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A SRA. PRESIDENTE (Erika Kokay. PT - DF) - Declaro aberta a reunião extraordinária de audiência pública da Comissão de Cultura, para discutir o reconhecimento do Mercado Sul Taguatinga como patrimônio material e imaterial do Distrito Federal e a desapropriação de espaços vazios para uso comunitário.
Esta audiência realiza-se em atendimento ao Requerimento nº 91, de 2021, de minha autoria, Deputada Erika Kokay.
Nós convidamos para esta audiência pública: o Sr. Paique Duques Santarém, antropólogo; a Sra. Liza Maria Souza de Andrade, representante do BR Cidades/UnB/Projeto Casas; o Sr. Webert da Cruz, representante do projeto Retomar para Reinventar; a Sra. Ingrid Martins, representante da Candanga Assessoria Popular; a Sra. Rita Andrade, representante do Conselho de Cultura do Distrito Federal; o Sr. Cid Aroeira, representante do Mercado Sul Vive, mestre de samba de roda e capoeira; a Sra. Daniela Zambam Rodolfo, representante da Secretaria de Cultura do Distrito Federal e Diretora de Preservação da Subsecretaria do Patrimônio Cultural; o Sr. Ronan Ferreira Figueiredo, Defensor Público do Distrito Federal; e a Sra. Giuliana Leticia, produtora.
Nós vamos seguir a ordem dos convidados que foi anunciada. Esta é uma audiência híbrida, ou seja, parte dos participantes estará aqui presente e outra parte se comunicará pelo sistema virtual. Vamos, então, destinar o tempo de 5 minutos para cada um dos participantes, depois vamos colher as sugestões que porventura possam existir e devolver a palavra, por um prazo de 2 minutos, para cada um dos nossos convidados e das nossas convidadas.
Dando início a esta reunião, se alguém quiser a prioridade de fala, em função de agenda, basta entrar em contato conosco. Passo, de pronto, a palavra ao Sr. Paique Duques Santarém.
Antes, porém, eu gostaria de fazer a minha audiodescrição. Eu sou Erika Kokay. Tenho cabelo curto e grisalho, com mechas louras. Uso uma máscara branca, um brinco vermelho e um vestido estampado. Estou aqui na sala da Comissão de Cultura, atrás de mim há uma parede na cor gelo e uso óculos com aro vermelho.
O SR. PAIQUE DUQUES SANTARÉM - Boa tarde. Agradeço o convite e o espaço aberto, Deputada Erika Kokay, para fazermos na Câmara dos Deputados este debate sobre o Mercado Sul Taguatinga como patrimônio histórico e cultural do Distrito Federal.
Vou pedir que coloquem a apresentação que trouxe para ser exibida na Câmara. Talvez a apresentação passe um pouquinho de 5 minutos.
Enquanto não abre a apresentação, vou me apresentar. Eu sou antropólogo, militante e participante do movimento Mercado Sul Vive, que é algo que está ali no território um tanto anterior à minha presença, um tanto anterior à minha participação. Sou antropólogo e participo de alguns processos e de alguns debates acerca do patrimônio histórico e cultural do Brasil e do Distrito Federal.
Não somente eu, mas também toda a comunidade do Mercado Sul percebeu a importância de apresentar este debate, de apresentar esta proposta para o Mercado Sul ser reconhecido como patrimônio histórico e cultural do DF. Trata-se de algo fundamental porque o Mercado Sul já é um patrimônio histórico e cultural do DF, o que falta é o reconhecimento.
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(Segue-se exibição de imagens.)
Na qualidade de membro do movimento Mercado Sul Vive e por ser antropólogo, quero trazer este debate congregando estes dois conhecimentos: o conhecimento técnico, social e político e o conhecimento de causa, por estar ali.
O Mercado Sul hoje é um patrimônio histórico e cultural do Distrito Federal e do Brasil. Ele tem uma importância local, nacional e internacional que tem que ser reconhecida e apoiada pelos diferentes entes, tanto do ponto de vista distrital quanto federal, e, inclusive, por entes internacionais. Então, a ideia de apresentar este debate aqui é focar no debate distrital porque há passos para começar esse processo, para começar esta conversa de o Mercado Sul vir a ser considerado um patrimônio.
Nós estamos falando de um território localizado em Taguatinga, no Distrito Federal, que foi criado alguns anos antes de Brasília ser construída. O Mercado Sul, assim como Taguatinga, foi criado no processo de construção do Distrito Federal e preserva boa parte de suas características, apesar de ter passado por transformações, do ponto de vista de edificações, de relações sociais, de relações culturais e de relações econômicas. Então, ele tem uma continuidade histórica, não se trata de um território que foi desconfigurado. E, claro, desenvolveu suas próprias tecnologias.
Por isso, a comunidade presente no Mercado Sul nos diferentes processos de organização, eventos culturais, ecofeiras, assembleias, pontos de cultura,
discutiu a possibilidade e a necessidade de o Mercado Sul ser reconhecido como patrimônio histórico e cultural do DF. Ele já é patrimônio histórico e cultural do DF, mas isso passou a ser uma demanda porque estamos num processo de ataque, em diferentes territórios do DF, da especulação imobiliária de diferentes setores que buscam desconfigurar e desarticular territórios culturais em todo o Brasil. Então, por isso, a comunidade do Mercado Sul apresenta esta proposta.
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Nós temos um processo, no caso, distrital para que o Mercado Sul tenha esse reconhecimento. É um processo recente da SUPHAC — Subsecretaria do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural, da Secretaria de Cultura, que tem fases: o requerimento, a avaliação da comissão técnica, a abertura do processo, o dossiê, a avaliação do Conselho de Patrimônio, o decreto e, depois, a inscrição no livro correspondente à categoria do bem. Há outros patrimônios históricos e culturais tombados no Distrito Federal como, por exemplo, o Cine Brasília, o Clube do Choro e o Boi do Seu Teodoro, e o Mercado Sul se inscreve nesse processo.
Quanto à legislação, existem a Lei Orgânica do DF, a Lei Distrital nº 3.977, de 2007, que institui o registro de bens culturais, e o Decreto nº 28.520, de 2007.
Nós temos aqui as formas de fazer o tombamento, para promover a conservação e evitar a destruição e a descaracterização dos bens, e de fazer o registro, para documentar e acompanhar a dinâmica de manifestações culturais registradas e fomentar ações de apoio, promoção e divulgação dos bens registrados. O Mercado Sul se encaixa nesses dois processos porque há edificações ali que têm que ser preservadas, os prédios, etc., e há manifestações culturais e formas de diálogo e de transmissão de conhecimento que também têm que ser acompanhadas, documentadas, incentivadas e apoiadas pelo Estado, apoiadas pelo conjunto da sociedade.
Então, ao compreender isso que está acontecendo, nós estamos montando uma equipe para preencher os documentos e enviar o processo à SUPHAC para que o Mercado Sul seja tombado como patrimônio.
Ao fazer esse processo, nós entendemos que, além de uma série de registros culturais, além de uma série de registros orais, além de uma série de fotografias, de filmes, de áudios, de sons e de objetos produzidos lá no Mercado Sul, já existe uma vasta bibliografia acadêmica sobre o Mercado Sul. Nós temos um levantamento de 15 a 20 trabalhos feitos sobre o Mercado Sul do ponto de vista acadêmico. Três deles nós vamos destacar porque inclusive, de alguma forma, estão presentes no nosso processo: a ação civil pública da Candanga Assessoria Popular, que apresenta uma descrição do Mercado Sul e propõe que ele seja registrado como patrimônio do Distrito Federal; o trabalho Retomar para Reinventar, do Web, que também apresenta o registro do patrimônio, além de uma série de dados recentes sobre o Mercado Sul; e o relatório do Projeto Casas — a Liza vai apresentá-lo agora também —, que é um relatório urbanístico das edificações e do processo social do Mercado Sul. Com base nesses três documentos, nós já podemos compreender a complexidade e a importância do Mercado Sul. Então, nós estamos fazendo essa revisão bibliográfica e vamos fazer o preenchimento dos bens.
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Os lugares. Nós estamos falando da Tempo Ecoarte, que é um espaço do Mestre Virgílio de confecção de bens de papelão, do Forró do Tiagão, da Sônia Comedoria, do Invenção Brasileira, do Bicuda, do Bar do Iran. Nós estamos falando de uma série de espaços dentro desse território que tem uma importância histórica, recente e ancestral para o Distrito Federal, para Taguatinga e para si próprio. E esses lugares só têm sentido se forem pensados juntos. Então, nós estamos falando de um conjunto de um território que tem vários lugarzinhos onde muita coisa interessante, maravilhosa, mágica e encantada acontece.
Os objetos. Há uma série de coisas: os mamulengos, a perna de pau, os instrumentos de papelão, as bicicletas, os canteiros, as composteiras, etc.
As celebrações. Temos a ecofeira, os festivais de mamulengo, as rodas de capoeira, a feira, o brechó, o futebol de golzinho, as brincadeiras das crianças na rua, os carnavais, as rodas de conversa, as rodas de troca de experiência, os encontros de oficina de software livre. Há uma série de coisas que acontecem nesse espaço e que são muito diversas.
Há, é claro, as formas de expressão do Mercado Sul: o mamulengo, o grafite, o lambe-lambe, a xepa, a forma coletiva de cozinhar, o coco, a capoeira, a brincadeira infantil, o jongo, o forró, o tambor, o cineclube, a reciclagem.
Tudo isso faz do Mercado Sul um espaço com saberes, diversos saberes, que estão conectados com os saberes de todo o Brasil e de todo o mundo e um espaço próprio, como se fosse um laboratório constante de uma série de experiências que se interconectam, uma série de experiências que dialogam entre si constantemente e que fazem um espaço de saber, um espaço de manutenção, um espaço de reserva e de memória cultural e também um espaço de criação cultural e tecnológica. Essa característica do Mercado Sul tem que ser entendida para que possamos urgentemente manter e incentivar o Mercado Sul como um espaço de criação cultural importantíssimo para o Distrito Federal. Então, nós não estamos falando só de uma comunidade que tem que ser preservada — é também isso. Nós estamos falando que preservar o Mercado Sul é preservar o Distrito Federal, é preservar a cultura, é preservar o Brasil e o mundo.
Aqui nós temos o como participar: assinar o documento a ser enviado à SUPHAC, ou seja, entidades, Parlamentares, grupos, organizações que queiram podem assiná-lo, porque ele entra coletivamente, já com um reconhecimento social grande; ajudar a preencher o documento técnico, já que nós estamos aceitando o que houver de coisas, documentos ou ferramentas para apresentar e somar conosco — nós estamos fazendo isso em forma de mutirão, porque é assim que se faz no Mercado Sul, tudo é de forma colaborativa e coletiva; e também falar com as autoridades, falar com outros setores para sensibilizá-los. Além disso, há que se fazer uma mobilização ampla.
Nós fizemos um documento. Pelo tempo aqui, acho que vou me estender demais se eu fizer a leitura, mas ele vai ser divulgado. Nós fizemos uma lista de 20 motivos pelos quais o Mercado Sul é um patrimônio. Não, eu vou ler. Acho que vai levar 3 minutos. Vai dar tempo, sim. Então, eu vou ler aqui o documento que produzimos.
