acesso à prateleira e por que a virilidade sexual é tão importante para a masculinidade. A carta "saiba mais" é um complemento. Falamos do ciclo da violência, falamos da cultura do estupro, etc.
Dá para jogar o jogo todo ou parte. Vamos supor que um professor — ou um pai, porque os pais também podem jogar o baralho com os filhos — perceba que naquela turma as meninas estão muito ligadas com a questão da beleza. Vimos que o ideal estético constitui uma parte do dispositivo amoroso. Nós mulheres aprendemos muito cedo que o principal capital matrimonial e simbólico que temos como mulheres é o nosso corpo. E o Brasil é um dos países que mais consomem cirurgias plásticas, intervenções estéticas. É bem adoecido isso. Vamos supor que isso esteja muito presente numa sala. O professor pode selecionar as cartas que contemplam essas questões e fazer um jogo menor. Então, o baralho pode ter múltiplas aplicações.
Por exemplo, se está ocorrendo muita homofobia, temos a seguinte carta: o menino está na aula de literatura, sabe um poema, e todo mundo fala: "é mulherzinha, veadinho". Aí temos: por que "veado" é um xingamento? Por que "mulherzinha" é um xingamento? Vamos discutir isso. Dá para fazer uma aplicação de acordo com a realidade daquela comunidade, daquele grupo escolar.
Aí temos a equipe.
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Aqui em Brasília, trabalharam comigo Ana Carolina Martins, Clara Campelo, Letícia Almeida, Thayse Silva e Luma Marcatti. E, com a Profa. Lígia Feitosa, na UFSC, trabalharam Raquel de Barros, que é professora lá também, Amanda Macário, Laura Benedetti, Aline de Oliveira e Juliana Alves.
É isso.
Aqui vemos os nossos contatos. O livro comercial dá para pedir por esse e-mail. E, se der tudo certo, espero que consigamos levar para as escolas públicas, para todas as professoras e professores deste País. (Palmas.)
A SRA. PRESIDENTE (Erika Kokay. PT - DF) - Nós fizemos questão de trazer esta discussão aqui para que ela possa atingir o conjunto dos lugares deste País, porque ela introduz vários conceitos e faz um descortinamento, eu diria. Um descortinamento das relações de violência, que são as violências sexistas patriarcais que existem no nosso cotidiano, e quando são naturalizadas não são percebidas como violência. São as ditas paredes, os tetos de vidro que, ao não serem vistos, não podem ser combatidos. Mas ela também provoca outra reação. E se não se virem os obstáculos impostos pela lógica sexista patriarcal, e não se chegar a determinados locais, a tendência é que a sociedade culpabilize quem não chega, culpabilize as vítimas pelas violências que sofrem.
Eu penso que um dos grandes desafios que estão postos é eliminar os sentimentos de culpa: de culpa porque não está na prateleira, de culpa porque não está nos melhores locais da prateleira, e de culpa porque, muitas vezes, a sociedade impõe uma série de ditaduras, as ditaduras da perfeição. Ela até pode dizer "ocupa o seu espaço público", que não foi pensado para você, o espaço público, porque a lógica de gênero reserva às mulheres os espaços domésticos, que são espaços mais solitários.
Portanto, a Valeska traz um conceito que é o de compartilhar, que é exatamente perceber, "desfulanizar" o sofrimento. E aí se elimina a própria culpa, porque se eu "desfulanizo" e sofro o que você sofre, o que as outras sofrem, se nós sofremos, então eu não sou responsável ou culpada pelo sofrimento que carrego. E nós vamos então perceber que há uma sociedade, uma estrutura social, uma construção de performance, de emocionalidades, como aqui também já foi dito, que faz com que nós tenhamos esse nível de sofrimento. E quando eu falo de culpa, é como se dissesse: "Pode até ocupar seu espaço público, mas a sua casa não pode estar suja, seu filho tem que estar cuidado, e você tem que estar disponível para o seu companheiro, para o seu marido, independentemente de que situação exista". E quantas mulheres se sentem culpadas porque vão trabalhar e os meninos choram, e as meninas choram, porque não percebem ainda que é uma ausência transitória ou uma ausência provisória? E as mulheres vão trabalhar com muita culpa porque, às vezes, sentem: "O que faço aqui? Deveria estar exercendo a minha função de mãe", que são os conceitos que aqui também a Valeska pontuou, da amorosidade, da maternagem.