Ele é patrimônio porque é uma construção antiga de Brasília, pelas tecnologias sociais lá desenvolvidas.
É um espaço de trajetória e história viva no DF, que traz ao debate de patrimônio o desafio do tempo. Ele é um território que tem 1 ano a mais que Brasília, numa cidade que é patrimônio pela tecnologia que tem, mas não pela sua ancestralidade e história. O Mercado Sul, criado 1 ano antes de Brasília, traz
uma ancestralidade e uma história de séculos da cultura negra, da cultura indígena, da cultura popular e das diferentes culturas ancestrais.
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Foi criado com a função de mercado, feiras, pontos de trocas e relações. Até hoje mantém essa característica, e um dos mantenedores dessa prática é o movimento cultural ali instalado que, além da feira livre, desenvolve outras formas de feira.
É um território que ativa e mantém viva a memória de quem por esse espaço circulou e habitou em outros tempos. É um ponto de encontro de memórias de muitas pessoas que transitaram por ali.
É um território que conta outra história da construção do Distrito Federal, não só a história modernista dos grandes arquitetos, etc. A história do povo que fez por si próprio, de baixo para cima ou de baixo para os lados, um território vivo. É um território de confluência de imigrações culturais diversas que possibilita organização, desenvolvimento e rearticulação de culturas populares diversas de todo o Brasil, cujos brincantes se encontram no DF.
É um espaço que funciona como uma embaixada cultural do Distrito Federal. O Mestre Chico Simões está aqui. Por exemplo, o Mamulengo tem uma estrutura de organização muito grande, e o Mercado Sul é um território fundamental, inclusive para o tombamento e para o reconhecimento do patrimônio em todo o Brasil.
O Mercado Sul é um espaço que possibilita que as pessoas contem suas próprias histórias porque essas memórias não podem ser perdidas, elas estão escritas nas edificações, nos prédios do Mercado Sul. Então, lutar pelo futuro do espaço é lutar contra um processo de apagamento da memória.
É patrimônio pela sua forma de existência enquanto território com pessoas que circulam nas ruas que existem com tecnologias sociais próprias e ocupação de espaço urbano.
E há inovações, porque a juventude periférica LGBTQIA+ e a juventude de todo o Distrito Federal negra se organizam e constroem novas tecnologias ali. Chega gente do mundo inteiro e procura o Mercado Sul para conhecer as tecnologias ali presentes. Lá, se falam muitas línguas.
E aí agora vai ser a última, garanto: é um espaço da cidade, onde essas crianças podem brincar na rua. Um território que, por outro lado, não tem assistência estatal e que faz a sua própria salvaguarda. Então, a salvaguarda estatal coletiva e social do espaço ajudará ao acesso aos bens públicos e à própria comunidade a ter acesso a uma série não de benefícios, mas de direitos que a sociedade conquistou do ponto de vista da saúde, da assistência social, de uma série de outros direitos que nós temos conquistado como educação, transporte, etc.
É um espaço com uma dinâmica própria na economia da cultura do DF, com tecnologias específicas de organização e difusão da produção cultural. É uma escola de organização e produção cultural local, com características próprias. Claro, existem outras, mas tem suas especificidades.
As edificações do Mercado Sul têm as mesmas características de sua construção, são decoradas e utilizadas com uma grande galeria artística a céu aberto, sendo um mural urbano e cartão postal vivo da cidade. É parte de uma ampla rede de territórios do Distrito Federal que estão em luta em reconhecimento pelo seu valor.
E há uma forma específica de morar, habitar, conviver no espaço que é genuína e é referência para outros territórios.
Apresentei aqui esse conjunto de reflexões que nós coletivamente elaboramos durante esse processo para fazer apresentação do Mercado Sul como patrimônio. Sei que há outras apresentações, as pessoas que vêm aqui têm muitas questões a colocar. Então, espero que quem esteja vendo isso on-line continue acompanhando o processo e somando-se a ele. Repetindo, o Mercado Sul hoje já é patrimônio histórico e cultural do DF, mas ele precisa urgentemente ser reconhecido como tal.
Deixo uma provocação final: talvez não devesse o Mercado Sul — e nós entendemos o processo de participação — ter de ir atrás e procurar o Estado para ter esse reconhecimento.
O Mercado Sul, é claro, tem que participar disso, mas o Estado já deveria ter procurado o Mercado Sul há um bom tempo, para reconhecê-lo como patrimônio histórico e cultural.
Agradeço a todos. Muito obrigado.
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A SRA. PRESIDENTE (Erika Kokay. PT - DF) - O Mercado Sul vive.
A SRA. LIZA MARIA SOUZA DE ANDRADE - Olá. Muito obrigada, Deputada. Você é sempre muito atuante, está presente nas nossas lutas. Eu sou da Universidade de Brasília, sou professora, mas represento o Projeto Brasil Cidades também. Lutamos por cidades mais justas, sustentáveis.
Lembro aqui a Agenda Urbana Popular Participativa, da qual o movimento Mercado Sul participa conosco. Foi realizada neste ano a live Política de cultura, arte e educação, para contribuir para a revisão do plano diretor.
O Mercado Sul faz parte desse patrimônio cultural. Esse patrimônio cultural também está interligado com a Agenda 2030: Cidades e Comunidades Sustentáveis. O ODS 11 visa tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis. Esta é a Meta 11.4: fortalecer as iniciativas para proteger e salvaguardar o patrimônio natural e cultural do Brasil, incluindo seu patrimônio material e imaterial.
A Superintendência do IPHAN — em 2015, começamos a fazer o trabalho de extensão com a ocupação cultural do Mercado Sul Vive — considera a manutenção do espaço apropriado por grupos de praticantes de atividades culturais como algo de grande valia para o exercício da cidadania. Começamos então esse trabalho no escritório-modelo CASAS, em 2015, na tentativa de, junto com a ocupação, promover a revitalização do espaço, a ressignificação. Temos um relatório de 200 páginas, com diagnósticos e diretrizes para a revitalização do Mercado Sul. Podemos afirmar, com o nosso levantamento, que houve uma melhoria significativa, desses anos para cá, com a ocupação. Como disse o Paique, é preciso que o Estado valorize o que está sendo feito e não que o Mercado Sul corra atrás do Estado. Acreditamos no valor da ocupação desses imóveis, anteriormente degradados e inutilizados, como manifestação política do direito à cidade, que deve ser garantido pelo Estado.
Cumpre esse papel, como disse muito bem o Paique, de resistência social e cultural, promovendo valores históricos, manifestações culturais, encontros de artistas, de mulheres do campo, da cidade, feiras populares, encontros acadêmicos. Há vários acadêmicos ali. O Sr. Virgílio sempre diz que o Mercado Sul parece uma universidade popular. Na verdade, é. A Universidade de Brasília reconhece isso. Nós professores extensionistas reconhecemos o Mercado Sul como uma verdadeira universidade popular. Deve ser valorizado. Educação e cultura juntas!
Hoje foi realizada uma live a respeito de pedagogia urbana nas escolas do Distrito Federal e de como Pontos de Cultura, como o Mercado Sul, são fundamentais para recuperar essa cultura popular no DF. O BR Cidades, a Universidade de Brasília, com os trabalhos de extensão do escritório-modelo CASAS, o grupo periférico pelo Estatuto da Cidade também cumprem essa função social, no sentido do reconhecimento do Mercado Sul como patrimônio cultural do Distrito Federal.
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A SRA. PRESIDENTE (Erika Kokay. PT - DF) - O Mercado Sul vive e é patrimônio material e imaterial do Distrito Federal.
Eu fui convidado para apresentar o Projeto Retomar para Reinventar, que foi tema do meu trabalho de conclusão do curso de Jornalismo, no qual percebi a importância de termos um registro, termos uma memória, termos uma abordagem jornalística sobre o que é especificamente a ocupação cultural Mercado Sul Vive. Essa ocupação existe no Mercado Sul há 6 anos, é fruto de uma grande articulação, de vários anos, em um território que se reinventa durante várias fases, um território que foi construído antes da inauguração de Brasília, um espaço onde trabalhadores e trabalhadoras se organizavam e mantinham ali um comércio local.
Pensamos nos insumos para a construção dessa cidade. A partir disso, com o passar do tempo, nas décadas de 70 e 80, o Mercado Sul passou por um momento de abandono, por conta da construção de vários shoppings, de um comércio na própria Comercial Norte que foi surgindo e deixando de lado esse modo de operacionalizar essa economia local, mais específica do Mercado Sul. Depois, com o Mestre Dico, com um ponto do Invenção Brasileira, uma movimentação muito grande, na década de 90 e nos anos 2000, começou a existir nesse território e a firmar realmente esse chão como um território cultural.
(Segue-se exibição de imagens.)
O Relatório CASAS foi um estudo muito importante para a nossa comunidade, para as pessoas que estamos no Mercado Sul, para entendermos o que é esse território e toda a situação fundiária dele. Esse relatório embasou muito o meu trabalho.
Este é o título: Retomar para reinventar. Para quem não conhece o Mercado Sul, são três conjuntos de lojas com duas ruas no meio e outras duas laterais.
Vim falar dessa ocupação e, principalmente, do Mercado Sul como patrimônio. É isso, eu acho que as coisas estão muito interligadas. O Mercado Sul possui identidade construída a partir da sua perspectiva de território. Não temos como não pensar essa construção a partir do chão, a partir desse território de esperança que as trabalhadoras e os trabalhadores encontraram.
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Por iniciativa da comunidade, ocorre um movimento de renovação das ruas, porque existe um descaso muito grande do Estado com essas ruas.
Ao se pensar o Mercado Sul como chão dessas manifestações culturais, é importante destacar as manifestações que já são patrimônio cultural imaterial e que existem no Mercado Sul, como o samba de roda rural, o mamulengo, a capoeira. São manifestações que já existem e são reconhecidas, assim como outras manifestações que o Paique mencionou.
Por que há essa ocupação cultural? Por que estou trazendo esse TCC, esse trabalho sobre a ocupação e essa relação com o patrimônio? Porque existe um modelo de urbanização da cidade que a pensa como mercadoria; existe superlotação nas cidades, principalmente nas ruas; existem pessoas que estão sem lugar para morar e que precisam de lugar não só para morar mas também para realizar os seus trabalhos culturais. Há muitos espaços vazios e crescimento desordenado da cidade. Sabemos que o Distrito Federal é um território de expulsões de toda a classe trabalhadora, que chega a esse chão e é expulsa do centro. Existe uma necessidade muito grande de acesso a políticas públicas de saneamento básico, saúde, educação, cultura e habitação no território. É o "nós por nós" que funciona lá. Então, muitas vezes fazemos o papel que o Estado não faz. Existe também um movimento de ocupações pelo Brasil como uma resposta à especulação imobiliária e a todo esse processo econômico que existe.