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Quando a sociedade fala que "a função da mulher é a maternagem", isso provoca uma maternofobia, porque, quando as mulheres estão em postos de trabalho e têm filhos pequenos, elas são, via de regra, preteridas, porque vão se dedicar às suas famílias. Muitas mulheres escondem que têm filhos para disputar um local de trabalho. Escondem que são casadas ou que têm relações estáveis, em função disso.
Então, há uma sociedade que faz com que nós tenhamos a maternofobia, e essa lógica de que a sua função é a maternagem e a amorosidade é, em verdade, uma lógica que exclui as mulheres de ascenderem a determinados postos de poder, porque a sua função é a maternagem. Por isso, têm muita culpa. E eu penso que a culpa é dos instrumentos mais profundos, porque ele é internalizado, ele é invisibilizado, e ele destrói a autoestima. E quando se destrói a autoestima, você tem muita dificuldade de galgar os seus próprios espaços, porque você internalizou uma inferiorização, que é uma inferiorização cultural, em função da lógica sexista e patriarcal. São as discriminações que não conseguimos medir, apenas sentir, mas sentimos de forma muito profunda.
Portanto, os espaços de fala, o próprio jogo... O jogo leva a uma reflexão, então você vai traçando caminhos; você vai abordando, de forma lúdica, uma série de aspectos de uma sociedade que não fez os lutos que deveria ter feito nos seus períodos de desumanização, inclusive no colonialismo. Todas as violências que o País enfrentou sempre foram carregadas por uma violência de gênero. E essa lógica que mencionou aqui a Valeska, que eu acho extremamente interessante, é a discussão de que cabe às mulheres mudar o comportamento dos homens. E as mulheres, muitas vezes, são culpabilizadas porque não conseguiram mudar o comportamento dos homens. Então, uns dizem que é a amorosidade e a transformação. Então, veja que toda a energia e toda a pulsão é dedicada ao homem, ou seja, a mudar o comportamento do homem, e há a culpabilização das mulheres.
Eu já vi muitas culpas, muitas mulheres se sentirem culpadas porque são vítimas de violência doméstica porque não conseguiram mudar o comportamento, ou o uso abusivo de drogas, ou de álcool, enfim, e que vão se despersonalizando em grande medida. Na tentativa de mudar o comportamento ou mudar o homem como uma atribuição que a sociedade coloca naquelas que devem ter a expressão de todas as suas emoções através do amor e da própria dor, as mulheres se sentem culpadas também pelo fracasso das relações amorosas, das relações conjugais.
Então eu acho que não é à toa que no lançamento do livro nós tínhamos uma fila sem tamanho, porque muitas mulheres foram, muitas mulheres foram, muitas mulheres foram ver o livro, estar com o livro A prateleira do amor. É isso mesmo, prateleira onde se colocam as coisas que, de alguma forma, qualquer pessoa que tenha posses pode adquirir, em uma exposição, como se fôssemos coisas ou produtos a serem consumidos pelos homens.
Por isso, é muito nefasto, penso eu, esse projeto, ou programa, feito pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que diz Salve uma Mulher. O conceito já é extremamente equivocado. Então, se as mulheres são salvas, serão salvas pelos homens; são os homens que salvarão as mulheres, nessa concepção. Assim, nós estamos retomando o núcleo de A Bela e a Fera, que transforma, que submete ao sacrifício, porque não se dá importância aos atributos físicos, mas, à amorosidade, assim como nas histórias de A Bela Adormecida, Cinderela, A Gata Borralheira, Rapunzel, em que todas ficaram em profundo sofrimento esperando pelo homem que lhes viesse salvar e resgatar do sofrimento. É a felicidade da mulher como algo a ser construído pelos homens. Então, as mulheres só adquirem a sua felicidade através dos próprios homens, elas não são construtoras da própria felicidade.
17:01
RF
Não tem como se admitir isso! Admiti-se no estado em que foi capturado. O Ministério que defende os direitos da mulher foi capturado pelo antifeminismo, como a Fundação Palmares o foi pelo racismo e a FUNAI pela política anti-indigenista. Então, como admitirmos uma política pública de um Ministério que diz: "Salve uma mulher!", ou termos uma Ministra que diz que nós queremos que os homens abram as portas dos carros para as mulheres, que seguramente não os estão dirigindo, e que são os homens que dirigem os carros e que abrem as portas para as mulheres, desde que elas continuem sem dirigi-los ou não tenham acesso aos próprios carros? São conceitos que se expressam e que nunca se expressaram de forma tão nítida.
Por isso da importância do trabalho da Valeska, que nós conhecemos há muito tempo, que vai pontuando isso e vai traduzindo o que cada uma de nós sente. Todas e todos nós sentimos isso. Ou seja, nós sentimos essas expressões da desconstrução de uma lógica de igualdade de direitos. E a luta é permanente, porque os nossos corpos não são nossos, eles estão em gôndolas ou em prateleiras. Então, a luta é das mulheres para dizer que os nossos corpos são nossos corpos. Os homens nascem com seus corpos sendo seus, e as mulheres lutam todos os dias para dizer que seus corpos são seus e têm que ter as suas regras. Esse é um processo.
É importante levar isso para o ensino médio, que é um ensino para adolescentes, para poder fazer essa releitura, para romper com a naturalização. A naturalização, aqui já dita pela Valeska, impede que você reconheça a violência e ajuda a reproduzir a violência. Ela vai sendo entranhada, ela entranha no tecido social. Os corpos femininos, ou os corpos de mulheres, como não se percebe a violência, é que passam a reproduzir as próprias violências. Há um alerta, ou um descortinar, melhor dizendo, de todas essas formas de violência.
Valeska, eu queria muito dizer que é muito bom ter você aqui, é muito bom você fazer essa apresentação, é muito bom você ter feito esse trabalho. E quero dizer do nosso empenho para que possamos levá-lo a todos os cantos possíveis.
Eu gostaria de saber se tem alguém aqui que queira fazer uso da palavra.
(Pausa.)
Alguém mais quer falar, além de você?
17:05
RF
Você pode se identificar, e depois nós retornaremos a palavra para a Valeska, para que ela possa encerrar e também ler algumas cartas.
O SR. PATRICK FEITOSA SANTOS - Boa tarde!
Eu sou Patrick Feitosa, jornalista da TV Novo Tempo. Queria parabenizar a Valeska e dizer que as futuras gerações com certeza marcarão o seu arroba na luta pelos direitos das mulheres aqui no Brasil, junto com a Deputada Erika Kokay. A minha mãe era vítima de violência doméstica. Em toda a minha infância e na adolescência eu presenciei isso. Por isso, também quero parabenizar, mais uma vez, o seu trabalho.
Eu queria fazer duas perguntinhas, que podem ser divididas também com a Deputada Erika Kokay. Quero saber, Valeska, se você já tem em mente a forma de viabilizar a distribuição do jogo Emancipação e se o livro vai ser distribuído junto, se é através de um projeto de lei ou de uma portaria do MEC, não sei.
A segunda pergunta é algo que tenho sempre em mente: queria que você, se pudesse junto com a Deputada Erika Kokay, explanasse se a religião, principalmente a cristã, tem alguma contribuição para a misoginia no Brasil e, consequentemente, para a violência contra a mulher.
Muito obrigado.
A SRA. PRESIDENTE (Erika Kokay. PT - DF) - Deixe-me ver só se alguém mais quer falar. (Pausa.)
Então, passo a palavra à Valeska, que vai responder, ler as cartas e depois fazer as suas considerações finais.
A SRA. VALESKA ZANELLO - Obrigada.
Patrick, vocês são superimportantes na desconstrução do machismo. Eu não consigo pensar uma mudança social em que os homens não estejam implicados e essa educação para outras masculinidades.
Sobre a questão da viabilização — e até havia falado com a Deputada Érika —, nós estamos vendo as possibilidades. Uma das possibilidades é a parceria com os TJs. Nós já estamos construindo uma parceria com o TJ de Santa Catarina e com o TJ daqui do DF, porque eu sei que o Tribunal tem verba para isso e, pelo Maria da Penha vai à Escola, é possível fazer essa distribuição. O ideal seria que o livro fosse junto também. Eu o lancei há 2 semanas. A ideia é a de que possamos construir essas parcerias e, de repente, tentar algum edital do MEC. Mas eu gostaria muito realmente que esse baralho e o livro entrassem nas escolas, porque eu acho que vai ser um material, um instrumento bem bacana.
A pergunta das religiões é superimportante. Eu não acho que a religião em si seja um problema. Eu acho que a religiosidade, a forma de vivenciar a religião é que é o problema.