Estas são fotos que mostram como estavam as lojas em 2015. Estavam abandonadas, só geravam doenças e violência dentro do território. Podemos ver algumas lojas que estavam fechadas por muitos anos, por mais de 20 anos. Estas são fotos do movimento de ocupação a que tive acesso quando entraram nas lojas. Havia surtos de dengue no Mercado Sul em todos os anos anteriores, e só foram descobrir a fonte desse problema quando abriram as lojas, quando abriram esse caixote. Vejam que esses espaços eram terra de ninguém, eram espaços que não tinham função social nenhuma, e a ocupação cultural, todo o movimento cultural que já existia no território e outras parcerias fizeram com que esse espaço fosse transformado. Esse é só um exemplo de uma das experiências culturais que existem nos territórios.
Estas são fotos de 2010, 2016 e 2018. Elas nos permitem entender um pouco a transformação do Mercado Sul durante esses anos. É um território em que não existem só manifestações culturais. Existe gente que mora no Mercado Sul, há uma comunidade moradora, trabalhadora, há igrejas. É um território muito diverso. Temos que reaprender, a cada dia, a lidar com a diversidade do Mercado Sul e também com os enfrentamentos no próprio território.
É fundamental falar do Mercado Sul durante a pandemia, um território de suporte para a classe trabalhadora artística, para trabalhadores e trabalhadoras da cultura.
Sabemos quanto esta pandemia nos atinge cotidianamente desde que ela surgiu. No Mercado Sul, conseguimos encontrar esse suporte enquanto comunidade. Pessoas que já estavam construindo esse movimento organizaram bancos de alimentos ligados a outras redes na cidade. Nesse território conseguimos realmente sobreviver porque estamos juntos, porque existe ali um movimento cultural e comunitário.
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É importante pensarmos na questão dos alimentos, e não só nos alimentos da cesta básica. Há também a perspectiva das cestas verdes. Sabemos da preocupação que temos de ter com a soberania alimentar. Esse é um saber que trazemos de todos os saberes ancestrais que existem no território.
Há também a reinvenção do próprio território ao conseguir se organizar para realizar atividades on-line. Sabemos que não são todos os territórios que conseguem se organizar para ter essa tecnologia, mas conseguimos ter espaço para fazer a transmissão e possibilitar que os artistas desenvolvessem a sua arte mesmo num contexto de pandemia. Conseguimos desenvolver o projeto Escola Livre, que tem sido muito importante. Coloca pessoas da comunidade na frente ou atrás das câmeras para que realizem o seu trabalho, a fim de podermos seguir na resistência.
Trazemos algumas questões: o enfrentamento dessa lógica mercadológica imobiliária; a necessidade de pensarmos mais, no Distrito Federal, sobre o Estatuto da Cidade, porque pouco se avança no que diz respeito à cidade do povo para o povo; a memória viva de trabalhadores e trabalhadoras, que é invisibilizada na história da nossa cidade, um território em que conseguimos perceber o fruto do trabalho e o suor permanente dessa classe trabalhadora; a responsabilidade do Estado com a sua memória histórica e cultural. Qual é o papel do Estado diante disso? Hoje nós temos um processo judicial da ocupação e dos supostos donos dessas lojas ocupadas. Qual é o papel do Estado ao enxergar esse abandono e essa retomada? Para nós, é muito nítido, é o de reconhecer esse território como patrimônio, de conseguirmos espaços que sejam públicos dentro desse território para continuarmos essa gestão. Devemos também pensar em política pública de cultura em um âmbito mais amplo. Ela se refere não só a espetáculo, não só a apresentação artística, mas também a todo o processo ali envolvido, à vida das pessoas que estão ali, mestras e mestres que estão fomentando a cultura, pessoas que trabalham cotidianamente na cultura, e precisam comer, e precisam morar, e precisam viver.
Há algumas fotos do cotidiano de artistas. Esta é do Aroeira, sambador, do samba rural do Recôncavo Baiano. Mora no Mercado Sul, traz consigo a sua tradição, tem construído conosco esse cenário da cultura popular. Quase foi embora durante a pandemia. Nós da comunidade nos organizamos para que o Aroeira ali permanecesse, não só pela importância da sua cultura, da tradição do seu fazer artístico e cultural, mas também pela vida, pela construção que ele faz no território, pela construção do afeto mesmo, do pensamento sobre as cidades e essas ligações de maneira mais profunda.
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Na reportagem, no primeiro capítulo: Sonhar e construir outra cidade, eu trago a introdução dos processos da ocupação, como surgiu, por que surgiu.
Eu trago, no segundo capítulo: Cidade mercadoria, questões sobre a questão habitacional do Brasil, sobre todo esse conflito judicial lá do Mercado Sul. Porque também há a questão de que cada loja dessa, para o Estado, não é uma loja só, é um conjunto todo e isso dificulta muito o acesso às políticas públicas. Como vamos alcançar a posse assim, né? Há lojas lá que têm vários donos, lojas que foram ocupadas e reocupadas não só dentro desse processo, mas de uma maneira muito livre. Essa é uma questão muito forte de pensar toda a questão imobiliária lá.
No terceiro capítulo, Histórias sobre este chão, trago alguns casos de convergências e divergências também no território, opiniões de pessoas que também são contrárias ao movimento cultural e outras perspectivas.
No quinto capítulo, Substância para resistir, falo sobre o direito à moradia também como cultura e o imbróglio jurídico, de que já falei também.
No sexto capítulo, Espaços vivos, comunidade viva, trago a perspectiva de que, sem o território, não existe essa identidade cultural que temos construída no Mercado Sul. Não tem como deslocarmos o Mercado Sul dali e tentarmos abri-lo em outro lugar da cidade. Não faz sentido nenhum, porque toda a identidade foi construída no território, as pessoas precisam desse lugar, não só para as suas vidas, mas para toda a história do Distrito Federal, para a história do País, inclusive, porque precisamos ter olhos. Mesmo em Brasília, que é uma cidade jovem comparada às outras, existe uma história muito profunda a que precisamos dar uma atenção e construir uma série de políticas públicas. Pensar ocupação não é só pensar a posse das lojas, mas reconhecer esse território como um patrimônio, para ter também apoio do poder público, para esse espaço realmente exercer, cada vez mais, com mais profundidade e eficácia a sua função.
Bem, é isso, o Mercado Sul tem função social, cultural, política e afetiva. Esse é um beco que já foi revitalizado por toda essa articulação de que vimos falando. Existe outro beco, e estamos em movimento de recuperá-lo, de trazê-lo também para essa dimensão que já temos em um dos becos. E é isso. As pessoas vivem e atuam no Mercado Sul porque acreditam nesse território, porque vivem nesse território. Então, estamos falando de vida e não de morte dos lugares. Quando falamos de lugares, estamos falando fundamentalmente das pessoas, que são a energia que movimenta tudo isso.
A SRA. PRESIDENTE (Erika Kokay. PT - DF) - Muito obrigada, Webert da Cruz, que representa o Projeto Retomar para Reinventar.
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A história do Mercado Sul se cruza e reinventa a nossa, como advogadas populares da Candanga Assessoria Popular, em fevereiro de 2015, quando lutadoras por direito à cidade do Mercado Sul e do Movimento Dos Trabalhadores Sem Teto se insurgiam contra a especulação imobiliária para defender a habitação de interesse social e equipamentos de cultura do povo e para o povo em Taguatinga, Ceilândia, Brazlândia, Recanto das Emas, Samambaia e Planaltina. Em Taguatinga, as faixas que reivindicavam menos abandono, mais união e, abre aspas, "cidade para quem a sonha, a vive e a constrói" expressaram um ensinamento para as advogadas populares, para o Poder Judiciário e para todo o poder público. O Webert trouxe bastante na fala dele também que não há que se dissociar a discussão do direito à moradia da discussão sobre o direito à cultura.
Trazemos um pouco que, em que pese a nossa Constituição, quando fala da proteção a povos tradicionais, prever esse caráter da territorialidade como meio de proteção dos modos de vida de práticas culturais, sobretudo dos povos indígenas e quilombolas, as instituições da Justiça ainda têm uma grande dificuldade de aplicar o mesmo entendimento a outros movimentos que produzem cultura de modo similar nas cidades, inclusive no que diz respeito ao reconhecimento e proteção também dos quilombos urbanos.
Aqui nós queremos reforçar algo que também já perpassou as falas que nos antecederam: as raízes afroindígenas das manifestações culturais gestadas no e pelo Mercado Sul Vive, como é o caso da capoeira angola, do jongo, do rap, do coco, do maracatu, da ciranda, do cavalo-marinho, do samba de roda. Esse espaço é de permanente troca dessa ocupação cultural com o território de todo o Distrito Federal e com gente que vem do mundo todo aprender com as tecnologias e os conhecimentos que são cotidianamente produzidos nesse território.
E quando falamos sobre a construção de Brasília, também não podemos dissociar essa nova capital da expulsão dos trabalhadores, sobretudo negros e nordestinos, que vieram construir este centro urbano. E quais são os pontos de encontro nessas trajetórias? Quem está sendo privado, ao mesmo tempo, do direito à moradia, à infraestrutura urbana e ao acesso aos serviços públicos nessa lógica perversa de negar moradia popular no centro para os descendentes de quem construiu Brasília e também de concentração de equipamentos culturais com o fomento do Estado hegemonicamente situados no Plano Piloto?
Como todos já disseram também, a cultura está sendo produzida cotidianamente no Mercado Sul. O Mercado Sul é patrimônio cultural. É obrigação do Estado reconhecer essa efervescência cultural e social que já existia no território antes mesmo da construção de Brasília.
Quando falamos de cultura, pensamos no lugar em que a pessoa mora, pensamos no que a pessoa come, não com uma lógica de cultura como mercadoria, de cultura como espetáculo, entretenimento, que se encerra numa entrega específica. É isso que nós também aprendemos muito nessa troca com o Mercado Sul, na elaboração dessa ação civil pública e na provocação que vamos levar para o Judiciário.
Na audiência de conciliação da ação civil pública, ouvimos um pouco disso: "Mas espera lá! É moradia ou direito à cultura?" E a resposta do movimento, em uníssono, foi:
"São as duas coisas", porque cultura é produzida no chão em que se mora; é a relação com a vizinhança; é a solidariedade para enfrentar a pandemia e as políticas de morte desses Governos federal e distrital, que têm assolado nosso povo em todas as frentes; é, ao mesmo tempo, também essa troca de conhecimento por meio do software livre; é a fabricação da compostagem. Se antes tínhamos um espaço que era ambiente de surto de dengue, hoje temos um espaço de compartilhamento de bike; temos um espaço onde se faz compostagem; temos um espaço que preserva o meio ambiente, que pensa cidades justas e sustentáveis.
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Para ir me encaminhando para a conclusão, uma coisa que queríamos trazer também, relacionada ao documento que a Liza já citou, a Nota Técnica nº 2, de 2015, da Superintendência do IPHAN do Distrito Federal, é a importância de pensar o Mercado Sul com o objetivo geral da preservação do patrimônio cultural, que é o fortalecimento do pertencimento de indivíduos a uma sociedade, a um grupo, a um lugar, contribuindo pra ampliar o exercício de cidadania e para melhorar a qualidade de vida. Daí a importância de se pensar esse processo de desapropriação do Mercado Sul. Que o poder público desaproprie. Se está sendo subutilizado, se não está cumprindo função social, há vários mecanismos para que isso se reverta, para que esse espaço deixe de ser subutilizado e sirva às pessoas que historicamente o ocupam.
E é importante pensar o enfrentamento também à perspectiva da gentrificação. Que se avance nessa desapropriação, mas que se mantenha o uso e o significado gestado na e pela comunidade em todos os aspectos decisórios dessa regularização do local pelos órgãos competentes, tendo em vista a discussão com quem produz cultura cotidianamente ali.
Para fechar, queríamos deixar outra contribuição. Essa ação civil pública foi construída com o CEDECA e com a Invenção Brasileira, que é um ponto de cultura muito reconhecido no País inteiro. Queríamos também dizer que o Mercado Sul é um pontão de cultura, que foi reconhecido dessa forma, e falar da importância de pensarmos, além dessa perspectiva do reconhecimento do valor cultural, do tombamento, da desapropriação, no processo de revisão do Plano Diretor, que é feita a cada 10 anos. Há instrumentos para pensarmos também essa preservação do valor cultural material e imaterial, que são as Zonas Especiais de Interesse Cultural. Que pensemos em como avançar nisso também, para incidir no processo de revisão do Plano Diretor, e pensemos mais outras vias de fortalecer essa luta que tem sido empreendida pelo movimento.
A SRA. PRESIDENTE (Erika Kokay. PT - DF) - Obrigada, Ingrid, pela contribuição.
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Eu gostaria, diante de tantas falas tão potentes, tão importantes, e já contando a história do Mercado Sul, de focar um pouco na questão da importância, do reconhecimento, da trabalhadora e do trabalhador autônomos que esse local traz. E por que eu gostaria de trazer esse aspecto, esse recorte? Porque é um lugar de trabalho que, em tese, é invisibilizado. Por isso, tanta dificuldade em se tombar um lugar como esse. Não é um monumento construído por alguém importante, porque tem o nome de um arquiteto embaixo. É um local, é um território ocupado, conquistado por trabalhadoras e trabalhadores, em geral autônomos. E por que citar isso neste momento? Por que é importante que um território que desenvolve economia criativa, economia solidária, que desenvolve economia circular é tão importante neste momento? Exatamente porque ele ressignifica esses lugares dentro das cidades, ele ressignifica os nossos territórios como lugar de convívio, mas, acima de tudo, como lugar também de produção cultural. É um lugar que se sustenta, ele é sustentável dentro da sua perspectiva de existência. Ele gera serviços, cultura, troca, ensinamento — todas essas características e todos esses valores estão ali, naquele mesmo território. Mesmo assim, como foi dito, o Estado ainda olha para esse local como um lugar que está em segundo plano. Por isso, a luta da comunidade é extremamente valorosa, potente e legítima e, de imediato, como disse o companheiro do Movimento, já legitima o espaço como um patrimônio. Ele é um patrimônio material e imaterial, ele é um lugar de trocas, um lugar de trocas de saberes importantíssimos e de tecnologias diversas da arte e da cultura.
Portanto, eu gostaria de me colocar no lugar de Conselheira de Cultura do Distrito Federal e já propor levarmos esse debate para dentro de outros espaços, como o Conselho de Cultura. Desde já eu me comprometo a propor essa pauta de imediato no início do ano, para que possamos avançar com ela e para que esses Conselhos, que são instâncias de representação social junto ao Estado, possam se manifestar, para que esses Conselhos, esses lugares de debates importantes, também não fiquem à margem do debate vendo a sociedade fazer a sua luta sem ter nenhum tipo de manifestação com relação a esse processo.
Eu acho que nós vamos ouvir aqui o representante do CONDEPAC. É importantíssimo também que o Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural do Distrital Federal se posicione e faça um debate aberto com a comunidade.
Inclusive, já deixo aqui, como sugestão de proposta, que o Conselho abra esse debate a toda a comunidade, para que esse debate não seja feito a portas fechadas e não saibamos o que de fato está pensando a SOFIC, o que está pensando o Governo, o que está pensando esse Conselho importantíssimo.
A mesma coisa acredito que deva ser feita com o Conselho de Cultura do Distrito Federal. Nós temos que cobrar desse Conselho, e já me coloco como representante que tem que ser cobrada também, uma manifestação e uma adesão efetiva à luta de tombamento desse espaço.
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15:28
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Encerro a minha fala, mais uma vez, indo para esse lugar das economias. Acho que é um lugar que sempre sensibiliza muito o Governo, que tem essa característica, se diz neoliberal. É fundamental que se encare esses trabalhadores e essas trabalhadoras que ocupam o Mercado Sul, que trabalham nesse lugar, que produzem nesse lugar, que geram conhecimento nesse lugar, que movimentam novas metodologias de economia, como eu disse aqui, não apenas a economia criativa que criou algumas setorizações, além de manifestações artísticas e tecnológicas, mas movimentam outras formas de economia e que, aliás, fazem um trabalho voltado para uma economia circular que também trabalha com meio ambiente, que também já faz uma interseção com outros segmentos importantíssimos neste momento e que estão em debate. É preciso, de fato, olhar para esses lugares como uma possibilidade de sustentabilidade dentro das cidades.
Que mais Mercados Sul surjam no Distrito Federal! Que mais ocupações como essas surjam dentro dos nossos territórios! Que tragam arte, cultura, saberes, convívio, convivências e que, acima de tudo — olhem que coisa mais linda! —, as crianças possam novamente brincar nas ruas desses lugares com segurança.
Dentro dessa perspectiva e de todas essas importâncias que foram colocadas aqui a respeito do Mercado Sul, acho que o grande compromisso que posso tirar daqui, já como uma proposta, estando aqui no lugar de Conselheira, é de levar essa pauta para dentro do Conselho e solicitar a ele que se manifeste e que participe, de forma efetiva, desse processo de tombamento.
A SRA. PRESIDENTE (Erika Kokay. PT - DF) - Obrigada, Rita Andrade.
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O Cid está com dificuldade de conexão. Então, nós passaremos a palavra para a próxima convidada, que é a Daniela Zambam Rodolfo, representante da Secretaria de Cultura do Distrito Federal e Diretora de Preservação da Subsecretaria do Patrimônio Cultural. Assim que o Cid se conectar, nós lhe passaremos a palavra.
Minha intenção hoje é falar sobre os procedimentos que foram realizados até então aqui na Secretaria e o que nós estamos aguardando para dar andamento às análises. Nós recebemos a solicitação de reconhecimento do Mercado Sul como patrimônio, e existem alguns procedimentos a serem seguidos. Temos as portarias que regulamentam as análises do reconhecimento, e, dentro da nossa resposta, já orientamos quanto a isso. É preciso apresentar a documentação de acordo com a Portaria nº 78, de 2015, da Secretaria de Cultura.
Ainda com relação a essa mesma resposta, acho importante ressaltar que, independentemente de o bem ser reconhecido como patrimônio material e/ou imaterial, sugerimos, na própria resposta, que o Conselho de Cultura avaliasse a possibilidade de reconhecer o lugar de outro modo. Como ele foi apontado como pontão de cultura, sugerimos que esse tipo de reconhecimento de pontos de cultura tenha outras formas de receber incentivo. Digo isso tendo em vista que, dependendo do caso, ele talvez não se enquadre em todos os modos dentro do tombamento ou do reconhecimento de registro, para fazer sentido.
Prioritariamente, como já foi recomendado nas nossas respostas, sugerimos que ele seja enquadrado dentro do patrimônio imaterial, mesmo que se trate de lugar, tendo em vista que hoje a parte arquitetônica, a parte física, não mantém as características originais. Sendo assim, acreditamos que o reconhecimento talvez seja bastante equivalente ao que tem hoje a Prainha, a Praça dos Orixás. Ela é reconhecida, ela é registrada como lugar também. Talvez este fosse o mesmo caso. Não estou confirmando isso, teríamos que fazer a análise com base realmente na pesquisa, mas essa é uma orientação boa para termos um início.
Outra coisa que gostaríamos de sinalizar, e é fundamental que todos entendam, é que, na verdade, independe do proprietário do bem ele ser reconhecido como patrimônio material ou imaterial. Então, não importa se se trata de um bem público ou de um bem privado. Independentemente de quem seja o proprietário ou o gestor do bem, o responsável vai ter também algumas demandas no sentido de manter o local, e tudo mais. E provavelmente no futuro também seja cobrado um valor para que o lugar seja mantido.
Então, acho importante entender isto também: independentemente da propriedade do bem, ele pode vir a ser tombado, pode vir a ser registrado. Isso não interfere no processo. Interfere um pouco é na responsabilidade que o detentor do bem vai ter no pós-reconhecimento.
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15:36
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A SRA. PRESIDENTE (Erika Kokay. PT - DF) - Nós é que agradecemos, Daniela.
Inicialmente, cumprimento a Deputada Erika Kokay e a parabenizo pela iniciativa da audiência pública, por ter puxado esse diálogo e essa construção tão importante para o Mercado Sul, para o Distrito Federal e para todo o Brasil, como já foi afirmado aqui.
Cumprimento também a (ininteligível) do Mercado Sul, na pessoa do Paique, do Cid Aroeira e do Webert, que já falaram. E agradeço a oportunidade de estar aqui conversando, nessa construção tão importante e tão bonita.
Nós do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública, de onde eu falo, tivemos um primeiro contato com o Mercado Sul no ano passado, e a demanda que nos foi apresentada era com relação ao acesso ao serviço de água potável. Não podemos ignorar o contexto da pandemia, que ainda está nos afligindo e já ceifou mais de 600 mil pessoas em todo o Brasil; e uma das principais recomendações era higiene básica, como lavar as mãos. A comunidade, com toda a sua construção e a sua luta diária e a sua importância para o cenário cultural e para o desenho de um direito à cidade adequado às questões ambientais, às questões humanas como um todo, estava demandando uma função tão básica, que é o acesso à água. Essas pessoas acionaram a Defensoria Pública e conseguiram esse fornecimento, não em toda parte; temos que avançar muito ali ainda. E hoje a Defensoria Pública se sente muito agraciada pelo Mercado Sul entendê-la como uma parceira nessa luta. Além de um dever de ofício, essa parceria é uma honra.
Muitas coisas importantes já foram ditas aqui. Acrescento que o que está sendo demandado, o que está sendo construído nesse diálogo, nessa construção coletiva tem a dimensão de um direito. Estamos falando de direitos exigíveis, de direitos inclusive constitucionalmente estabelecidos, como já foi falado aqui (falha na transmissão).
Nós nos aproximamos da Constituição, cujo art. 216, § 1º, diz: "O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação". Nesse caso, nós temos até o instrumento da desapropriação para fins de preservação do patrimônio cultural.
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15:40
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Todas essas vivências que foram descritas aqui, com propriedade, por pessoas que vivem o Mercado Sul no seu dia a dia, que vivem as lutas e as conquistas desse local, traduzem a necessidade de se efetivarem esses direitos, não só o direito à moradia, como o Webert e a Ingrid já mencionaram aqui, mas também o direito cultural, porque a cultura é construída nesse território, a cultura é construída na vivência do diálogo e da convivência. Quando nós fomos lá, por exemplo, não romantizando uma situação de violação de direitos, que era a petição por (ininteligível) de água, nós vimos isso. As pessoas conseguiram, além das estruturas construídas para captação de água da chuva, também esse grande senso comunitário de auxílio mútuo, de percepção de uma vivência coletiva.