Eu já tive pacientes de religiões muito diferentes. Inclusive nós temos grupos progressistas em religiões muito distintas. Por exemplo, mesmo entre os evangélicos, as evangélicas lutam pelo direito à descriminalização do aborto, pelo direito ao aborto.
Então, o problema não é a religião; o problema é quando a religião é usada como projeto político. É isso que nós precisamos combater em nosso País. Ou seja, não acho que está na letra escrita, está muito mais na forma como é interpretada, tentando exatamente manter determinado tipo de poder patriarcal, que subjugue as mulheres e que principalmente tenha o anseio de ganhar um lugar na política e criar regra para todo mundo. Essa é a coisa mais antidemocrática que existe.
É isso. E acho que é possível respeitar as religiões e combater o machismo. Inclusive há grupos, em cada grupo religioso de mulheres, que tentam fazer isso. Nós temos que tomar muito cuidado, às vezes, para não pensar o grupo como um todo. Nós vamos ter divergências mesmo dentro desses grupos, e o problema é o projeto político.
Agora, eu vou ler rapidinho algumas cartas, para dar exemplos. Eu escolhi algumas.
17:09
RF
Olhem só: "Para comemorar seu aniversário, Sofia convidou toda a galera da escola para uma festa em sua casa. Na festa, todas as suas amigas foram abordadas por rapazes que estavam a fim de conquistá-las, menos Sofia. Ela ficou arrasada se perguntando: 'O que há de errado comigo?' O que você diria para Sofia?"
Aqui, temos a questão da prateleira: ser escolhida e sentir-se preterida, porque, quando você fica na expectativa de ser escolhida, a vulnerabilidade é total. Qualquer "perebado" que te dê bom dia, você já se apaixona. Na verdade, você se encanta pelo encantamento do cara. E aí, gente, a chance de entrar numa canoa furada é bem grande.
"Cris e Alex namoram há 2 anos, estão concluindo o ensino médio e desejam continuar os estudos do ensino superior. Cris conseguiu aprovação para uma ótima faculdade, que fica em outra cidade. Alex falou que termina o relacionamento se tiverem que namorar a distância. Divida a turma em dois grupos: de um lado, quem defende que ela deve ir e, de outro, quem defende que ela deve permanecer onde está. Argumentem".
Esta é ótima: "Ana terminou o namoro com o Rafael e o bloqueou em suas redes sociais". Então, nós incluímos muitas violências atualizadas, usando as redes sociais, como pedindo senha. "Rafael criou um perfil fake para continuar seguindo as redes sociais de Ana e de suas amigas, para saber o que ela tem feito. Ele inclusive costuma aparecer nos lugares em que ela está." Isso é stalking, não é, gente? "Ana sente-se desconfortável com a situação, mas tem dúvida se isso não é uma prova de amor. O que você pensa sobre isso? Após responder, tire a carta Saiba Mais nº 1, para complementar o debate." Essa carta é sobre stalking.
"Chegaram os seguintes currículos em uma agência de emprego: Currículo nº 1 - graduação em pedagogia, trabalhou com alfabetização de crianças do jardim de infância; Currículo nº 2 - foi chefe de uma grande empresa de sucesso, ganhou o prêmio de empreendimento Jovem Mais Brilhante. Carlos e Ana são autores desses currículos. Imagine e justifique de quem seria o primeiro e o segundo currículo". (Risos.)
São as raízes culturais do machismo, não é?
Esta aqui também é muito do nosso cotidiano: "Maiara foi ao bloco de carnaval com os amigos e, quando se afastou deles para comprar um cachorro-quente, um rapaz se aproximou tentando beijá-la à força. Um dos amigos dela viu a cena e correu para ajudá-la. Só assim o rapaz parou de assediá-la. O que você pensa sobre essa situação? Há outras situações em que uma mulher só é respeitada quando está acompanhada de um homem?"
Esta é aquela situação que tem no livro, de mostrei a imagem: "Felipe e Marina estão brincando com os primos no aniversário da avó. A avó das crianças chama as meninas para ajudar a preparar o almoço e, logo depois, Felipe vai jogar videogame com o pai. Marina perguntou para a avó por que ela não chamou o Felipe e disse que queria jogar videogame também. Aí vem a pergunta: já aconteceu algo semelhante com você? Após responder, complemente a discussão lendo a carta Saiba Mais nº 6". Essa carta é sobre o dispositivo materno e o cuidado: por que mulheres sempre têm que estar cuidando, estar disponíveis para os outros e deixando os próprios interesses em segundo plano?