Nessa perspectiva, a Profa. Liza citou os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável — ODS, que nos trazem uma percepção para além do desenvolvimento das cidades, para além do aspecto de crescimento econômico, ao considerar também a questão ambiental, e ambiental não somente no seu aspecto naturalístico, mas compreendendo também uma percepção de natureza e meio ambiente que envolve os aspectos culturais da vivência humana como um todo. A Profa. Liza cita o ODS 11, que tem como um dos objetivos tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes, sustentáveis. Mais especificamente, a Meta 11.4 pede o fortalecimento dos esforços para proteger e salvaguardar o patrimônio cultural e natural do mundo, o que dialoga de forma muito direta com as demandas aqui apresentadas. (Ininteligível.) A verdade é que toda a questão do patrimônio cultural perpassa os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. E, para além dessas vivências que foram trazidas do local, também é preciso lembrar a importância do Mercado Sul para o Distrito Federal pelo aspecto cultural, pelo aspecto de uma cidade inclusiva, diversa, plural, que é o que mantém vida na cidade, como diz o poema citado pela Ingrid, poema da Keyane Dias, que diz:
E há também uma questão econômica na importância do Mercado Sul. Dados da UNESCO, por exemplo, apontam que o turismo cultural corresponde a 40% das receitas mundiais do turismo.
Isso tem impacto direto quando pensamos num ambiente, num local que apresenta cultura viva, dinâmica, com diversas manifestações culturais, como roda de coco, capoeira, samba de coco, mamulengo, a ecofeira... Existe um potencial, eu acredito, também econômico para o turismo do Distrito Federal nesse local. No início da nossa conversa, eu cito que a demanda que nos chegou à Defensoria Pública era por acesso a água. Isso mostra a omissão do poder público, a dívida do poder público com esse local, e eu acho que há agora um momento histórico de reparação.
Termino minha fala aqui. Agradeço novamente e coloco a Defensoria Pública à disposição, como aliada nessa importante luta para todos e todas nós.
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A SRA. PRESIDENTE (Erika Kokay. PT - DF) - Obrigada, Dr. Ronan Ferreira Figueiredo.
E gostaria de me apresentar. Além de produtora, eu sou moradora do Mercado Sul. O Mercado Sul é o local onde eu cresci. Assim como várias outras crianças, crescemos com a presença do mamulengo, da capoeira, e tudo isso foi de extrema importância para o meu crescimento pessoal, profissional, como fazedora de cultura e arte.
Hoje eu tenho 22 anos. Moro no Mercado Sul desde os meus 7 anos de idade. Dentro dessa perspectiva, eu pude aflorar. Já foi dito aqui que o Mercado Sul é uma grande escola, que forma artistas e também impulsiona o trabalho de vários artistas. Eu sou uma prova viva de como isso reverbera em cada pessoa que passa, em cada pessoa que frequenta o território Mercado Sul.
Sou produtora, maquiadora, técnica em audiovisual formada pelo IFB do Recanto das Emas. Nessa minha caminhada, nessa minha trajetória, eu venho contribuindo para produzir conteúdo, para produzir os artistas e para buscar tecnologias pra facilitar o acesso à cultura.
O Mercado Sul é um local importante para Brasília, mas principalmente para a cidade de Taguatinga. Historicamente, Taguatinga é somente uma cidade comercial, uma cidade cinza, vazia, cheia de prédios. Mas, dentro de tudo isso, nós encontramos o Mercado Sul, um bloco de lojas onde se vê grafite, pichações, frases de efeitos, lambes, plantas, crianças correndo na rua, um local totalmente dissidente do que é a realidade de Taguatinga. Hoje, em Taguatinga, eu não conheço outro ponto cultural gratuito, que ofereça a vasta didática, as vastas trocas que são feitas nesse local.
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Eu gostaria de falar um pouco do processo de ocupação a que demos início há 6 anos. Eu tinha 15 anos de idade. Hoje, ocupo uma das lojas, junto com a minha mãe e com a minha irmã. Tivemos a oportunidade de abrir um restaurante para a minha mãe fazer comida para a comunidade. Tive acesso a instrumentos para hoje conseguir trabalhar com fotografia, com audiovisual. Na ocupação, minha irmã vai receber o filho dela, o Leonardo. Toda essa perspectiva da minha família eu estou trazendo para mostrar o quanto é importante nós termos um local para morar, um local onde dormir. Sem isso, não conseguimos fazer cultura, não conseguimos nos expressar.
Para finalizar, eu gostaria de dizer que a cultura sempre foi um direito reservado às elites. No Mercado Sul, nós criamos tecnologias que facilitam o acesso à cultura para as pessoas periféricas. Hoje temos a urgência de que o Mercado Sul seja reconhecido como patrimônio cultural imaterial e material do DF. Ele já é um patrimônio, já está ali. O que precisamos agora é garantir a nossa segurança, porque, assim como em vários outros pontos culturais do DF, estamos sofrendo o ataque de todo um contexto fascista que quer derrubar, que quer marginalizar os fazedores de cultura, principalmente os periféricos, as pessoas negras, indígenas, LGBTQIAP+.
Hoje eu faço parte do Coletivo Casa de Onija. Todos os sábados nós fazemos treinos de vogue, abrindo esse espaço para os corpos dissidentes, para os corpos marginalizados. Para além do vogue, temos capoeira, temos criança na rua, temos golzinho... Tudo isso é natural e foi feito a partir da necessidade de existir, a partir da necessidade de estar ali.
Finalizo minha fala afirmando e reafirmando que o Mercado Sul é patrimônio cultural e que precisamos, agora, com urgência, dizer isso aos governantes, para que tenhamos mais acesso às políticas, para que tenhamos asfalto, para que tenhamos coleta seletiva nesse local, para que tenhamos recursos para investir, porque tudo aquilo foi feito com o nosso suor, de morador para morador, de apoiadores, de pessoas que vão e vêm. Tudo aquilo é algo que o Governo deveria ter como prioridade, porque o local existe desde o início da construção de Brasília.
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(Exibição de vídeo.)
(Palmas.)
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A SRA. GIULIANA LETICIA - É isso. Acho que esse vídeo mostra um pouco do que é o Mercado Sul. E ele também dá um pouco de nostalgia. Este momento de pandemia está sendo muito difícil, mas a comunidade segue se organizando. Hoje temos a perspectiva de dar apoio às famílias da classe artística, da classe cultural, que atuam dentro do território.
(Manifestação na plateia: Mercado Sul! Mercado Sul!)
(Manifestação na plateia: Mercado Sul! Mercado Sul!)
(Manifestação na plateia: Mercado Sul! Mercado Sul!)
(Manifestação na plateia: Mercado Sul! Mercado Sul!)
(Manifestação na plateia: Mercado Sul! Mercado Sul!)
(Manifestação na plateia: Mercado Sul! Mercado Sul!)
A SRA. PRESIDENTE (Erika Kokay. PT - DF) - Muito obrigada, Giuliana Leticia. Belíssimo vídeo! Belíssima fala!
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16:00
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Eu nasci na cidade livre, no Núcleo Bandeirante, e, com 1 ano de idade, em 1961, eu fui para Taguatinga, onde meu pai abriu uma marcenaria na Avenida Samdu, em frente ao Mercado Sul. Quando eu tinha 5, 6 anos de idade, eu passava o dia com ele lá e brincava muito no Mercado Sul. Eu e o meu irmão Davi. Então, nós tivemos nossa infância ali.
Depois, quando começamos a trabalhar, logo cedo, meu pai fazia brinquedos para vendermos na rua. Vendíamos por ali, por Taguatinga Sul, e depois, no fim da tarde, voltávamos para lá, e íamos brincar no Mercado Sul, escondendo-nos no meio das bancas, das lojas, dos becos. A Rita falou uma coisa muito legal: "Com segurança". Isso tem que ser resgatado.
Um dia eu estava lá com meu irmão, agora mais recentemente, e passaram dois meninos na nossa frente, brincando, correndo ali no beco. E ele falou: "Olha! Parece com a gente, quando éramos pequenos, brincando aqui". Eu disse: "Que coisa gostosa, né, irmão?" É um lugar que, com o passar dos anos, as crianças ainda podem correr, podem brincar, podem sair de uma casa e entrar na outra, porque ainda existe uma segurança com os cuidados. Esse é o Mercado Sul da minha vida.
No final dos anos 70, o Ivaldo Cavalcante, que é um grande fotógrafo, cabeça, que tem prêmios mundiais, tinha lá o seu laboratório, numa dessas lojas que hoje está ocupada. Embaixo tinha uma sorveteria e, à noite, na parte de cima, no mezanino, que ele chamava de caverna, era o laboratório de fotografia. Eu morei muito lá com ele e vi sendo reveladas essas fotografias do Mercado do Sul, com o olhar poético e sensível de um grande fotógrafo.
Ali estava também o mestre Dico e o Alexandre, que era a dupla Advogado e Engenheiro, uma dupla que fez muito sucesso no Brasil, que tinha discos gravados na época também. Até hoje eles estão lá. O Alexandre ainda está lá com a Aden Violões. Eles são de uma família que, há mais de 250 anos, pelo que eles contam, constroem instrumentos musicais e brincam Folia de Reis, Folia do Divino. Portanto, outra coisa que chegamos a ter ali no Mercado Sul foi o giro da Folia de Reis. É muita, muita coisa! Realmente é um privilégio estar no Mercado Sul e fazer parte desse movimento todo, que vem de gerações.
Nós recebemos, durante o tempo do Movimento Nacional dos Pontos de Cultura, delegações do Ministro da Cultura da China. Já recebemos também delegações da Organização dos Estados Americanos. Uma vez, quando houve uma reunião aqui em Brasília, dezenas de representantes da cultura de países aqui da América estiveram lá conversando conosco.
Recebemos brasilianistas, pessoas que estudam o Brasil, dos Estados Unidos, da Inglaterra, da própria China, de vários lugares do mundo, para falar dessa experiência, que é muito, muito incrível, mas que não tem nenhum segredo. O segredo é o cuidado de uns com os outros, um princípio básico. É só isso! Nós nos cuidamos e conversamos as coisas em roda, em círculo, sempre. As reuniões são todas em roda. E tudo que pensamos e sonhamos é possível? É, porque é coletivo. Assim caminhamos até hoje.
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Eu quero agradecer à Deputada Erika Kokay e a todas as pessoas dessas instituições que se interessam por essa questão. E quero dizer para esta Casa, para o Congresso Nacional, que Brasília é a Capital do Brasil e Brasília não é só o Plano Piloto. Está na hora de reconhecer esses espaços humanos também como patrimônio, sem falar na arquitetura de lá. Foi tudo construído com o mesmo material que foram construídos esses prédios aqui. Há azulejos lá que têm desenhos muito diferentes de qualquer outro lugar, azulejos que podem ter sido de Athos Bulcão ou de alguém que trabalhava muito próximo a ele. Algumas lojas lá ainda têm esses azulejos. Então, há a questão material, a questão imaterial e, sobretudo, a questão humana.