Esta daqui é um exemplo de masculinidade: "Eduardo participa de um grupo só de garotos no WhatsApp. Um dia, seu amigo Pedro compartilhou algumas mensagens íntimas que sua namorada tinha mandado. Eduardo não achou correto e se sentiu desconfortável com a atitude de Pedro, mas não fez nenhum comentário sobre o fato. O que você acha das atitudes de Pedro e de Eduardo? Caso a namorada de Pedro descobrisse o que aconteceu, como ela se sentiria? Após responder, complemente o debate lendo a carta Saiba Mais nº 8", que é sobre a cumplicidade entre os meninos e como isso é ser conivente com o sexismo.
Outra sobre a masculinidade: "Marcos ama estudar literatura e poesia. Um dia, a professora fez uma pergunta do conteúdo e ele prontamente levantou a mão para responder. Ao fazer isso, Mateus, um colega da classe, chutou a carteira de Marcos e disse: 'Olha aí a mocinha, que adora ler livrinho'. Todos riram. Em grupo, levante a hipótese do porquê Mateus haver feito esse comentário sobre Marcos". Isso é para trabalhar a questão da homofobia. E as cartas Saiba Mais são cartas explicativas desses conceitos.
17:13
RF
Inclusive, há uma que é sobre a vida da Maria da Penha, e nós sabemos agora que tentaram de novo dizer que ela não tomou o tiro. Não sei se vocês acompanharam nas redes sociais que isso seria uma invenção: o ex dela veio com esse papo de que era uma invenção, que foi um assalto, de novo tentando reacender essa discussão. Há uma carta sobre ela, que fala da vida dela e quem é essa mulher. Há uma carta sobre o ciclo de violência, sobre os tipos de violência.
Enfim, acho que deu para ter uma ideia. O baralho é um instrumento que eu acho bastante potente que dá para chegar aonde precisamos chegar, que é trabalhar a questão das masculinidades e das mulheridades já com crianças, para, daqui a 20 anos, estarmos numa sociedade um pouquinho melhor, menos adoecida, mais democrática e melhor para nós mulheres. (Palmas.)
A SRA. PRESIDENTE (Erika Kokay. PT - DF) - E melhor para todas, todos e todes nós.
Eu queria agradecer muito à Valeska a oportunidade de estar aqui. Nós vamos estar juntos nessa tentativa de disseminar o jogo por todos os cantos do País, onde o espaço é a escola, que é um espaço absolutamente imprescindível pelo seu acesso. Inclusive, é uma das políticas públicas de maior acesso. Mas não só por isso, é porque é diálogo de gente. Não se trata de braço quebrado, de garganta inflamada, trata-se de pessoas, de diálogos entre pessoas com todas as suas emoções, seus sonhos e ausências de sonhos. Por isso que é tão fundamental. Paulo Freire tem razão: educação não muda tudo, mas sem ela nós não transformamos nada. Aliás, é a educação que transforma. Ele também diz: "Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo".
E houve muitos ataques na construção do espaço da escola como um espaço absolutamente importante para a territorialização, porque a escola propicia as condições para dialogar, possui uma capilaridade que outras políticas públicas não têm. Ela dialoga com a comunidade, dialoga com a família, mais do que outras políticas públicas inclusive, e, ao mesmo tempo, ela tem essa inteireza. Ela é um dos elos mais importantes de proteção dos direitos de crianças e adolescentes, porque, quando se lida com a criança e com o adolescente, muitas vezes se identificam as relações de violência que estão dentro de casa.
Por isso, nós nos posicionamos de forma muito veemente contra o homeschooling, porque tira inclusive o direito ao contraditório. A construção de um saber é fruto das teses contrapostas pelas antíteses para a construção de sínteses que viram tese de novo, ou seja, o direito ao contraditório. Até o ponto de vista conteudista, de transmissão de conteúdo, quando é associado à realidade e aos fenômenos humanos, tem uma força maior, mesmo na escola bancária ou conteudista. Mas aí você elimina a condição de um detentor pleno de saber por um ser que não tem saber e que engole os saberes já construídos e prontos. Essa é uma discussão que deve permear, eu penso, o conjunto de políticas públicas.
Acho que temos que avançar na construção de estruturas orgânicas, dentro dos organogramas dos órgãos públicos ou das políticas públicas, para a discussão de gênero. Seria muito importante levar também esse baralho para as mulheres no campo, para as adolescentes do campo, das águas, das florestas, enfim.
17:17
RF
É muito importante que nós tenhamos, no Ministério do Desenvolvimento Agrário, uma estrutura para cuidar de políticas de gênero, também no Ministério da Cultura, no Ministério da Saúde, no Ministério da Educação, onde já temos a diversidade, mas que nós tenhamos estruturas, dentro do organograma, para fazer a discussão de gênero, porque não é uma discussão menor. Ela é estruturante. A desigualdade de direitos, ou a falta de equidade de gênero, não se resolve a partir da resolução de outras lutas, mas ela é parte integrante de todas as lutas. Portanto, não é cereja de bolo, não é efeito colateral. Ela é estruturante para a construção de uma democracia. A Valeska traz as masculinidades tóxicas, ou as masculinidades que se apresentam, e esse caráter tóxico não é ensimesmado também, ele vai deixando essa toxicidade no conjunto das relações. Por isso, a importância dessa experiência.
Eu queria te agradecer, Valeska, pela oportunidade de você estar aqui. Nós nos colocamos, nesta Comissão, absolutamente à disposição para que nós possamos levar essa reflexão e essa experiência do baralho, da prateleira do amor, a todos os cantos — às escolas, sem nenhuma dúvida — em todas as políticas públicas. Eu penso que nós também temos que construir uma coisa mais estruturada, um fórum ou um comitê, do conjunto das políticas públicas com recorte de gênero, com a participação da sociedade civil. Eu acho que são demandas que estão postas para que nós possamos dar mais organicidade, mais permanência, e que possamos, então, levar experiências como essa, que têm que chegar a todos os cantos. É Saiba Mais. Saiba Mais, mesmo, para que nós saibamos do stalking, para que nós saibamos das diversas formas de violência.
A Lei Maria da Penha contribuiu muito para a identificação de outras formas de violência que não deixam marcas na pele. Mas eu lembro que as pessoas encaravam a violência associada apenas à violência física, e eu penso também que as violências se retroalimentam. A violência psíquica estará em todas as formas de violência de gênero, e não só nas diversas formas de violência doméstica já tipificadas na Lei Maria da Penha, mas na violência política de gênero, na violência institucional de gênero, na violência obstétrica. Todas as formas de violência são perpassadas por uma violência psíquica, por um sofrimento psíquico.
Eu digo isso porque ontem nós lutamos muito para que não houvesse uma exceção no caso dos militares autores de violência doméstica quanto à manutenção das suas patentes, bem como esta decisão — se eles continuariam ou não com as patentes — ser transferida para a Justiça Militar, e não para a Justiça Comum. Nós lutamos muito por isso. E um dos argumentos ditos era o seguinte: "Não, mas vejam, é o salário dele que ajuda a mulher. Nós não queremos tirar a patente dele, ou dificultar a retirada da patente, porque quem vai ganhar é a mulher, pois ele é o provedor". É o raciocínio, primeiro, da lógica de provedor de mulheres com atividades domésticas e, segundo, de que a violência doméstica também dialoga com a violência patrimonial. O homem que tem na violência doméstica esse processo de desumanização não estará preocupado em manter uma autonomia financeira dessa mulher. As violências se retroalimentam. Portanto, agradecemos mais uma vez, Valeska, a oportunidade de tê-la aqui.
17:21
RF
Nós nos comprometemos a fazer o que for possível para trabalharmos pela disseminação desses instrumentos, que eu acho importante que nós possamos levar para a equipe de transição, ao GT que está discutindo a política das mulheres — e eu faço questão de fazê-lo. Teremos a preocupação para que estes instrumentos, do baralho e do livro, mas particularmente do baralho, sejam disseminados em todas as políticas públicas e em todos os espaços, bem como essa discussão com o novo Governo, tanto do ponto de vista do MEC, quanto do ponto de vista também do Ministério. Nós queremos um ministério, nós queremos resgatar um ministério próprio de políticas para as mulheres, com orçamento e com condições de fazer essa política, e queremos levar o livro e levar também o baralho para esse Ministério.
Então, agradecendo muito a presença de todas, de todes e de todos que participaram deste evento, eu encerro a presente audiência pública. (Palmas.)
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