A SRA. PRESIDENTE (Erika Kokay. PT - DF) - Obrigada, Chico Simões.
Nós vimos aqui vários aspectos que dizem respeito à importância do Mercado Sul e à necessidade de que ele seja considerado um patrimônio material e imaterial do Distrito Federal, porque é um território. E essa territorialidade não encontramos em todos os cantos. Territorialidade não é só espaço geográfico, é como se constrói o cuidar, de uns cuidar dos outros. E estamos nos cuidando sempre, que é um pouco do sentimento que vemos.
O Mercado Sul tem uma coisa muito semelhante... Eu estive, há alguns dias, há uns 15 dias, na Raposa Serra do Sol, e ali naquele território indígena há esse sentimento de que seus meninos e meninas podem estar em segurança porque são cuidados por todos e todas. Então, todo mundo cuida. E essa lógica de cuidado são os territórios que constroem. Mas essa trança também de saberes, essa trança de cores, essa trança de flores, essa trança de graça, que aqui foi falado no poema, essas tranças de saberes e de afetos vão sendo construídas. Ali temos um patrimônio material, não só pelos azulejos, mas também pelo que representou, pelo que foi o Mercado Sul, como ele foi criado, como ele foi construído, e depois como nós retomamos.
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Ou seja, retomar para reinventar, como disse o Webert. Então se retoma e reinventa, trazendo, portanto, a necessidade de territorialidade, de que se possa fazer essas tranças, porque o ser humano tem que se trançar com os outros seres humanos. Nós reconhecemos nossa humanidade na alteridade e na diversidade. É pulsante do ponto de vista cultural. Então há uma territorialidade que não há em todo canto.
Eu penso que o traço mágico de Lúcio Costa propunha isto: uma territorialidade. Essa lógica de que teria um prédio de seis andares para que as mães pudessem escutar o chamado dos meninos e meninas embaixo do prédio trata um pouco essa discussão do cuidado, de como se constrói um cuidado. As cores do Mercado Sul — porque chamam muita atenção as cores que foram postas e que fazem parte do processo de ressignificação e de reinvenção — também são um pouco isso, esse pulsar, essa força que têm as cores que têm que ser trançadas também, porque nós somos de todas as cores. Karl Marx dizia que "se por uma gota de orvalho conseguimos ver todas as cores", nós não podemos permitir que sejamos vistas apenas por uma cor. Uma cor sem cor, ou uma cor cinza, uma cor sem cor, que não que não pulsa e que não tem a sua própria força.
O Mercado Sul é tudo isso, e não tem sentido que não tenhamos políticas públicas, que não tenhamos a água, que não tenhamos, enfim, o acesso ao conjunto de políticas públicas com todo esse pulsar, com toda essa condição de protagonismo, que é outra condição que nos faz humanos, é a capacidade de pegarmos a nossa vida e transformá-la, quando ela é doída. O ser humano tem consciência da vida, e a pega pelas mãos, e tem a potencialidade de transformá-la. Então, portanto, o não protagonismo fere a nossa própria humanidade. É espaço humano, como disse o Chico. É um espaço humano que eles têm. É um patrimônio que foi construído, trançado, enfim, com todas as vozes, com as oficinas que existem ali, com os espaços culturais e o espaço de moradia nesta relação.
Aqui é importante lembrar o que já foi dito pela Ingrid, que o direito à moradia é ligado ao direito à cultura, até porque cultura também é coisa de gente. Apenas seres humanos têm expressões culturais, que vão além das linguagens artísticas: como você se comporta, como você vê o outro.
Neste momento do Brasil em particular e da cidade também em particular, o Mercado Sul é resistência pura. É resistência porque é fundado nessa lógica de solidariedade, de cuidado, de que a cidade não seja roubada pela especulação, mas que seja disponível, porque ela não é a mesma para todos e todas, ela é mais lenta para algumas pessoas, ela é mais doída para outras pessoas. E ela é negada quando se nega o direito da população trans de se apoderar, de se apropriar da cidade ou das mulheres.
Há uma pesquisa recente que mostra que a maioria das mulheres evitam sair nas ruas durante a noite ou durante a madrugada porque não se sentem seguras e que 85% das mulheres têm medo de sofrer, particularmente, violência sexual.
A cidade não é feita para as pessoas descerem do ônibus e ter que agarrar sua própria bolsa, olhar para os lados e ter medo. A cidade que põe medo é roubada das pessoas. O medo rouba a cidade das pessoas, tira a cidade, proíbe a cidade, interdita a cidade para o conjunto da população.
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O Mercado Sul é resistência por tudo isso. É resistência porque o amor é resistente e é valente. O ódio que é covarde. O amor é muito valente, ele consegue abarcar as diversas dimensões que os seres humanos têm e encara que nada do que é humano é estranho, nem pode ser considerado estranho, mas tudo que desumaniza é que tem que ser estranhado e tem que ser combatido.
Então, esse é um processo, sem dúvida nenhuma, de muita resistência. Essa lógica de direito à cidade, de direito ao amor, de direito às expressões, às diversas expressões que a nossa humanidade carrega. Lugar em que as crianças, como aqui já foi dito várias vezes, e o Chico falava também, e eu repito, se sentem seguras para brincar é um lugar brincante. O ser humano é um ser brincante, nós somos seres brincantes, pelo mamulengo, pelas cirandas, por tudo isso que vemos no Mercado Sul.
Então, eu penso que poderíamos, primeiramente, tentar realizar uma sessão solene em fevereiro, porque a ocupação do Mercado Sul data de fevereiro. Perguntei à Giuliana, e ela disse que é de 7 de fevereiro. Poderíamos fazer uma sessão solene para homenagear o Mercado Sul no mês de fevereiro, quando os trabalhos retornam aqui na Casa. Não sei que conseguiríamos fazer no dia 7, mas tentaremos por volta do dia 7. E o que poderíamos construir para o próximo ano seria o lançamento de um movimento, que pode ser lançado tanto aqui quanto na Câmara Legislativa, em um movimento conjunto, para que se reconheça de fato o Mercado Sul como um patrimônio material e cultural. Eu sei que já existe o movimento, mas sugiro formalizá-lo com a participação das duas Casas Legislativas. Podemos trabalhar com a Comissão de Cultura da Câmara Legislativa, presidida pela Deputada Arlete Sampaio, que abarca educação, saúde e cultura, parece-me, para lançar uma campanha no Distrito Federal com vistas à formalização do Mercado Sul enquanto patrimônio cultural, material e imaterial.
Digo que é um espaço, é uma forma de se reconhecer. Mas a Prainha é patrimônio de Brasília e vive tendo seus orixás decepados. Essa coisa de decepar Ogum e colocar sua cabeça em um lugar visível, logo na entrada da Prainha, é simbólico também. Os orixás se expressam por meio dos corpos. Quando se decepa um orixá, é como se se estivesse decepando um corpo. Por ser patrimônio cultural, o espaço é consolidado e avança,
mas há que ter salvaguardas, há que ter uma política que de fato implemente o espaço como patrimônio cultural.
Nós já estivemos fazendo algumas discussões no Governo para ver como é que se consolida o Mercado Sul, porque sempre houve ameaças de retirar, de arrancar as pessoas do seu próprio chão. Alguns acham que podem fazer isso. Mas quando estamos no nosso próprio chão, aí vamos nos enraizando, dando frutos, dando flores, dando sombra, buscando água com as nossas próprias raízes.
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Esse patrimônio material e imaterial ajuda a consolidar as ameaças de retirada, mas é um passo; é um passo que precisa ser dado porque já há um movimento concreto. Então, nós temos que trabalhar para, no mês de fevereiro, fazer esse lançamento, fazer a sessão, tentar construir a sessão solene, propor essa sessão solene na Câmara Federal, tentar construir um movimento, lançar um movimento com os Poderes Legislativos, chamar a Defensoria, o Ministério Público, a fim de criar um movimento com várias instituições, tipo um mosaico, porque é um pouco o que somos. Só que o mosaico não é feito de partes apartadas umas das outras, senão não vira mosaico. Mosaico tem que ter os ganchos, os laços, para que ele possa realmente representar, transformar-se em um todo para além de partes juntas, mas em um próprio todo.
Então, eu sugeriria isso, além do que a Rita aqui falou, porque eu acho que o importante é pautar o Conselho de Cultura para fazer essa discussão. E aí, envolvendo o Conselho de Cultura, envolvemos outros segmentos de construção, de participação da sociedade civil nesta discussão de patrimônio material e imaterial.
Primeiramente, a colega da Secretaria de Cultura apresentou uma coisa que é importante para nós: existe um processo legal, existe um diálogo sobre esse reconhecimento do Mercado Sul que, de alguma forma, circula nas instâncias. E eu gostaria de convidá-la, nesse sentido, para que possamos fazer algum tipo de diálogo com o corpo técnico da Subsecretaria do Patrimônio Cultural — SUPAC, para apresentarmos também o conjunto dos documentos que nós estamos elaborando, sistematizando, etc.
Acreditamos que é um tipo de diálogo que não lesa nenhuma função do serviço público. A comunidade deve poder acompanhar o desenvolvimento técnico e discutir também alguns aspectos, porque nós temos uma leitura e uma série de documentos técnicos sobre as edificações, sobre a produção cultural, e temos concepções sobre como o Mercado Sul pode ser tombado, pode ser reconhecido como patrimônio, tanto do ponto de vista do lugar, ou seja, do patrimônio material, das edificações,
como também do ponto de vista do patrimônio imaterial, do ponto de vista do tipo de conhecimento em que ele acontece e das suas tecnologias, produções e criações. Acredito que nós temos um diálogo muito rico para tratar junto à SUPAC. Então, eu gostaria de deixar esse convite, enquanto Mercado Sul, para que possamos fazer rodas de conversas, seja na Secretaria Cultura, seja no Mercado Sul, que vai estar lá de portas abertas para conversar.
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Outra coisa do ponto de vista das sugestões é que acho muito relevantes e muito interessantes as propostas que a Rita e a Deputada Erika Kokay trouxeram. Acho que existem outras instituições que poderíamos convidar para esse diálogo. Há um debate a ser levantado com o IPHAN sobre o reconhecimento de cultura popular e tradicional, o reconhecimento de ancestralidade, o reconhecimento de patrimônio no Distrito Federal. O IPHAN hoje tem uma metodologia de reconhecimento de cultura material e imaterial que demanda uma ancestralidade que não cabe nas produções culturais que nasceram no Distrito Federal, porque são produções recentes. Então, teremos um diálogo interessante se chamarmos o IPHAN para conversar sobre as culturas populares e tradicionais e os territórios culturais do Distrito Federal, a fim de que sejam reconhecidos no âmbito federal. É um tipo de diálogo que vale a pena abrir inclusive com outras instituições, como a própria OAB, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo. Há uma série de instituições que poderiam se somar a esse movimento. Isso a Deputada Erika Kokay propôs, e eu acho que seria muito válido.
A SRA. PRESIDENTE (Erika Kokay. PT - DF) - O Mercado Sul vive!
Podemos marcar com o IPHAN. Podemos tirar daqui uma deliberação para solicitar ao IPHAN uma audiência lá e irmos conversar nessa perspectiva, Paique. Acho que podemos fazer isso.
Podemos também fazer a sessão solene, fazer essa pauta que a Rita sugeriu no Conselho de Cultura, lançar um movimento e solicitar uma audiência com o IPHAN, para irmos todas, todos e todes conversar com o IPHAN nessa lógica. Isso já foi feito outras vezes. Eu me lembro de uma luta grande de uma comunidade em Recife que era contra a entrega de um espaço para especulação imobiliária. O lugar era o Cais Estelita. Ali a reivindicação era para tombar a paisagem. Então, tomba-se a paisagem pelo que a paisagem representa do ponto de vista de construção histórica, de rastro histórico e, ao mesmo tempo, de pulsar histórico para Recife e para o Brasil. Tivemos discussão com o IPHAN à época sobre isso. Então, acho que vale a pena agora marcar com o IPHAN.
O SR. PAIQUE DUQUES SANTARÉM - Quero só recordar uma coisa que foi colocada sobre o tombamento: ele demanda responsabilidades para a comunidade. Acho que é importante entendermos que, quando fazemos tombamento, o Estado passa a demandar da sociedade uma série de responsabilidades. Só que eu acho que para o Mercado Sul seria ótimo esse compartilhamento de responsabilidades, porque hoje todas as responsabilidades de gestão, manutenção e organização do Mercado Sul estão com a comunidade.
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Então, acho que não é um problema para o Mercado Sul ser responsável por um território pelo qual ele já é responsável quase totalmente. Acho que falta o Estado estar presente lá, com coleta seletiva, com saneamento, com asfalto, com assistência social etc. Para nós, está fácil a responsabilidade, difícil está para o Estado. É isso o que o processo de patrimônio vai demandar.
A SRA. PRESIDENTE (Erika Kokay. PT - DF) - É isso mesmo, Paique.
A SRA. LIZA MARIA SOUZA DE ANDRADE - Eu não sabia que o foco seria materialidade, mas o nosso trabalho de 200 páginas é justamente para mostrar, comprovar o que tem sido feito ao longo desses anos e como a ocupação encontrou o patrimônio. Se você pegar as novas abordagens de patrimônio cultural e autenticidade, como a da companheira Flaviana Lira, da Universidade de Brasília, minha companheira na FAU/UnB, verá que nós estudamos espacialidade, tipologia, técnicas e materiais construtivos, a pátina, o que significa, o que foi sendo modificado ao longo do tempo e que faz parte do uso e das práticas sociais. O patrimônio não é dissociado da parte imaterial. Esse é o equívoco.
Esse inventário participativo que o Paique mostrou, que o IPHAN valoriza, é para isto: mostrar todos os elementos que se comunicam, que se conectam. Nós entendemos patrimônio como padrões espaciais e padrões de acontecimentos no espaço que se inter-relacionam.
Então, o nosso trabalho foi feito. Há um material gigante de verificação da situação existente: situação fundiária; aspectos políticos; identidade; identificação do Mercado Sul na vizinhança, como ele se insere no contexto urbano em Taguatinga; acessibilidade; legibilidade; identidade; infraestrutura e conforto ambiental; levantamento da organização dos espaços internos — a relação dos usuários com o espaço; conforto ambiental; ergonomia; funcionalidade; instalações; identificação dos problemas nas construções — como eles encontraram e as soluções que eles deram, o que não se desvirtua da questão patrimonial, mas são pátinas que fazem parte, como a Deputada bem colocou, dessa questão do território; enfim, identificação das ações e práticas mais sustentáveis que eles fazem.
Como o Paique bem colocou, é preciso que haja agora uma governança. O Estado precisa estar com eles. Eles já estão fazendo a parte deles. A melhoria que foi feita lá é considerável. Vale a pena mostrar o antes e depois de tudo o que foi feito. Na próxima reunião ou na próxima audiência, acho bom deixarmos bastante claras as melhorias que foram feitas, essa pátina tão necessária em relação ao patrimônio.
A SRA. PRESIDENTE (Erika Kokay. PT - DF) - Obrigada, Liza.
O SR. WEBERT DA CRUZ - Bem, gente, eu quero chamar a atenção para o que acredito ser a questão urgente de todo esse diálogo com o poder público no sentido de tentar encontrar uma solução. Já foi manifestado pelo GDF o interesse em reconhecer esse lugar, em visitas — e outros representantes já foram a reuniões —, mas, com o passar do tempo, durante esses 6 anos de ocupação, quando toda essa articulação teve firmeza e diálogo maior entre todes, isso foi se perdendo, toda essa articulação.
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Então, é fundamental a retomada do diálogo com o poder público, com secretarias, com todo mundo que está articulado nesse processo, com o movimento social, com o movimento cultural da cidade. Porque é isto: o mercado é de todes. Não é? Então, todes têm a responsabilidade, como bem trouxe aqui o Paique, de entrar nessa luta, de fomentar esse espaço.
O nosso companheiro aqui trouxe algo que acredito fundamental: a perspectiva das trabalhadoras e dos trabalhadores autônomos, das famílias que estão dentro dessas lojas, que estão correndo o risco de ficar sem moradia; a perspectiva dos trabalhadores e trabalhadoras que estão correndo o risco de ficar sem espaço para trabalhar. Ou seja, perdendo essas lojas que hoje estão ocupadas, sem esse lugar, fragilizamos todo um território. A ocupação é reflexo dessa articulação, uma articulação que já existia, mas ali é uma resposta realmente a todo esse descaso.
A SRA. INGRID MARTINS - Primeiro, eu queria agradecer pela tarde de tantas trocas. Acho que isso é a expressão da riqueza do Mercado Sul, um espaço com essa mística, com essas imagens, com esses vídeos.
Quero reforçar, nessa perspectiva, que a ação civil pública também é um instrumento com o qual podemos cobrar do Poder Judiciário que pressione o Poder Executivo para a tomada de posições em relação ao reconhecimento do Mercado Sul enquanto patrimônio material e imaterial.
Acho, Ronan, que temos muito espaço aí para pensar juntos, para fazer parcerias, para pensar em fortalecimentos também nessa esfera, dessa assessoria jurídica, conjuntamente, entre advogados populares e Defensoria Pública. Acho que essa é outra frente.
Eu quero reforçar o que trouxemos na nossa fala sobre as Zonas Especiais de Interesse Cultural. De fato, queremos passar por um processo de pensar os territórios do Distrito Federal por 10 anos. Então, se uma das formas de garantir moradia popular é pensar também o processo de demarcação de Zonas Especiais de Interesse Social, que pensemos esse processo de demarcação das Zonas Especiais de Interesse Cultural como mais uma ferramenta à disposição do fortalecimento e do reconhecimento dessa diversidade de formas de viver e de produzir cultura nos territórios.
A SRA. PRESIDENTE (Erika Kokay. PT - DF) - Muito obrigada, Ingrid.
A SRA. RITA ANDRADE - Nós estamos vivendo um dos momentos mais importantes, pelo que eu tenho visto, no que diz respeito à resistência dos grupos de cultura que estão na luta pelo patrimônio, que estão na luta pelo nosso trabalho, que estão na resistência pelo que nós fazemos, pelos nossos saberes e pelo que entregamos para a sociedade.
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Temos visto aqui no Distrito Federal o que eu coloco como descaso ao patrimônio como um todo. O Conjunto Fazendinha está caindo; o Cine Itapuã está numa situação também extremamente precária; o Museu Vivo da Memória Candanga, que é um espaço tombado, está todo corroído por cupins há anos — e foi criada ali uma forma de trânsito com a qual ninguém tem acesso ao museu, você não chega ao museu. Enfim, temos uma série de dificultadores para que de fato esse patrimônio seja usado, absorvido, utilizado e apropriado pela comunidade no todo.
O Mercado Sul, como muito bem falou o Paique, tem uma característica muito importante, porque quem zela, quem acredita, quem vive esse espaço está lá dentro. Então, de fato é preciso que o Estado chegue e assegure os direitos sociais dessas pessoas, assegure que esse espaço seja tombado tanto nos seus aspectos material e imaterial quanto no aspecto humano. O Chico nos trouxe aqui uma coisa importantíssima: sem o aspecto humano, nada disso faz sentido. É muito importante compreendermos como esse local se ressignifica sempre, dia a dia, e como ele mantém vivo todo um processo, um processo que existe desde o seu nascimento. Eu acho isso muito importante.
Também me preocupou um pouco — e talvez eu não tenha entendido muito bem, Paique e Deputada — a fala da representante da Secretaria de Cultura. Fiquei um pouco incomodada com a fala, porque me parece que ela falou do tombamento imaterial, e não do tombamento material, tendo em vista que as construções já não têm a configuração inicial. Isso me preocupou um pouco. Não sei se ela ainda vai falar e pode nos trazer algum esclarecimento. Vejam bem: não é necessário que um local tenha suas características originárias para que ele seja tombado, para que tenha tombamento material. Sabemos que os tombamentos inclusive permitem e têm flexibilidade com relação às mudanças e adaptabilidades necessárias para que aquelas construções sobrevivam. Então, queria que ela nos trouxesse esse esclarecimento, porque isso me deixou preocupada.
A Deputada até trouxe a questão da Praça dos Orixás, que tem um tombamento imaterial, não um tombamento material. Aquele lugar não é tombado, a ideia que é tombada. Aquela praça inclusive pode mudar de lugar, porque é um tombamento imaterial, assim como o Bumba Meu Boi do Seu Teodoro. Não é o lugar que é tombado, é a ação que é tombada. Então ela pode mudar de lugar. Mas o Mercado Sul não pode mudar de lugar. Ele está naquele lugar. Esse tombamento físico é fundamental para que ele exista, para que o tombamento imaterial inclusive se manifeste, continue se manifestando através da cultura popular, da cultura tradicional, da arte urbana, porque ele tem um papel importantíssimo na arte urbana, nas cores que a Deputada trouxe, nos grafites e no que acontece nas ruas e nos becos.
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Então, essa fala me deixou um pouquinho preocupada. Como o processo está sendo encaminhado? Talvez eu tenha entendido errado. Gostaria que ela trouxesse esse esclarecimento.
Também gostaria de propor ao movimento que fizesse uma provocação ao Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural do Distrito Federal. Eu acho que essa pauta tem que ser debatida dentro do CONDEPAC e tem que ser debatida de forma aberta, com a comunidade participando, principalmente a comunidade que luta por esse território, com os conselhos, com o Conselho Regional de Taguatinga participando, com a Gerência de Cultura participando, com todos os entes políticos ligados à cultura daquele território participando desse debate.
A SRA. PRESIDENTE (Erika Kokay. PT - DF) - Muito obrigada, Rita.
O Cid Aroeira não conseguiu entrar na sala virtual, eu acho. Então, fica para a próxima — e haverá muitas.
Eu queria anunciar que o Dr. Ronan Ferreira Figueiredo pediu desculpas, disse que tinha outra agenda, que já guardava um bom atraso para outra agenda, e também se retirou da nossa sala. Mas fica, sem nenhuma dúvida, a parceria bem estruturada, que já está estruturada.
De toda sorte, essas questões dependem da concepção. O que ela fala é que o tombamento imaterial também se referencia a um local e aí, referenciando-se a esse local, é estabelecido. Não há como pensar a Praça dos Orixás fora da Praça dos Orixás ou então o tombamento imaterial do Mercado Sul sem o espaço do Mercado Sul.
A SRA. GIULIANA LETICIA - Basicamente, quero só afirmar também um pouco essa urgência que temos. Estamos caminhando para o último julgamento do nosso processo de ocupação, para a desapropriação das lojas que foram ocupadas no ano de 2015.
É de suma importância que sejamos assertivos e demos urgência mesmo para essa pauta.
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Enquanto esse julgamento não chega, para a desapropriação das lojas que foram ocupadas, seguimos reafirmando que o Mercado Sul é um patrimônio imaterial e material e é importante para as pessoas que estão vivendo ali.
Eu trago a perspectiva do corpo e do território. Quando tiramos o nosso território, basicamente o nosso corpo não existe. Tanto o espaço físico quanto o do sentimento, bem como o estado de pertencer a esse território mostram o quão é importante a junção desses dois meios, que são o corpo e o território. Sem o território não respiramos.
A SRA. PRESIDENTE (Erika Kokay. PT - DF) - Obrigada, Giuliana.
Isso aconteceu ainda na época da ditadura. Os economiários não eram nem considerados bancários, e a Erika eu acho que era de uma associação de economiários. Eles ocuparam um prédio e estavam lá, há vários dias, dormindo e comendo. Era aquela situação difícil, com a polícia do lado de fora, tudo muito tenso — invade ou não invade; "a polícia vai invadir". Nós entramos, para brincar com os bonecos lá dentro, para descontrair um pouco aquele ambiente. Ali eu conheci a Erika, quando ela falou. O que me chamou a atenção, desde aquele momento, é que ela falava em arte, em poesia, em cuidado das pessoas. Era um discurso completamente diferente do que a militância política fazia. Aquilo me impactou, porque era aquela coisa tensa, sem sabemos se a polícia entraria ou não entraria. Eu disse: "Do lado dessas pessoas, pode entrar a polícia, e eu posso apanhar".
Então, só de estar do lado das pessoas que admiramos, que queremos, que cuidamos, só de estar do lado certo no sentido, no caminho de uma melhor humanidade já é uma vitória muito grande. O Mercado Sul é uma vitória, é um exemplo de luta e de vitória. Até hoje o que temos ali foi construído com muita luta. São as vitórias que nos fazem ser o que nós somos. Isso devemos celebrar. Apesar de todas as dificuldades, do momento de crise, de todas as tensões que vivemos, temos que ter espaço para festa, para celebração, para confraternização, porque é essa a energia, é esse o mundo que queremos. Temos que praticar o mundo que queremos aqui e agora, mesmo nos momentos mais difíceis. Isso o Mercado Sul faz, sempre fez e nesta pandemia
mostrou cabalmente isso, mais uma vez, reunindo, cuidando dos mais necessitados, recolhendo e distribuindo alimentação, enfim, fazendo as vaquinhas daqui para ali, sempre atentos uns aos outros. Então, isso é uma grande vitória e é um imenso prazer acompanhar e fazer parte desse movimento.
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A SRA. PRESIDENTE (Erika Kokay. PT - DF) - Tem a palavra a Giuliana Leticia.
A SRA. GIULIANA LETICIA - Eu queria só falar também que esse processo de reconhecimento é importante para que nós reverenciemos tudo o que já foi feito, tudo o que já foi posto, para que consigamos assegurar também as ações que estão sendo desenvolvidas lá e garantir um futuro para a próxima geração.
A SRA. PRESIDENTE (Erika Kokay. PT - DF) - Muito bem.
Eu queria dizer da minha alegria e da minha gratidão por termos tido esta troca, esta roda de conversa, digamos assim, na tarde de hoje. Eu queria agradecer muito ao Paique Duques Santarém, que é antropólogo; à Liza Maria Souza de Andrade, representante do Br Cidades/UnB — Projeto Casas; ao Webert da Cruz, representante do Projeto Retomar para Reinventar; à Ingrid Martins, representante da Candanga Assessoria Jurídica e Popular; à Rita Andrade, representante do Conselho de Cultura do Distrito Federal; à Daniela Zambam Rodolfo, representante da Secretaria de Cultura do Distrito Federal e Diretora de Preservação da Subsecretaria do Patrimônio Cultural; ao Ronan Ferreira Figueiredo, Defensor Público do Distrito Federal; à Giuliana Leticia, que é produtora; e ao Chico Simões. Queria lamentar por não termos conseguido a conexão com o Cid Aroeira. Mas nos encontraremos nas curvas desta vida. Então, agradeço muito a todos a participação.
Desta conversa, acho que a Rita sugere que façamos uma provocação ao Conselho de Defesa o Patrimônio. Nós podemos também fazê-lo, independentemente do movimento, como fruto, como encaminhamento desta audiência pública. Podemos pedir uma pauta ao Conselho de Defesa do Patrimônio, para que nós possamos fazer a discussão do tombamento. A Rita propõe, e eu acho que é muito boa a ideia, levar o debate para o Conselho de Cultura. Nós sugerimos e vamos solicitar uma reunião com o IPHAN, para discutirmos isso. Vamos entrar em contato com a Câmara Legislativa, para construir um movimento em defesa do reconhecimento do Mercado Sul como patrimônio imaterial e material do Distrito Federal, e vamos solicitar a realização de sessão solene no dia 7, não necessariamente no próprio dia 7, mas com referência ao dia 7, ou seja, na proximidade do dia 7, para comemorar os 7 anos de ocupação do Mercado Sul.
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Então, deixar o espaço Mercado Sul com esse nível de vazio e depredação é uma falha, é um discurso e uma narrativa contra a cultura, contra a ocupação, contra o direito à cidade. Acho que o direito à cidade é um dos direitos mais contemporâneos que estão postos, porque, em grande medida, a urbanização, a especulação imobiliária e, ao mesmo tempo, a lógica da mercadorização dos corpos, do sagrado, da vida, da moradia, roubaram-nos o direito à cidade. Quando se estabelece o direito à cidade, em contraponto, exatamente se estabelece a resistência a toda sorte de mercadorização e o direito à cidade, para que haja o cuidado.
O ser humano, se não for cuidado, não sobrevive. Nós somos diferentes de outros seres vivos, que dão conta de sobreviver ainda que não tenham cuidado, porque nascem com certa autonomia. Nós construímos essa autonomia. E, em grande medida, a lógica traumática deste País impede que nós construamos essa autonomia, pois acha que os nossos corpos podem ser feridos, podem ser dominados e podem ser considerados dissidentes. Todos os corpos são permitidos ou deveriam ser permitidos porque são espaços de existência humana. Há muitos corpos que são feridos. A necropolítica vai atingir corpos específicos de forma mais violenta. As balas perdidas não são perdidas, em verdade, porque elas estão ocupando ou elas adentram os mesmos corpos, sempre os mesmos corpos. Sempre os mesmos corpos são feridos, são cerceados.
O Mercado Sul representa muita coisa para esta cidade, mas também representa muita coisa para toda essa necropolítica que está em curso de uma cidade sem cuidado, de uma cidade onde haja muito ódio. Eu fui a uma atividade, o Boi de Itapuã, e ali eu vi duas camisetas. Uma delas tinha uma frase de Martin Luther King: “Eu fiz uma opção pelo amor, porque o ódio é um fardo muito grande". Eu penso que o Mercado Sul fez uma opção pelo amor. É essa amorosidade, essa boniteza e esse esperançar de que Paulo Freire fala e que associa com a educação, que é uma educação de construção e de rompimento de todos os grilhões. Ao mesmo tempo, eu também vi outra camiseta que dizia: "Não serei obrigada". E eu perguntei: obrigada a quê? Ela disse: "A nada. Ninguém vai me obrigar a nada". Era um movimento de mulheres que tinha uma camiseta em que estava escrito: "Não serei obrigada".
Então, essa ocupação é uma ocupação em defesa da vida, em defesa do cuidado, em defesa da cultura. Quando a Deputada Benedita da Silva era Presidenta desta Comissão, nós chegamos a ir ao Mercado Sul. Ela foi como representante da Comissão de Cultura, desta Comissão que está realizando esta audiência. O Mercado Sul é encantador. Ele transmite muito isso, ele exala muito essa atmosfera, esse cheiro das oficinas, da criatividade, da alegria com o outro, das cirandas da vida, por isso precisa ser preservado, dentre outros aspectos que ali estão postos, porque ele também faz parte da história.
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Ele faz parte da história não só de Taguatinga, mas da história do Distrito Federal, que um pouco foi contada pelo Chico Simões nos primórdios quanto ao que era o Mercado Sul, que foi abandonado e que voltou a ser ocupado com toda essa verve de muito compromisso com a alegria e com a própria cultura.
Nesse sentido, sugerimos essas propostas na perspectiva da construção dessa condição de reconhecimento do Mercado Sul como um patrimônio material e imaterial, realçando que apenas o reconhecimento é um passo e é importante porque, a partir dele, guarda-se o patrimônio, cuida-se do patrimônio. Havendo a condição de patrimônio, ele tem que ser cuidado, mas é importante que possamos encarar como um ponto de chegada, que sempre vira um ponto de partida, porque a vida é dialética. Realmente, o correr da vida, como diz o poeta, às vezes embrulha tudo, mas exige de nós sempre muita coragem.
Eu queria, mais uma vez, agradecer a todas e todos. Vamos tirar esses encaminhamentos para que possamos dar prosseguimento ao que discutimos aqui no dia de hoje. Quero dizer que o Mercado Sul nos enche também de muita coragem. Ao ir ao Mercado Sul ficamos com muita coragem para dizer, dentre outras coisas, que pode vir 2022, porque nós temos coragem suficiente para transformá-lo num ano de liberdade dos corpos, das falas, do querer, do sentir, do pensar, de reafirmar a nossa própria humanidade.
Há vários anos, eles sempre ocupam aqui. E estiveram recentemente todos os dias. Em determinados momentos, por esses dias, no hall da Taquigrafia da Câmara, estavam todos e todas abraçados, cantando uma música que dizia que o mundo pode até te fazer sofrer, mas Deus te quer sorrindo. Hoje elas e eles estão sorrindo, porque foi derrubado o veto aposto pelo Presidente da República para tirar do Orçamento a possibilidade de reajustar os salários da categoria.
(Palmas.)
Esta Casa e as suas galerias estavam fechadas. Elas se abriram hoje, e estavam dezenas de agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias e também outros segmentos, como os policiais civis, que também tiveram o seu veto derrubado.
Eu diria que encerramos muito bem esta audiência, que é em defesa da vida, em defesa do protagonismo, em defesa de um espaço, um território de Brasília de muito cuidado, de muita cultura, de muito amor, com a presença dos agentes comunitários de saúde e dos agentes de combate às endemias, que nos ensinaram muito e nos ensinam todos os dias, há muito tempo.
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